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Música

Zine é Compromisso: Márcio Sno, do “Aaah!!”

Entrevistamos e resgatamos uma série de zines que fizeram diferença no underground musical brasileiro. No primeiro número, o paulistano Márcio Sno

Curtir rock nos anos 1990 no Brasil era um grande barato. Apesar das corriqueiras dificuldades pra conseguir material e informação, a cena fervilhava de coisas malucas e alimentadas pela clássica dupla tédio e energia juvenil. Mas a melhor parte dessa história não foi contada pelas revistas de banca, não. A voz da galera que tinha algo bacana e honesto a dizer foi amplificada, na real, pela imprensa alternativa – ou como qualquer punk que tem um jaco com um patch do Misfits sabe, os zines. Os fanzines que, não raro, até chegavam a pautar os espertões da “grande mídia”. Um dos mais dedicados produtos dessa cultura underground foi o zine Aaah!!, do paulistano Márcio Sno. Eu me lembro que, de saco cheio de me decepcionar com as pautas das publicações roquistas de então, chegou às minhas mãos uma edição do zine do Márcio e pensei, "É isso, agora só vou ler zine".

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Foi a melhor coisa. Naquelas páginas fui apresentado a bandas como Dead Fish, Poindexter, Mukeka Di Rato, No Violence, Anarchy Solid Sound e a galera anarco-punk do Execradores e do Metropolixo, entre várias outras paradas legais. Enfim. Depois de um tempo abafada pelo frenesí das ferramentas de comunicação digital, a cultura zineira vive um momento muito promissor. Uma pá de gente criativa anda produzindo, lançando editoras independentes, distribuidoras, agilizando feiras, realizando documentários, livros, oficinas e palestras sobre o tema. Para ficar em apenas dois exemplos, no fim de semana que vem, dias 8 e 9, vai rolar a segunda Feira Plana no MIS, em São Paulo, e tem a galera da Ugra Press: desde 2010 eles vêm metendo ficha com a publicação e fomentação da cultura independente, à frente do evento Zine Fest e do Anuário de Fanzines, Zines e Publicações Alternativas.

Embarcamos nessa onda pra iniciar aqui mais uma série de entrevistas. Dessa vez, com alguns dos zineiros musicais que contribuíram para movimentar a cena e torná-la menos modorrenta. Com a palavra, o camarada Márcio Sno:

Noisey: Quando você começou a fazer o Aaah!!, no começo dos anos 1990, qual era o seu lance com o underground? Você já vinha colaborando com outras publicações?

Márcio Sno: Meu primeiro contato com zines foi em 1993. Eu mantinha contato com bandas independentes, que eu encontrava na seção "Headbanger Voice" da revista Rock Brigade, e esta seção tinha uma retranca com anúncios de fanzines. Eu não fazia ideia do que se tratava. Não tinha esse verbete no dicionário e tampouco internet pra dar um Google e achar a definição. O que eu fiz? Mandei uma carta para alguns zines perguntando “como faço pra adquirir seu zine?”, na maior banca de quem sabia do que se tratava. Então, devo ter mandado alguns selos (moeda corrente na época) e recebi alguns. “Hummm… então zine é isso?”, pensei. Como eu já conhecia algumas bandas e também desenhava, colaborei para o Solid Solution (da banda Anarchy Solid Sound), e para o Secret Face, o primeiro zine que tive em mãos. Um dia, no caminho para o trabalho, lendo um zine no ônibus, me veio o pensamento: “Péraí… Eu também posso fazer um zine!” Pronto. Essa ideia martelou minha cabeça e eu comecei a produzir. O intervalo entre eu conhecer e fazer zines foi muito curto e os que me inspiraram mesmo foram esses que eu recebi na época. Era o que eu tinha.

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Pelas páginas do seu zine passaram praticamente todas as bandas que faziam diferença no underground da época. Elas que chegavam até você, ou você que saía à caça de descobrir coisas interessantes?

Eu sempre fui uma pessoa muito curiosa, em busca de conhecer algo novo, além daquilo que a mídia convencional oferece. Com o tempo você não aguenta ouvir as mesmas músicas na rádio. Foi nessa pegada que passei a buscar bandas independentes. Lembro-me que a primeira demo-tape que ouvi foi a do Scum Noise. Passei a ficar fascinado com toda essa coisa de banda independente que gravava fita e distribuía via correio. Era muito legal trocar ideias e ser amigo de músicos de bandas de rock. Quando comecei a fazer o Aaah!!, eu me bitolei na história de fazer zines e queria desesperadamente divulgar as bandas que eu conhecia. Sem saber, estava fazendo o papel de jornalista. Mais tarde, segui nessa profissão. Como eu sempre gostei de muitos estilos diferentes, tinha contato com bandas desde o hard rock até o mais extremo noise. E isso se refletia nos meus zines, tinha banda de tudo que era tipo. Nessa época eu espalhava muitos flyers e meu zine passou a ficar muito conhecido. Logo, recebi materiais de muitas bandas de todos estilos e lugares. Chegou um período que eu nunca mais escrevi para uma banda pedindo material: elas já mandavam sem eu solicitar. Então, conheci muita banda. E todas entravam nos meu zines e em coletâneas em cassete que lancei, sem falar na troca de gravações em fita que eu fazia com os amigos. A divulgação era meio que algo natural, não tinha aquela parada de esperar que a banda ficasse famosa, a ideia era espalhar o material da galera e fazer circular. E isso acontecia de forma muito eficaz, mesmo sem nunca imaginarmos a internet.

