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Música

Zine é Compromisso: Escarro Napalm

O zine sergipano ajudou a divulgar a cena nordestina nos anos 90, sempre misturando música, quadrinhos e um tiquinho de pornografia

O fanzine Escarro Napalm, do sergipano Adelvan Kenobi, circulou entre 1991 e 1995. Antes disso, porém, teve uma espécie de "versão piloto", intitulada apenas Napalm, cujo primeiro número saiu em abril de 1988. Naquela época o Adelvan, que atualmente produz e apresenta um programa de rock chamado "Programa de Rock" (SIM!), no ar todo sábado às 19h pela 104,9 FM de Aracaju, nem sabia o que era conceitualmente um fanzine. Interessado apenas em influenciar amigos próximos a curtir um rock, o Napalm era, para ele, uma apostila informativa, que trazia basicamente pequenas biografias de bandas clássicas, tipo Led Zeppelin, AC/DC, Metallica e Venom. Por ser veiculado à época no interior do estado, em Itabaiana, a tal apostila chamou atenção dos proprietários da primeira loja especializada em rock da região, a Distúrbios Sonoros, que ficava na capital.

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Foi o Silvio, um dos donos da loja e vocalista da mais destacada banda de punk/hardcore de lá, a Karne Krua, que achou o projeto inusitado e decidiu escrever pro Adelvan. "Eles me disseram que o que eu estava fazendo se chamava fanzine, uma espécie de revista de fã, e ajudaram a fazer uma tiragem maior - 100 cópias - da edição número #5, que passaram a vender na loja", relembra o então diletante editor. "Ele me mandou um pacote cheio de publicações, panfletos e informativos ligados à cena punk, e foi assim que eu fiquei sabendo que havia uma verdadeira rede subterrânea fazendo circular informações sobre um cenário que eu não tinha ideia da existência."

O Napalm, cujo nome foi tirado daquela célebre casa noturna de São Paulo, acabou porque o Adelvan entrou na facul e, segundo ele me contou, "não tinha mais tempo nem dinheiro sobrando". Tão logo deixou o curso, ele mudou-se para Aracaju e retornou a fanzinar, dessa vez já num formato mais amadurecido em relação à experiência anterior e nomeado Escarro Napalm.

Curiosamente, apesar do nome meio agressivo, a publicação não era focada apenas em grind ou hardcore. O zine do Adelvan, na real, sempre foi um bocado eclético, já que àquela fase da vida ele pirava naquilo que chamávamos por aqui de "guitar bands". Ou seja, umas paradas tipo Pixies, Sonic Youth, Nirvana, Dinosaur Jr, Pin Ups, Killing Chainsaw e afins. Fora isso, o rock industrial também embalava a elaboração das edições: Ministry, Nine Inch Nails, Laibach, e uma banda gaúcha chamada GDE - Grupo de Extermínio. O foco era sempre na música independente, "underground", mas num aspecto bem amplo e diversificado. Isso significa que, numa mesma edição, o leitor encontrava uma entrevista com o No Sense, de Santos, pioneiros do grindcore nacional, e uma matéria sobre o Second Come, expoente "guitar" do Rio.

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Do nordeste brotavam pautas com o Câmbio Negro HC e o Eddie, de Pernambuco, e o Living In The Shit, de Maceió. E rolava também umas mini-bios apresentando bandas locais, como a já citada Karne Krua e o Camboja, uma espécie de projeto industrial lo-fi que o Adelvan curte até hoje: "Era genial, uma das bandas mais criativas e interessantes que já tivemos por aqui - e olha que o cenário local hoje é riquíssimo e bastante diversificado. Mas o Camboja marcou demais na época. Era diferente de tudo."

