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Música

Quem Resenha as Resenhas de Som?

Por que as críticas de música são tão zuadas e tão legais também, se bobear.

Algo me intrigava nas primeiras resenhas de música que li ainda menino. Já naquela época me assombravam questões primitivas como “O que dá pra se falar sobre som? Som é som, eu ouço o som e ME TORNO O SOM e pronto, véio”. Mais tarde percebi que, por acaso, essa questão primitiva não era apenas meninice, mas uma questão das mais sérias. Contudo acabei decidindo que há sim o que falar sobre som, ainda que no limite não seja possível definí-lo, encerrá-lo em palavras, já que sempre restará algo na música que resiste à descrição. Ademais é certamente possível falar sobre elementos que se relacionam com o som mas não são o próprio som, são o entorno dele, aquilo que influencia a feitura da obra de som e é também influenciado por ela, a moçada chama isso geralmente de contexto cultural. Assim, enfim, comecei a falar e ouvir, escrever e ler sobre som.

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A primeira curiosidade que notei foi que as resenhas que eu lia costumavam seguir uma ou várias dentre essas vertentes:

Descrição da mecânica sonora

“Baixo pulsante, batera moendo”. Bom, se o baixo pulsa e a batera mói, não tem nada errado em dizer que eles o fazem, mas isso não me serve muito. A não ser que essa informação esteja em um catálogo de venda, o qual eu lendo posso usar pra decidir “se a batera não mói eu estou fora, joe”, assim não corro o risco de, desavisado, comprar um disco em que a batera só fique marcandinho;

Influências

“Uma onda Pink Floyd com uma pitada de Depeche e um quê de Diana Ross”. São legais de certa forma, é algo bacana buscar relações com a história, entretanto me apavoram os dissecadores de influências vestidos de jaleco que buscam as combinações mecânicas de elétrons históricos que formam aquele composto e saem loucaços do laboratório gritando “Ahá! Você não pode gostar do White Stripes sem ser fã do Led, meu chapa!”, como se o espírito absoluto não pudesse escapar de suas fórmulas. Me lembro do exato momento em que resolvi internamente essa questão de uma vez por todas: alguém me disse “Neon Indian é puro New Order!” e eu respondi “É, parece mais com o New Order do que com o Creedence, mas sei lá”;

Equipos utilizados

“Fender Telecaster, Ampli Mesa-Boogie, palhetas Dunlop 1.5mm”. Pra ser sincero o estilo Guitar Player só me chateou até a primeira adolescência, desde então passei a achá-lo é muito legal e a querer muito ver uma gravação minha resenhada por estes cabeleiras enxadristas que esmerilham uma guita e me desprezam porque eu obviamente não consigo esmerilhar como eles. Tem algo de profundamente justo no julgamento desses caras. É como uma prova de 100m rasos: ganha quem corre mais, não dá pra falar que o vencedor era amigo do juiz;

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Esse cara pode ter o defeito que for mas quando o assunto é esmerilhar não tem discussão

Histórico do artista

“Os caras trabalhavam como caçadores de cobra no Arizona e começaram a tocar na garagem do batera depois do expediente”. Especialmente antes da internet eu ficava fulo da vida se uma resenha não se ocupasse com o mito fundacional do artista, essas cosmogonias são algo muito sério e definem muito do que o artista é e de como ele pode povoar sua imaginação. Na real isso merece uma análise à parte;

Cópia do release horrível

“O cantor busca trabalhar com as cores cinza e grená”. Esses casos deveriam vir com a advertência ‘calcado no release’, assim salva-se ao menos a sacrossanta honestidade;

Jargões bundões

"Melhor que muita banda por aí", "é x [pop] sem ser y [banal]", "um caldeirão de influências/salada musical";

Jargões legais

"Som trampado", "musicão", "uma castanhada na cabeça".

Sim, eu comecei parecendo que criticaria os cacoetes de resenha e acabei percebendo que gosto de muitos deles. Acho que a vida é assim mesmo. Quando mais velho percebi algo mais sobre o que análises de música (e de qualquer arte afinal) podem se tornar. Sendo a música uma obra de arte (ou ao menos uma tentativa de) ela tem aspectos, no limite, infinitos e indefiníveis, e uma resenha pode tomar a forma de exploração de um ou mais destes múltiplos aspectos.

E as resenhas que saem por aí são assim? Algumas, mas normalmente não, e isso tem um motivo. O motivo é que muitas delas são aquelas resenhas a toque de mercado que saem no dia seguinte ao lançamento do disco, doidonas pra definir o que ele é, o quão bom ele é e o que ele fará com o cenário histórico. O cara chega todo afobado “Disco de Rapper Kanye West Lançado Ontem Vai Tomar de Assalto o Traseiro dos Publiças”. Eu já penso “Vai com calma, joe”, ainda que o joe acerte algumas também, não é o caso de a gente ficar aqui detonando o joe. Entretanto é preciso ficar esperto com a sanha que esses tipos têm em definir logo a obra e te explicar o que você vai falar dela na festinha dos bróders, isso torna a coisa toda mais pobretona.

