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Música

A Beleza Oculta dos Mitos Fundacionais do Som

Um bom Causo de Som é o que torna o Som ainda mais Som

Existem aqueles tipos que você chega falando algo sobre o artista que ele curte (às vezes nem é pra zuar) “joe, esses caras se conheceram numa empresa de RH enquanto preparavam uma nova dinâmica de grupo” e ele responde “ahh nem ligo, eu só ouço o som”. Bom, tá beleza, tem mais é que ouvir o som mesmo, porém estamos aqui pra falar sobre algo que não é a própria música mas faz parte dessa grande atividade que é escutar um som.

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Há muitos modos de se ouvir música, vocês sabem:

- com os coleguinhas em casa ou com esses mesmos no showzitcho;

- sozinho na pista fazendo um air-batera ou o moderníssimo air-DJ (é sério tenho visto por aí uns tipos na pista segurando fone de ouvido imaginário e girando botõezinhos no ar);

- no carro particular (onde não existe escolha mais nobre que ficar sintonizando o rádio) ou no táxi (rádio garantido);

- andando pela rua ou no ônibus (onde além da versão fone de ouvido há também aqueles joes que defendem que tudo é música: o trem passando, o motoca estourando o escapamento, o grito do mendigo doidão);

- no bar de praia onde a banda Ligados em Jah toca sucessos de Skank e Maskavo Roots intercalados com umas próprias.

Banda Ligados em Jah sincretiza símbolos religiosos e culturais

E por aí vai. Porém considero todos esses modos secundários em relação ao formato mais sério de audição de som: o sozinho em casa. É neste formato mais sério que se torna mais frutífera uma arte também das mais sérias: especular sobre o mito fundacional do artista que você está ouvindo.

Tudo o que é importante tem um mito fundacional: o Império Romano tem, a festa de São João tem, o Universo tem (sei que há quem acredite que esse negócio de Big Bang seja inconteste e encerre o assunto, tem muita gente doida por aí), por que o som que você ouve não teria um?

Um mito não é verdade nem mentira, pelo mesmo motivo que, pra resumir bem resumido, um enredo de filme não é verdade nem mentira. Se você julgar um mito ou um enredo de filme segundo as idéias de verdadeiro e falso você estará pavimentando o caminho que leva ao vacilo. É claro que isso não quer dizer que eles não possam ser julgados, só precisam ser julgados pelos critérios certos. E que critérios são esses? Bom, aí estamos completando 2300 anos de uma discussão que eu não vou tentar apresentar nesse artigo, vamos dizer por hora que ele pode ser legal ou chato, jóia ou zuado, bonito ou feio.

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“Oies, meu nome é Aristóter”

Garimpar a versão “verdadeira” pode fornecer alguns dados valorosos mas um bom mito de fundação é feito de verdades que vão além de simples fatos narrados pelas tristes figuras dos sabidões sensatos. Que tipo de dado te faria duvidar, por exemplo, da análise que os amigos Beavis e Butt-Head fazem sobre a relação entre a infância do Pantera e o fato de ele nunca relaxar?

“Isso é uma lágrima, Pantera? Oh, A filhinha do papai tá tristinha?”

Me lembro de alguns mitos com os quais me engajei mais profundamente, um deles é o da banda Grandaddy.

Eles são caipiras de boné da cidade de Modesto, o líder Jason Lytle abandonou a carreira de skatista profissional devido a um joelho estragado e foi trabalhar numa unidade de tratamento de esgoto pra bancar equipamentos e formar sua banda. Juntou um baterista gordão que não para de fumar seu cigarrinho enquanto toca e mais uma turma que, logo que as datas da turnê se definiam, se encontrava pra averiguar potenciais pontos de pescaria no caminho.

Quantos churrascos de salsicha essa galera não fez pra passar as músicas e mexer em um sintetizador velho que acaba de chegar do conserto? “Is this rock’n’roll or what?” diz um deles apertando umas teclas com uma mão e uma salsicha espetada no garfo na outra, ainda com a camisetinha timbrada da soft-house onde trabalha.

Só uma turma dessas pra criar uma canção inacreditavelmente linda sobre eventos ocorridos em uma firma.

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Esses mitos especulativos por vezes se espalham e ganham as ruas. Em especial antes da internet e sua sanha explicativa aparecerem os mitos eram ainda mais numerosos e espetaculares. Me lembro quando, ainda bem menino, entrei em contato com este grande conjunto de rock que foi o Guns N’ Roses. A primeira história de fundação da banda que eu ouvi era a materialização do espírito do Rock de Cabelo Armadão.