Neste terceiro post da série de entrevistas Zine é Compromisso, que já abordou o trampo dos fanzineiros Márcio Sno (Aaah!!) e Gilberto Custódio (Esquizofrenia), papeei com o Adelvan sobre sua experiência na confecção e apuração das matérias que recheavam o Escarro Napalm. Chega mais:

Noisey: É verdade que, quando você começou a fazer o zine Napalm, você nem sabia o que diabos era um fanzine? Como foi que você se deu conta de que estava editando um zine?
Adelvan Kenobi: Sim, é verdade. Eu nasci e morava em Itabaiana, cidade do interior do estado de Sergipe, e comecei a ser atraído pelo universo do rock através do que via na TV, principalmente - e quando eu falo TV, aqui, falo da TV aberta, pois na época, meados da década de 1980, não existia TV por assinatura. De vez em quando o Fantástico fazia uma matéria sobre o assunto e então subitamente a gente ficava sabendo que existia um bando de malucos autodenominados punks, em São Paulo, que tinham um comportamento exótico e agressivo, e só. Com o Rock In Rio o estilo ganhou mais evidencia e eu comecei a me identificar com tudo aquilo. Tinha 14, 15 anos. Algumas revistas chegavam por lá, como a Bizz, Roll e Somtrês. Em Aracaju chegava a Rock Brigade, e foi através dessas publicações que eu fui me aprofundando naquele mundo, totalmente novo para mim. O ciúme que eu tinha de minha nascente coleção aliado à vontade de compartilhar as informações me levou a ter a iniciativa de fazer uma "apostila" - sim, era assim que eu chamava! - xerocada para distribuir entre alguns amigos, na ânsia de que mais pessoas se interessassem também pelo assunto e eu tivesse, finalmente, com quem conversar.

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O que rolou no hiato entre o Napalm e o Escarro Napalm?
Eu cheguei inclusive a manter alguns correspondentes fora do estado, com o Napalm, mas muito poucos, três ou quatro, no máximo. Depois que saí da faculdade, fiz minha primeira viagem a São Paulo - e ao Rio, fui a Rock in Rio II, no Maracanã - e fiquei deslumbrado com toda aquela movimentação. Na viagem de volta, me lembro bem que, observando aquele caos urbano, metrô, marginal, fui me dando conta de que poderia dar minha contribuição daqui mesmo do meu cantinho do mundo, e resolvi me integrar à cena local, ajudando a organizar shows e voltando a fazer um fanzine. Dessa vez com mais cara de "revistinha", algumas folhas de papel A4/oficio dobradas e grampeadas na lombada. O Napalm era grandão, pesadão. O Escarro foi melhor planejado, fiz menor e com menos páginas para que pudesse tirar mais cópias. Lembro que tirei cerca de 20 cópias e mandei todas de uma vez para alguns endereços que me chamaram a atenção na coluna "Run, Xerox", da revista de quadrinhos Animal, que eu colecionava, e foi assim que tudo (re)começou. A primeira pessoa que respondeu foi o Fellipe CDC, de Brasilia, de quem sou amigo até hoje.

Quantas edições saíram do Escarro Napalm e qual era sua periodicidade?
Teve sete edições regulares e uma edição especial. Não havia uma periodicidade definida, mas eu geralmente conseguia fazer um a cada seis meses, aproximadamente. O número #2 eu fiz numa edição conjunta com o Buracaju, zine que Silvio, da Karne Krua, editava desde os anos 1980. Foi bem legal porque foi meio experimental, o Silvio tava afim de fugir um pouco daquela estética punk engajada e então fizemos uma coisa bem livre, com os assuntos que nos viessem à mente. Assinamos, inclusive, alguns textos juntos, como um no qual criamos uma banda fictícia extremamente radical, satirizando os extremos do underground.

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Havia uma abertura legal para a publicação de quadrinhos também, não é?
Sempre abria espaço também para os quadrinhos. Era muito amigo do Joacy Jamys, do Maranhão, grande desenhista. Ele fez uma das melhores capas do Escarro - as duas primeiras, tosquíssimas, eu mesmo desenhei, mas depois recebi excelentes colaborações de verdadeiros artistas talentosíssimos, como o Edgar S. Franco, de Minas, Cláudio MSM, do RS, Henry Jaepelt, de Santa Catarina, Alberto Monteiro, do Rio, e Yury Hermuche, que morava em Brasilia e hoje está radicado em São Paulo, toca no Firefriend.

