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Música

Como David Bowie se tornou um ícone da libertação sexual

Para quem sentiu a dor dos moldes da sociedade, Bowie é um farol.

Quando eu era criança e sentava de indiozinho no tapete dos meus pais, ouvir “Heroes” pela primeira vez foi o equivalente sonoro de se apaixonar. Simples assim. Eu encontrei O Cara, e milhões de outras crianças sexualmente confusas e auto proclamadas esquisitas, de 1969 até esse segundo — e no futuro visível — também haviam encontrado. Nós dividimos um caso de amor para toda a vida com nosso herói de muitas máscaras, David Bowie.

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Como outras pessoas com cerca de 30 anos, eu coloquei uma imagem à voz quando eu vi Labirinto. A estrela do filme de 1986 era um Bowie de mullets como Jareth o Rei Goblin, mas foi seu pacote apertado pela lycra que roubou nosso olhar. “Mamãe, quem é esse cara com o cabelo arrepiado, jaqueta de lantejoulas, maquiagem trabalhada, e porque suas calças apertadas me fazem sentir coisas?” Quando criança, Labirinto era amigavelmente assustador por motivos além de todas aquelas mãos monstruosas agarrando a jovem Jennifer Connelly. Era um momento de despertar sexual inspirado não por um pôster dos Backstreet Boys colado na parede, mas por um homem andrógeno velho de mais para mim, que cantava tão confiantemente sobre uma pessoa chamada “Queen Bitch” (e o fazia enquanto usava batom dourado). A fantasia que ele inspirou não era uma de mãos dadas, rosas vermelhas, e longos olhares trocados, mas ao invés, tanto com Bowie como Jareth, a fantasia do sequestrador começou a provocar nosso nascente erotismo. Provavelmente não era o que o diretor Jim Henson queria, mas ok, foi essa a minha experiência.

Conforme eu cresci, eu descobri a masturbação, e então comecei a transar, para alguém cuja atração sexual nem sempre se encaixava no padrão heteronormativo, não havia mantra mais reconfortante do que: “Se o Bowie fez isso, deve ser ok”. Ver exclusivamente porno de lésbicas com strapons enquanto estudante universitária na Carolina do Norte conservadora parece bem menos estranho do que se lembrar que a infame ex-mulher de Bowie, Angie, supostamente o encontrou na cama com Mick Jagger. Mas enquanto ícone para o sexualmente diferente, o papel de Bowie foi mais longe do que apenas assumir sua bissexualidade. Não era só o que ele dizia, mas a forma como ele se apresentava também. Bowie é o tipo de cara que pode se montar como drag como na capa de 1970 de The Man Who Sold the World, suavemente inclinando sua cabeça envolta em cachos dourados (não vamos esquecer que o homem de muitos cabelos era, aos 17 anos, fundador da Sociedade para a Prevenção de Crueldade Contra Homens de Cabelo Comprido). Ele é o tipo de artista sem medo de adotar o glamour desfocado das estrelas de Hollywood dos anos 30, como ele fez na capa de Hunky Dory de 1971 (uma clara referência a fotos de Marlene Dietrich como essa aqui). E ainda assim, de certa forma, esse curioso marciano era um artista que todos os terráqueos admiravam — de caras hétero em ternos a meninos gays com glitter nos olhos.

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Bowie primeiro se anunciou para o mundo com sua estreia homônima de 1967 como o bem britânico, muito bonito David Jones. Seu som à época era decididamente um tipo alegre de folk psicodélico — apenas não coloque seu nome na mesma frase que “hippie”, uma palavra que ele aprendeu a detestar. Mas não foi até “Space Oddity” de 1969 que ele se lançou no mainstream, e a surrealidade dentro dele começou a emergir, deixando a mídia da velha guarda perplexa. Em um episódio de 1972 do programa de música ao vivo da BBC, The Old Grey Whistle Test, Bowie foi introduzido com uma narração que dizia: “Esse é o rosto que o público quer… um ex-estudante de arte de Brixton que se transformou em uma aberração auto construída”. No mesmo ano em que o lendário fotógrafo Mick Rock tirou uma foto de Bowie simulando felação/limpando seus dentes com cordas de guitarra, a revista de música inglesa Melody Maker perguntou a Bowie sobre sua afinidade por vestidos femininos, ao que ele respondeu, “Ah querido, você precisa entender que isso não é de mulher — é um vestido para homens”. Depois, na mesma entrevista o cantor exclamou, “Eu não sou ultrajante, eu sou David Bowie”.

O glam rock abraçou e celebrou a androgenia, extravagância, e o amplo uso de maquiagem, mas o que é impressionante em Bowie é que ele não continuou preso no mundo de glitter do gênero. Com suas aparências sempre mutantes ele nos deu farol verde para explorar nossas facetas secretas. Homens héteros podiam dançar como Ziggy, homens gays podiam colocar um terno e ser mais masculino que qualquer um como o Thin White Duke. É praticamente indiscutível o impacto visual que ele teve no mundo, mas não teria sido tanto se a música de Bowie não fosse tão cativante, impressionantemente progressiva e emocionalmente ressonante. Apenas ouça de novo a Berlin Trilogy: por mais que Bowie quisesse menosprezar suas habilidades como músico, com esses discos ele deu ao mundo uma ampla obra prima. Canções como “Always Crashing in the Same Car” revelam conflitos internos, mensagens de batalhas mentais que quase soam suicidas, de repetir erros e buscar sua própria identidade. Low, o primeiro dos três, é uma fotografia sônica de sua troca de pele que resultaria em chegar ao lugar que o fez compor Heroes, que comunica uma satisfação bem mais calma e coesa.

