Uma estadia sossegada no Tranquility Base Hotel & Casino
Ilustração por Pedro Santos.

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crónica

Uma estadia sossegada no Tranquility Base Hotel & Casino

Um texto em que Alex Couto parte do Planeta Terra para visitar um resort de luxo localizado na Lua – Tranquility Base Hotel & Casino. A ilustração original é do Pedro Crispim Santos.

Afinal, era isso que o flyer me prometia. Um voo tranquilo e um local exótico. Agradava-me a distância cósmica das nossas férias habituais, imaginei logo que não ia ter de encontrar vizinhos, quiçá até conseguisse deixar longe as minhas preocupações planetárias, a pressão atmosférica que é viver no Planeta Azul. Acima de tudo, estava curioso com o destino turístico – adoro hotéis de charme, era a minha primeira vez na Lua.

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O check-in foi a seca do costume, mas ainda me sentava naquele foguetão negro e esguio, salvo erro admirava o design dos interiores cromados e pensava no milagre que era estar aqui, quando reparei que já toda a gente mergulhava na fantástica televisão produzida no século XXI. Já? Ainda nem arrancámos, a sério?


Vê o primeiro episódio de "Motherboard"


Recostei-me no meu assento, cada vez mais curioso com o espetáculo visual que seria sair da nossa cúpula celeste, até imaginei que a fricção faria faíscas, mas não nos deixaram ficar de janelas abertas devido a “requisitos de segurança.” Se calhar era por isso que tinham ligado logo os ecrãs? Pensei no quanto a tecnologia se tornou um mundo nas nossas mãos, no quanto devia destroçar o tédio - iPhones, geolocalização e streaming, a hipótese de nos sentarmos numa aeronave e flutuarmos, enquanto fazemos facetime, cada vez mais distantes do Planeta Terra.

Hoje em dia toda a gente fala de séries, o que é um descanso metafísico quando temos de nos confrontar com a imensidão do cosmos. A era dourada do cinema estava a perder o brilho, mas a viagem passou a correr. Sentia-se o vácuo de conteúdo ainda antes de entrarmos em órbita.

Quando aterrámos (sim, houve palmas, não julguem que a bimbalhice é um exclusivo continental) e saímos da aeronave, reparei que o corredor da estação espacial era todo em vidro, criando um efeito magnético onde muitos dos meus companheiros de viagem iam abrandando, até pararem por completo diante daquela vista. Para muitos de nós era a primeira vez que trocávamos de papel, víamos a terra da lua e não o habitual oposto. Estava, literalmente, na lua.

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Foi como se houvesse emojis de brilho sob um fundo negro, dirigiam os olhos num ponto de fuga até ao nosso Planeta original. A Terra parecia difundir uma luz espessa, era lá que vivíamos e nem notávamos - devia ser só mais um dia de sol, podia até estar algo nublado. A imagem fez-me pensar na importância de uma mudança de perspectiva, no bem que isso nos faz. A velocidade a que os telemóveis saíam do bolso para captar esta paisagem e partilhá-la com os restantes terráqueos também era impressionante.

Apanhei a minha mala (onde estava mais ou menos toda a minha vida – o meu MacBook, a minha roupa de marca) e ainda estava a admirar a cúpula transparente da estação espacial quando me chamaram para o transfer directo para o hotel. Partíamos do interior da estação, daí não ter sido preciso vestir o fato espacial, nem aqueles capacetes de astronauta. Felizmente.

Confesso que durante esta primeira viagem à superfície da Lua senti aquele frio na barriga sobre a qual tanto se escreve, um pouco de ansiedade, uma sensação intensa de receio e entusiasmo. Quando me sentia a levitar, uma cratera qualquer fazia o favor de me atirar contra a superfície lunar e apercebia-me que estava mesmo aqui. Ao fim da estrada surgia a forma hexagonal do hotel onde ia passar as duas noites seguintes e que ocupava este lugar de charme.

O hotel ficava na Base da Tranquilidade, o local onde o Homem tinha aterrado pela primeira vez na Lua. Pelos vistos não era só uma curta-metragem propagandística do Stanley Kubrick, nem o maior hoax da história da exploração espacial. A caminho passámos pelo que me pareceu um centro comercial multimarcas, prédios de apartamentos para alugar a curto prazo, assim como os grandes titãs da hotelaria como o Hilton, Sheraton e Marriott – bem, até um hotel da EasyJet aparecia neste quarteirão, para quando inaugurassem as idas lowcost ao espaço. Reconheci a imagem das principais cadeias de comida rápida do nosso Planeta. Parecia que o velho formato baixa/centro histórico também tinha servido para a Lua. Também parecia, com todo o desconforto que isso implica, uma área destinada a turistas.

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O nosso autocarro, muito mais Cadillac dos anos cinquenta do que uma camioneta da carreira, deixou-me sair num átrio interior com um pé direito enorme. Quando zarpou, apercebi-me, algo cabeça na lua, que só lá estava eu. Reparei no que parecia ser um tour bus em formato foguetão. O momento estava demasiado twilight zone, dirigi-me sozinho ao edifício principal.