Teve alguma publicação temática, com uma história curiosa ou diferente para contar?
A última encarnação do Escarro foi uma edição especial gigante e meio megalomaníaca que eu chamei de DELIRIUM. Ficou tão grande que eu não tinha como grampear, então resolvi lançar encadernado em espiral com capa em acrílico! Não deixou de ser uma espécie de retorno às origens das "apostilas", mas desta vez bem mais caprichada e "charmosa". Desnecessário dizer que ficou também muito caro, e por isso acabou tendo uma tiragem reduzidíssima. Acho que não chegou a 30 exemplares. Mas não tinha nenhum tema específico, não, seguiu a linha do fanzine regular mesmo, falando um pouco de tudo - Nietszche, Lampião, pornografia e resenhas do Segundo Juntatribo por Andhye Iore, de Maringá, e do BHRIF - sensacional festival que aconteceu em 1994 em Belo Horizonte e que trouxe o Fugazi ao Brasil pela primeira vez.

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O que motivou o fim da publicação e com que outros projetos similares você se envolveu depois? Você se empolgaria a voltar a fazer fanzine hoje em dia, nos moldes dos zines atuais, que geralmente se dedicam mais a essa coisa de papéis e impressões híbridas?
Tenho notado isso, que os zines de hoje em dia estão, no geral, bastante elaborados, visualmente e em termos de texturas, com tipos de papel diferenciados. Faz sentido, é uma forma de se ter um "plus" em relação aos arquivos digitais. Mas isso não é exatamente uma novidade, está mais para uma tendência. Havia zines bastante elaborados e em formatos criativos, com dobras diferenciadas, nos anos 1990 também. Uma coisa que muita gente elogiava nos nossos fanzines, tanto os meus como os do Silvio, era a qualidade das cópias. Procurávamos sempre as melhores máquinas da cidade para valorizar nosso trabalho - que não era pouco. Tanto que muita gente achava que era impresso em gráfica! Eu ficava puto com o Jamys, por exemplo, que sempre mandava ótimos zines, muito bem desenhados e diagramados, mas em cópias horríveis, às vezes ilegíveis. Então essa preocupação com a estética existia. Nisso fui bastante influenciado pelo Silvio, ele era especialmente bom em diagramação e vivia experimentando novas técnicas para obter um resultado visual diferenciado, como quando começaram a aparecer as xerox coloridas. Lembro que ele lançou alguns fanzines em xerox azul, e eu usei no DELIRIUM uma técnica que aprendi com ele para deixar a capa em duas cores: primeiro imprimia uma parte da imagem numa cor, no caso, preto, e depois outra imagem por cima em outra cor, no caso, vermelho. O resultado ficou bem legal.

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Tanto trampo e dedicação acabou te vencendo pelo cansaço?
O fanzine acabou por puro cansaço. Simplesmente não conseguia mais responder às pilhas de cartas que só faziam crescer e se acumular. Passei uns bons dez anos, de 1995 a 2005, aproximadamente, trabalhando "nos bastidores", digamos assim. Nunca deixei de frequentar a cena: tive uma loja especializada, ia a shows e apoiava os eventos na medida do que me era possível, mas não tinha mais um veículo no qual pudesse me expressar. Tudo mudou à medida que a internet foi se popularizando, especialmente com a chegada dos blogs e das redes sociais. A principio hesitei, era muita informação e eu me perguntava se o mundo realmente precisava de mais, mas aos poucos fui notando que a cena local, sim, carecia de mais e melhores registros. Então retomei o Escarro em formato de blog. Está lá, no ar. Atualizo sempre que posso. Produzo também um programa de rádio na emissora pública local, a Aperipê FM, que pode ser ouvido ao vivo on-line todo sábado a partir das 19h em www.pdrock-sergipe.blogspot.com