Contava-se que Axl Rose, um branco pobre que apanhava do padrasto e foi preso altas vezes em sua cidadezinha, se mandou pra Los Angeles. Lá passava seus dias fazendo trambiques até que uma noite se deparou com um tipo tranquilão que tocava muita guita. Passaram a frequentar juntos uns clubes muito malditos onde, certo dia, em meio a uma briga de bar (atribui-se a Axl a frase “Todo mundo gosta de uma boa briga de bar”), encontraram o baterista Steven Adler, que no fim das contas fazia tanto a cabeza de droga que nem eles aguentaram. O baixista Duff teriam encontrado em um show de uma banda punk, e o mesmo, sempre que o Guns dava uma bobeada, voltava a tocar em outra banda punk. O outro guitarra seria um amigo de infância do cantor que se encontrava na fila do desemprego.

O caso é que estes caras tinham um charme da pesada, pareciam o esquadrão de roqueiros mais poderoso do mundo e acredito que muitos, como eu, ficaram arrasados ao ver, anos mais tarde, um Axl Rose barrigudão se esquivando dos gritos mais difíceis e focando suas turnês no Brasil.

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Axl narra uma abordagem que ele sofreu, aparentemente de leões-de-chácara ou algo assim. Diz que ficou muito puto que um cara chamou ele de Bon Jovi. Imagina se é pouco zueiro o cara falando: “Tá aprontando o que ae ô Bon Jovi?”

“Mas tem muita gente que faz som bacana e não parece ter grandes histórias por trás”, contesta o leitor crítico. Tem, claro que tem, tem gente que tira a inspiração toda de imaginação, de construção interna, de pesquisa. Veja, por exemplo, este rapaz do Dirty Projectors. Eu não consigo pensar em nenhum mito legal pra ele, até onde sei é apenas um garotão que largou Yale, recrutou umas cantoras muito jóia e saiu gravando. Não vejo que interesse se possa ter na pessoa do cara. Se um dia eu tiver que puxar conversa com ele pra, sei lá, fazer sala, eu vou ter que dizer algo como “E aí, dedilhando hein”.

Por outro lado se me largassem com gente como Robert Pollard ou Harry Nilsson eu certamente procuraria deixá-los bebaraços a ponto de contarem um monte de histórias e se arrependerem no dia seguinte.

- ”Dedilhado né?”

- “É, hehe”

-”…”

É claro que música com letra, por um lado, facilita a criação de mitos em comparação com a música instrumental, entretanto esta abre espaço para mais possibilidades.

Pense por exemplo um rapper, se ele parar de narrar suas histórias de vida é capaz que ele comece a desaparecer igual o Marty McFly em De Volta Para o Futuro I, quando seu futuro pai George hesita em dançar com sua futura mãe no baile. Já artistas de música instrumental sempre podem esconder melhor suas personalidades atrás dos sons.

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Outro dia um amigo meu, que cobra de qualquer artista que ele curta que seja uma pessoa interessante, foi acossado por dúvidas quanto à personalidade de Thelonious Monk. Ele dizia:

Cara, será que o Thelonious era uma pessoa legal de se trocar uma ideia ou ele ficava o tempo todo repetindo a mesma história mala de quando ele foi enquadrado pela polícia, tinha maconha na mochila, e o “meganha” não encontrou? Tipo “nossa véio, foi surreal” e você “po, legal Thelonious, valeu”

Eu encarei como apenas um experimento de pessimismo, ele já criou outras versões com um Thelonious bacana, eram mais verossímeis, mas, sei lá, vale a reflexão.

O mundo maldito onde Thelonious Monk fica contando histórias mala.

O negócio é que ouvir, criar e alimentar mitos sobre quem faz o som que a gente escuta é um costume que torna mais rico nosso contato com o próprio som, deixa ele mais vivão. Pode acontecer de eles serem a pura realidade dos fatos, e muitas vezes são mesmo. É incrível como às vezes realidades factuais acontecem de ser o maior barato. Porém certas coisas não temos como e não precisamos conferir e em outras é melhor mesmo não ter como conferir. Como em um caso antigo (anos 90) em que um rapaz que atendia pelo nome de Pablo Mais Que Maluco afirmava por aí, categoricamente, baseado em alegada pesquisa, o seguinte:

“Gente, vocês não sabiam não? O Syd Barret foi o primeiro ser humano a mascar chiclete.”

Para mais pensamentos sobre o som e suas implicações no mundo dos vivos e/ou mortos leia:

Quem Resenhas as Resenhas de Som?

O Stan Molina é filósofo, jornalista e toca uma baita guitarra. Siga ele no Twitter: @cloudchapel