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Tem também aquelas na linha “Neste Novo Disco Cantor Justin Bieber Procura Mostrar que Atingiu a Maturidade”, aí todo mundo vai na mesma, eu não sei por que existe esse tipo de resenha. Ou melhor, sei sim, todo mundo sabe, o que me pergunto é por que não escrevem tudo antes de ouvir logo de uma vez, é o que eu faria: “Cantor Bieber Dá Novo Passo e Agora Quer Pixar Muro Sozinho e Afanar o seu Mizuno”, não tem muito o que dar errado.

“Enquadrei o cara e falei ‘perdeu, playba’ rs” Fonte.

E daí então? Daí que vou defender aqui duas idéias, seguem:

- Uma: as resenhas têm diferentes tipos, diferentes intenções essenciais, das quais citei algumas. O negócio é procurar entender qual é o tipo dela e o que ela quer, algumas delas são mesmo monstrengos, querem ser monstrengos e estão aí pra fazer o que todo monstrengo faz: perturbar a gente tarde da noite. O melhor contra monstrengo ainda é o disfarce Scooby-Doo: colocar ele numa cadeira de barbeiro, cortar-lhe o cabelo e dizer que ficou jóia, ele fica lá todo perdidão.

“Como eu sempre digo, Sugar Ray Robinson nunca enfrentou o Maguila né hehe”

- Duas: as análises de arte não precisam ser determinadas por momentos comemorativos (lançamento, aniversário de 10 anos, ‘coming to brazil’, etc), podem também ser disparadas por outra motivação, mais misteriosa, cuja melhor definição que consigo dar é: a crença do autor da análise em ter captado, naquele momento, algum aspecto da obra/artista que não tinha se apresentado a ele ainda (ou até tinha, mas de forma obscura, não passível de ser expressa por ele em palavras, desenhos, GESTOS, MÍMICA sei lá) e surgiu clara, de repente, por algum motivo que ele também não sabe qual é. Ou, em outras palavras, porque veio na cabeza do cara e ele quis falar.

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Por exemplo, o sujeito pode por alguma razão estar ouvindo na sequência os álbuns The Notorious Byrd Brothers e Sweetheart of the Rodeo dos Byrds e como um clarão de luz uma idéia se apresenta a ele, uma idéia nova sobre o momento em que, pouco antes de gravar o Sweetheart, Roger McGuinn teria se convencido de que eram boas as idéias do novato de banda Gram Parsons de gravar um álbum calcado em country tradiça, em alguma conversa do tipo:

Roger (drink na mão) - “Sabe Gram, estou pensando em me afundar em elementos eletrônicos, uns moogs, como fiz de leve naquelas do Notorious. Acho que é o futuro hein, man.”

Gram (meio rindo aqueles risões de zuar velho amigo) - “Roger, deixa de ser ridículo rs.”

Que Deus o tenha, Gram.

Trata-se de pensar que uma obra pode ser grande o suficiente pra jamais se esgotar e, mais do que isso, reparar que a cada vez que você volta a atenção pra ela ela é uma obra diferente, igual aqueles amigos que vão morar um tempo na Suécia e voltam com os olhos cheios de candura e bem-aventurança.

Trata-se, em suma, da idéia de que uma obra de arte não é um mero dado histórico encerrado, mas um ser vivo que vai se desdobrando, se apresentando, no tempo e no espiritão das pessoas que entram em contato com ela.

Pode parecer uma ideia óbvia até porque é óbvia mesmo. Eu tenho comigo a essa altura da vida que os melhores insights são os que se tornam óbvios logo que realizados, isso porque o óbvio é diferente do fácil e é preciso esticar bem os dedos pra captar que o conhecimento do óbvio é algo que exige empenho, o empenho em se desvencilhar de todo engano que vai se impregnando e tornando o ambiente maldito.

Pode parecer também que não faz muita diferença encarar uma obra como um dado histórico encerrado ou como um ser vivo que se desdobra, mas se repararmos bem a diferença é enorme, ao ponto de que tomado dessa forma o universo das resenhas de som (e o resto do universo cultural além dele) se torna mais rico, mais bonito, mais legal de se habitar e, logo, a vida fica muito mais joia.

Siga Stan é um roqueiro cabelêra de espírito e opera o selo CloudChapel, que também está no Twitter: @cloudchapel