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Em 1976 ele deu uma entrevista para a Playboy em que disse: “É verdade — eu sou um bissexual. Mas eu não posso negar que eu usei esse fato muito bem. Eu acho que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo. E é divertido também”. Ele absolutamente usou isso — assim como a forma como Mad Men apresentou Don Draper usando sua energia sexual pintuda para cortar fila na indústria da propaganda (e as mulheres que estavam em seu caminho). Mesmo assim, é bom notar que a identidade bissexual é uma que ele vestia e tirava: às vezes ele se referia como gay, então em 1983, ele disse à Rolling Stone que se assumir como bi foi “o pior erro que eu já cometi”, antes de se descrever como um “heterossexual enrustido”.

Rótulos de lado, a maioria das biografias concordam que ele era experimental — e quando se trata de sexualidade, sua exploração não era simplesmente de orientação. Sua relação infamemente aberta com Angie supostamente incluíu um menage em sua noite de casamento de acordo com uma biografia lançada ano passado, “Angie e David costumavam fazer as orgias mais impressionantes”. Aparentemente eles tinham uma ampla cama chamada “O Fosso”. O amor não precisava encaixar em nenhuma caixa: era bem mais “você gosta de mim e eu gosto de tudo”. Amor podia fazer parte da equação de se encontrar. Esqueça o amor — David Bowie ensinou como se apaixonar consistentemente, o maior desafio de todos. E sim, sexo fazia parte disso: Todo mundo queria transar com David Bowie e David Bowie deixou OK querer transar com todo mundo. Mas acontece que ao honrá-lo apenas como um campeão da fluidez sexual e de gênero ofusca sua fluidez geral. Com sua imagem sempre mutante, ele deixou OK não apenas experimentar com sua sexualidade, mas com quem você é. “Tudo bem que na facul eu fui para outro estado ver um show do Phish e tatuei um símbolo da paz na minha bunda e agora eu pareço uma tentativa de Kat Von D; eu não sou louca, eu sou como David Bowie!”

Através dos meus primeiros confusos e esquisitos anos em Nova York, pedaços de memórias incluem uma pilha de meninos e meninas bissexuais às quatro da manhã que foi de masturbação até chupar xoxota, e também teve aquele Halloween que eu passei vestida de Ziggy Stardust, perambulando pelas ruas até o começo da manhã com uma cabeça enevoada. A noite terminou sozinha em posição fetal — “Rebel rebel, your face is a mess” — mas eu repetia o mantra: Se o Bowie fez isso, deve ser ok”. E como Bowie sabia muito bem, trocar de pele pode ser bem doloroso. “Tudo bem eu ter colapsos mentais e não sair do apartamento por uma semana encolhida no chão gritando; David Bowie fazia isso o tempo todo em 1976”. Aparentemente ele até guardava seu mijo, cabelo e unhas na geladeira de seu empresário porque ele pensava que alguém iria amaldiçoá-lo. Eu até fiz o raio do Aladdin Sane nas minhas costas. O tatuador me lembrou que também parecia o logo da Gatorade no meio do processo. Ah, a impulsividade da juventude pode ser embaraçosa.

Bowie mergulharia de volta em um lugar sombrio com Scary Monsters (And Super Creeps) — disco que costuma ser visto como uma colagem de todas as suas personalidades e sons até o momento. Ele apareceria curiosamente convencional com Let’s Dance de 1983, e bem, sim, tinha aquela roupa amarela e o cavanhaque, e ninguém fala nada de Tin Machine, mas Bowie cresceria e nos impressionaria de novo com Heathen de 2002. Sua estética músical e DNA filosófico é rastreável de Boy George a Marilyn Manson a Lady Gaga, e até hoje quando ele lança coisas como o vídeo de dez minutos para “Blackstar” — todo mundo ainda presta atenção. David Bowie era o deus do rock que nem queimava nem apagava. Com toda sua experimentação, ele nunca pediu desculpas. Ele podia usar diferentes rótulos para descrever ele mesmo e sua sexualidade porque era o que ele queria no momento: ele se apoiava em suas inclinações com todo seu peso. O fato que ele ficou sóbrio e se acalmou e casou com Iman não significou que Bowie perdeu seu lado afiado. Talvez ele fosse um “heterossexual enrustido” mesmo — quem sabe? Mas em um mundo onde as pessoas agora estão assumindo rótulos cada vez mais complexos, que às vezes precisam ser mais explicados do que servem de explicação, Bowie parece cada vez mais uma pessoa que enxerga o futuro. Ele aprendeu muito tempo atrás que um rótulo ou aliança eventualmente irá mutar ou ser descartada, e que sua força está apenas em existir como ele queria no momento e no agora. Para quem sentiu a dor dos moldes da sociedade, Bowie é um farol. Tente esse mantra: “Eu não sou ultrajante, eu sou David Bowie”.

Veja "Lazarus" e relembre a abordagem radical do Bowie para a beleza.

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