Qual era o seu envolvimento com a cena underground local à época do lançamento das primeiras edições? Você já tinha bastante acesso a novidades, ou já tinha essa coisa de ser um garimpador de música e uma veia politizada?
Aos poucos eu fui descobrindo a cena "alternativa", frequentando os shows e fazendo novos amigos. Às vezes ajudava a produzir, mas minha onda era mais a de registrar, mesmo, daí os fanzines. Em todo o caso, já cheguei a fazer parte de uma banda, um dos muitos projetos de Silvio - sempre ele - que se chamava ETC - depois 120 Dias de Sodoma - e era uma espécie de noisecore pornográfico com influências de todo tipo, do rap aos ritmos regionais. Isso antes do Raimundos e do mangue beat! Foi uma espécie de desabafo esporrento do Silvio contra o patrulhamento ideológico "politicamente correto" dos punks, ao qual aderi entusiasticamente. O acesso às novidades era bastante restrito, pelas próprias limitações tecnológicas da época mesmo. O grande canal era o dos zines, através dos quais a gente ficava conhecendo antes, inclusive, algumas bandas e nomes que posteriormente teriam projeção maior, como o Pato Fu - tinha contato com o guitarrista John via carta - e a Pitty, que eu conheci no Inkoma. Tocava muito aqui naquele velho esquema DIY, "colaborativo". Já os hospedei em minha casa, inclusive. Tudo foi mudando aos poucos, primeiro com a chegada da MTV, depois com a popularização da internet. Vivemos praticamente num mundo diferente, neste sentido, hoje em dia. Admirável mundo novo. Para o bem e para o mal.

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Como funcionava a parte de distribuição e qual era a média de tiragem das publicações?
A tiragem variava entre 100 e 150 cópias. Geralmente trocadas por outras publicações ou demos de bandas. Quase sempre via correio. Caso a pessoa estivesse interessada e não tivesse nenhuma produção a oferecer, a moeda de troca eram selos. Muitas vezes com cola, para que fossem reutilizados - lavava-se os selos para que o carimbo dos Correios saísse.

Se você fosse assinalar as pautas mais importantes da música que o Escarro Napalm teve a chance de registrar em suas páginas, quais seriam?
Entrevistei a Gangrena Gasosa - sou fã - e o Patu Fu em início de carreira - pirei quando ouvi o primeiro disco deles, o Rottomusic de Liquidificapum, que acabou chegando nas lojas daqui porque foi lançado pela Cogumelo, gravadora especializada em metal. Fui convidado, representando o Nordeste, a participar de um seminário sobre fanzines durante o BHRIF (Belo Horizonte Rock Independent Fest), o festival que citei anteriormente. Foram, provavelmente, os melhores dias da minha vida, pois a estrutura do evento era inacreditável. Dentre outras coisas, tomei chá com torradas com Ian McKaye do Fugazi enquanto ele dava uma entrevista para os camaradas Gabriela Dias, do zine/revista Panacea, e o Eduardo Abreu, que fazia uma revista chamada 100 Tribos. Inesquecível. Tenho também orgulho de ter ajudado a divulgar, na medida do possível, as bandas daqui, como Camboja e Karne Krua, e a Snooze. Fiz o primeiro informativo deles, em forma de fanzine.

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Qual a lição que a cultura dos fanzines dessa época em que o Escarro Napalm foi editado deixa para os veículos especializados em música da atualidade?
O "mal" do "mundo novo" a que me referi antes é justamente o excesso de informação, que deixa tudo confuso e, muitas vezes, nivelado por baixo. Tá tudo junto e misturado e isso, como tudo o mais na vida, traz um bônus e um ônus. O bônus é a democratização do acesso à informação, o ônus é a falta de um filtro. Também não é novidade, vinha muita merda inútil no meio das pilhas de zines que eu recebia mensalmente, nas antigas. Mas, por conta do volume praticamente infinito de bytes ao qual temos acesso hoje em dia, fica mais difícil encontrar esse filtro. Aos poucos, contudo, algumas publicações mais bem cuidadas e elaboradas vão se sobressaindo naturalmente, e as coisas tenderão a se normalizar, imagino. É uma luta constante esta, contra a homogeneização e o nivelamento rasteiro. Contra o "mais do mesmo".

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