Fiquei deslumbrado com a entrada, não só pelo modelo tridimensional do próprio hotel em grande destaque, mas também pela arquitectura minimalista de ângulos rectos, pelos tiques de Versalhes, como dourados nas colunas e tapeçarias trabalhadas em certas paredes. Fui recebido por um porteiro com ar de Grande Budapeste, mas o tom da roupa era prateado, o próprio têxtil era algo plástico. Deu-me algumas dicas de actividades (nada que eu não tivesse estudado de casa) e um porta-chaves de motel com o logo e o número do meu quarto.

Fui pousar a mala e logo no elevador ouvi uma música fixe, um riff de guitarra quente, suave tipo 70’s - fiquei a pensar se era a banda sonora oficial do hotel ou se tinham só uma playlist com óptima curadoria musical (nada que as minhas boutiques preferidas em Paris e em Londres não tivessem).

Como já vinha com este plano decidido, aproveitei a tarde para me dedicar ao famoso “Spa da Tranquilidade”. Confirma-se, era realmente extraordinário. Mesmo com toda a estranheza de saber que a exfoliação era feita com pedras de superfície lunar, diziam ser um basalto repleto de propriedades científicas dignas de renome, repetidas muitas vezes para evitar a dissonância cognitiva. Devia ter efeitos secundários bizarros a longo-prazo, mas sentia-me relaxado no meu papel de cobaia galáctica.

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Algo esfomeado depois de tanta pedra, perguntei onde devia jantar e pensei que estavam a gozar quando me disseram "no Rácio de Informação-Acção". Seria uma piada com a quantidade de reviews que faço no Zomato face às vezes que janto fora? Não houve desentendimento, era mesmo o nome de uma famosa taqueria que ficava perto de Clavius, numa zona em grande expansão, com vista para toda a cratera. O Hotel tratou de me arranjar transporte e marcação, eu agradeci imenso.

Estava escuríssimo quando saí, uma noite durava quinze dias na Lua. Os olhos habituam-se, a Terra é enorme e difunde um clarão angelical.

Ocupado a actualizar o meu instagram no wi-fi do autocarro, apercebi-me subitamente do ambiente à minha volta. Eram subúrbios erguidos entre crateras, a prova da conquista deste único satélite do nosso Planeta. Não eram muito diferentes dos bairros que se fazem na periferia das grandes cidades - prometiam sonhos idílicos, exigiam quantidades estapafúrdias de tokens para serem adquiridos. De lugar gentrificado em lugar gentrificado, assim andamos nós, lembro-me da minha primeira ida ao Brooklyn, do ruído da construção regado a cafés com banquinho à porta, onde me podia sentar, ouvir as buzinas dos carros e uma ideia deturpada de progresso. Lembrei-me, sobretudo, de Lisboa. Da cidade onde vivo e que, pelos vistos, está numa fase semelhante à Lua – constrói-se, renova-se, chega-se para lá o que nos impede de alcançar ao futuro.

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Sabem aquela história da Lua ser feita de queijo? Não é assim tão verdade quanto isso, mas já se produz mesmo queijo por cá e esse foi um dos ingredientes dos tacos. São curados por uma comuna que se mudou para a Lua com boas intenções, uns objectivos idílicos de renegar a sociedade contemporânea, mas zangaram-se uns com os outros quando começaram a pingar as primeiras propostas imobiliárias. Os tacos eram óptimos, mas não eram os melhores do universo, nem nada que se pareça - hoje em dia já toda a gente provou tudo, é difícil dar cinco estrelas ao que quer que seja.

Apanhei o meu autocarro de volta para o Hotel, decidi dar um salto ao bar para tomar um copo, mas não tinham porto, nem moscatel e aquele jantar temperado pedia mesmo um digestivo. A música também era um bocado seca, o registo era algo lounge para quem gosta de rock ‘n’ roll, apesar de a banda ter muito bom gosto nos arranjos das faixas e na forma como estavam todos arranjadinhos. Estava cansado da viagem e decidi ir descansar – não era a música do bar que me ia manter acordado.

Já deitado, lembro-me de ter pensado no quanto a ficção científica já não era assim tão ficção quanto isso. As narrativas são algo atribuladas, mas porque é que não conquistamos mesmo o que falta do espaço? Acho que sonhei com a obrigatoriedade da exploração de cometas, planetas e asteroides - acordei com uma secura sideral.

Era o despertador do hotel, para não me esquecer que tinha o meu safari de crateras. Estava cheio de sono, mas sabia que esta era uma oportunidade única na minha vida de ser conduzido num buggy que faria muito mais sentido em Tatoooine, num pedaço de pedra que só costumava ver da janela a trezentos e quarenta mil quilómetros de distância. Apesar das crateras terem perdido rapidamente a graça (e eu sou um gajo que adora nomes em latim), a sensação de ver a Terra espreitar sempre que voltávamos ao nível do solo foi uma experiência comparável a respirar fundo quando nos sentimos em pleno afogamento.