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Você tinha uma tiragem grande desse fanzine? Como rolava pra distribuir, printar? Xerox, correio e banquinha em shows?

Essa era a parte mais difícil de quando se produzia zines. Talvez ainda seja. 90% das vendas e trocas dos meus zines eram feitas via correio. Alguma coisa em shows e eventos. Naquela época a situação financeira de zineiros não era muito fácil. Como éramos adolescentes, jovens, nossos trabalhos eram os mais básicos, como office-boy pros meninos e recepcionista para as meninas. Logo, a nossa remuneração era muito baixa. Então, era muito difícil fazer tiragens grandes. A minha tiragem era na linha “on demand”, mas na demanda do meu bolso! E a tiragem acabava automaticamente, pois geralmente a gente trocava os zines por demos, camisetas, ou mesmo outros zines. Às vezes tínhamos a sorte de conseguir fazer cópias de graça com amigos ou mesmo alguns esquemas para conseguir mais barato, e era assim que a gente se virava: não ganhava nada de grana, mas fazia a coisa circular.

Quanto tempo durou o zine, e por que ele acabou? Você migrou pra outros projetos na sequência?

O Aaah!! durou seis edições, sendo que uma delas teve 120 páginas! Sim, isso aconteceu! Cheguei a lançar duas do Don’t Worry! junto com minha companheira Joelma, também fiz o erótico Pleasure, o Ejaculação Precoce (zine de bolso) e, anos mais tarde, o Arreia. Também participei de um monte de zines coletivos e colaborei para inúmeros zines pelo Brasil e mundo. Nessa época, eu também fiz muitos desenhos e ilustrações para milhões de zines e bandas, sendo uma das mais conhecidas a Mukeka di Rato (para a qual ainda faço alguns trabalhos). Já tive ilustrações em camisetas, discos, demos, flyers, adesivos… Tudo isso feito na base da camaradagem.

Nas antigas, enquanto enfrentávamos problemas pra fazer jornalismo cultural independente, sonhávamos com ferramentas que facilitassem nosso trampo. Aí hoje temos os blogs, as redes sociais e outras plataformas/ferramentas digitais, mas coisas criativas e interessantes brotam de poucas delas. Você concorda comigo?

Pois é… Tínhamos mesmo essa parada de ajudar a espalhar o que a mídia não dava bola. Era um ajudando o outro, criando novos canais de comunicação, novas redes analógicas, novas formas de pensar e criar. Confesso que não tenho paciência alguma de seguir algum blog ou página. Geralmente vou naquele link que algum amigo meu indica. A internet é um universo absurdo de gigante e esse excesso de informações acaba sendo disfuncional. Sei lá. A internet é muito legal, mas tem essa parada que acho bem perigosa, como naquela máxima: fala tudo sem dizer nada. Hoje todo mundo acha que é jornalista quando coloca alguma coisa na internet, sem compromisso com o que é bom, tampouco com o que é verdadeiro. Tudo é instantâneo e efêmero. Assim como a minha fala, a internet tem esse sentimento contraditório que, pra quem é “das antigas”, soa bem estranho. Na época do analógico fazíamos tudo daquele jeito, com aquela organização, aquela forma de comunicar, porque não tínhamos parâmetros para medir se aquilo era absurdo ou não. Hoje, com tudo digital, dá pra analisar o quanto tirávamos leite de pedra! Era o que tínhamos e não havia mais opção. Sei que é difícil, mas se alguém que faz blog tentasse viver por três meses produzindo zines em formato analógico, acho que a criatividade dos blogueiros poderia dar uma turbinada.

Nos últimos tempos pintaram vários eventos, como a Feira Plana, além cooperativas e projetos de zines artesanalmente muito interessantes. Você acha que podemos afirmar que esse tipo de publicação está retomando seu posto na cena alternativa?

Os zines de papel estão em uma nova fase. Eles têm outro perfil, outra funcionalidade, outra forma de serem feitos. Como pesquisador sobre o assunto desde 2005, acompanhei as mudanças do formato impresso tanto em âmbito nacional como internacional. Nesse período, a morte dos zines foi decretada “n” vezes, por conta da “ameaça virtual”, questão que hoje em dia já está um pouco melhor resolvida. O zine atual não tem mais o objetivo exclusivo de divulgar bandas ou artistas independentes. A internet resolve de alguma forma isso. Com isso, boa parte dos zineiros da atualidade prefere realizar suas produções em papel utilizando de recursos diferenciados de impressão, dobraduras, encadernação, gramaturas de papel, textura, cheiro, enfim… O material impresso tem que ter uma função que vá além de informar ou divulgar algum trabalho: precisa ter uma razão de ser, ou seja, aquele zine que faz um barulhinho quando você abre, que necessita desfazer algumas dobras para acessar o conteúdo… Temos muitos exemplos disso, nas obras de Rodrigo Okuyama, Flávio Grão e Daniel Hogrefe, por exemplo. São zines que vão muito além do sulfite xerocado: são expressões artísticas que fazem o underground respirar.