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Ao voltar, antes que me aborrecesse, o staff do hotel decidiu levar-me num tour pela propriedade. Descobri que o jardim que tanto me fascinava era só um tipo de basalto esverdeado, era impossível a vegetação sobreviver ao ar livre neste ambiente tóxico. Wow. Oficialmente aborrecido, voltei a sentar-me no bar e agora, um pouco mais preparado para o tédio, assisti ao concerto dessa noite da banda exclusiva do Hotel. A música parecia-me cada vez melhor, talvez por estar ali dedicado a ouvi-la, talvez pelo excesso de vodka tónica.

Parecia que se inspiravam num tempo antes do rock barulhento, onde a guitarra vivia bem com a mania do estrelato do piano. As letras eram complexas, pareciam satirizar o momento que se vivia na Lua – era o mesmo que se passava na Terra. Uma obsessão com o online, uma certa tranquilidade face à destruição de oportunidades. Isto chegava-nos através de um falsetto colocado, no registo crooner do vocalista.

A banda vivia bem com a divisão do protagonismo, a mestria com que tocavam revelava um à-vontade com a presença em palco. Certos detalhes da guitarra tornavam-se hipnóticos, no som das teclas só faltava o estalar de um vinil antigo. Era um espetáculo notável e eu sentia-me num filme a preto e branco, bebia e mergulhava na vibe nostálgica que me apresentavam. Achei estúpido não ter gostado logo da música, mas no século XXI esquecemo-nos que nem toda a arte tem de entrar à primeira nos nossos corações.

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Fiz um pouco de Instagram quando o concerto acabou, dei de caras com o vocalista sentado ao meu lado quando levantei os olhos do ecrã. Fez uma piada acerca de já ter descoberto os prazeres da vodka no espaço, mas só quando lhe franzi o nariz é que me explicou. Os russos já o sabiam desde o Yuri Gargarin, mas pelos vistos a potência alcoólica dispara após a saída da atmosfera terrestre. Estão a ver aquela bebedeira súbita no avião? É tipo isso, mas um pouco mais “estou na luuuuuua.” Ri-me da trivialidade, perguntei-lhe se queria tomar algo.

Ele pediu um vodka martini, o que fazia justiça ao nome da banda – The Martini Police. Perguntei-lhe como tinha vindo aqui parar e disse-me que tinha tido uma banda de grande sucesso no planeta Terra, um conto de fadas que começou quando quis imitar The Strokes. Senti empatia por esse detalhe, eu próprio sempre quis ser um dos Strokes. Só que a banda cresceu que foi uma coisa parva e perderam todos a paciência – estavam ali pagos a peso de ouro, a tocarem o que gostavam.

Eu não conseguia deixar de pensar que isto era a manobra mais indie que alguma vez tinha visto numa banda. Deixar o Planeta Terra e o sucesso habitual, em prol de uma viagem lunar, de um som que parecia anteceder as próprias bandas rock – era um castigo drástico para a sua base de fãs, um verdadeiro êxodo lunar. Tinha sido assim que vieram parar a este corpo celestial. Nem toda a gente pode estar a convite, tipo blogger. Falámos sobre a gentrificação da Lua, acabei a bebida e ele colocou-a na sua conta como se me estivesse a fazer um favor. Agradeci de forma discreta e disse-lhe que gostava muito do que estavam a tocar, admirava também a ousadia.

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Ia a caminho do quarto quando me apercebi que nem uma estrela rock com um emprego fixo num resort estelar tem a hipótese de se livrar desta pressão constante que é sentir que a evolução tecnológica não precipitou o avanço supremo do Mundo, nem nos levou as inquietações face ao futuro. Não sabia como é que o Mundo podia ser mais moderno que isto.

Adormeci grogue e quando me acordaram soube que não podia evitar mais, tinha chegado o momento de experimentar a maior atracção turística da Lua, a simulação da primeira aterragem neste satélite espacial. Era a única vez que nós, turistas, podíamos vestir o fato de astronauta. Todo o procedimento era cheio de regras, demasiado burocrático, depois de vários incidentes fatais já terem acontecido.

O Apollo XI estava lá na sua máxima glória, disponível para que o pudéssemos admirar. Parecia pouco aerodinâmico e muito mais Ghost in The Shell do que Jetsons. O interior era apertado, tanto que nem me apeteceu ir lá dentro, já tinha sido desconfortável ter sentido que ia levantar voo a qualquer momento. Ficar perdido no espaço é um pensamento assustador. Ainda assim, a sensação de ter saltado da superfície metálica do Apollo XI para a superfície lunar - sobretudo aquele sobressalto assustadiço em que levitei - foi do melhor que já tive na minha longa experiência de escapismo. Depois disso, não havia muito mais para fazer na Lua.

Lembro-me de pensar que se não fosse este turismo intergaláctico, tudo nos ia parecer contemporâneo demais para não sentirmos que o nosso presente já era o futuro.

Conseguia ver o hotel enquanto zarpava, já de mala feita e cinto de segurança pressurizado, pus os phones disponibilizados pela companhia aeroespacial e voltei à música da banda que encontrei no Spotify – como quem acredita que um disco pode ser um sítio físico, um local onde podemos voltar sempre que tivermos saudades.


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