FYI.

This story is over 5 years old.

Música

A Gaita Apocalíptica: Uma Viagem de Cumbia, Dub e Mistério

Com três cortes lentos e apocalípticos, o disco mergulha no caráter existencial da cumbia dos veteranos, com tratamento dubeiro que ressalta as dimensões e matizes de sua nostalgia.

Gaiteiros veteranos. À esquerda, Juan Chuchita Fernández. À direita, Toño García. Foto: Juan S. Gómez.

Um dos projetos mais importantes de 2014 [ao menos para os amigos do Noisey México] é o disco Dub de Gaita: El Fin del Mundo Vol. 1. O álbum reúne os lendários mestres da flauta indígena e vencedores do Grammy Los Gaiteros de San Jacinto com o capitão do lendário selo e estúdio On-U Sound, o mestre da mixagem Adrian Sherwood, e Diego Gómez, cabeça da gravadora colombiana Llorona Records.

Publicidade

Basicamente, é um projeto com antecedentes tão célebres como este e outros clássicos do Sidestepper, a combinação Frente Cumbiero – Mad Professor e algumas experimentações de William “Quantic” Holland, mas com aqueles que permanecem sendo os expoentes máximos da gaita – ou flauta indígena, como é chamada na Colômbia – do seu país há mais de 40 anos.

Dub de Gaita: El Fin del Mundo Vol.1 é o primeiro lançamento de uma trilogia de vinis assinada pela Llorona Records em parceria com o selo americano ZamZamRecords. Com três cortes lentos e apocalípticos (“María Sola” em duas versões, mais “El Fin del Mundo”), o disco mergulha no caráter existencial da cumbia dos veteranos, com tratamento dubeiro que, em vez de ofuscar ou distorcer, ressalta as dimensões e matizes de sua nostalgia. É como um dub de gaitas. O eco de um canto indígena e campesino, contemplativo e sábio, que aproxima o feeling do subúrbio jamaicano ao do caribe rural. Sem dúvida é um dos lançamentos mais primorosos do ano.

Por isto mesmo, sentamos para conversar com Diego Gómez, diretor do projeto, que nos contou sobre o processo por trás do disco.

Uma viagem de cumbia, dub e mistério, e para que vocês saibam do que estamos falando, aqui vai um presentinho para baixar de graça:

NOISEY: Como foi o processo de produção de Dub de Gaita?
Diego Gómez: Nós buscamos ser muito orgânicos em todo o trabalho para não abafar a música dos Gaiteros. Muitas das experimentações com música tradicional partem de fazer um loop de um trecho e depois repeti-lo sobre uma base de eletrônica estática. Na minha opinião, isso já foi feito mil vezes e não leva a nada novo. Neste caso, o que fizemos foi gravar os Gaiteros em bloco, com a intenção de separar os instrumentos, pensando na mistura depois. Em seguida, este trabalho foi levado à Inglaterra, e lá foram gravadas algumas coisas com os músicos do On-U Sound. Eu fiz algumas coisas, e inclusive o Mario Galeano (Frente Cumbiero, Los Pirañas, Ondatrópica) também gravou alguns baixos aqui em Bogotá – mas tudo isso foi feito sobre a obra dos Gaiteros, sem editá-la. Gravamos em cima alguns baixos, sopros, teclados, guitarras e vozes. Como se estivéssemos interpretando a canção, entendendo um pouquinho o que eles faziam e viajando na gaita para dar uma cor diferente à música.

Publicidade

Buscou dar a ela outra atmosfera?
Buscamos complementá-la com elementos um pouco mais familiares ao ouvido, digamos, do público dub. E a partir disso dar outra cor a ela. É como um quadro. Você tem cores com que normalmente pinta a gaita, e depois disso você coloca um pouco de preto e bum!, isso muda a cor, a percepção sonora, tudo isto sem interferir nessa interpretação orgânica do ritmo e dos instrumentos do grupo tradicional de gaita.

E depois?
Quando tínhamos todos os elementos organizados, começamos a fazer a mistura. Jogamos tudo numa mesa analógica de 32 canais, que é a mesa em que Sherwood trabalha. Além dela, ele usa os seus efeitos e tudo mais.

Como é feita a mistura de dub?
A mistura é feita como uma interpretação ao vivo, em tempo real, então uma nunca é igual à outra. Sempre são seguidos três passos: o primeiro é o “mix vocal”, que é o que mais respeita a obra. Aqui foi quando Sherwood disse: “As pessoas querem ouvir os Gaiteros, não a mim”. Esta é a mistura mais limpa. A canção, realmente. Depois se faz duas misturas, que é quando se começa a desconstruir a canção a partir de técnicas um pouco mais agressivas de efeitos, de tirar e incluir coisas…

A mistura final é de Sherwood?
Sim, ele faz no estúdio dele.

Diego Gómez, coprodutor de Dub de Gaita e cabeça da Llorona Records. Foto: Federico Ríos.

E esse é o trabalho do cara? Ou ele conduz os arranjos e tudo mais?
A produção nós fizemos juntos, ou seja, toda a direção no trabalho com os Gaiteros, a organização das canções, como elas eram tocadas e, sobretudo, tentar arejá-las um pouco. Depois, com figuras como o Little Axe e o Skip Mcdonald, do On-U Sound, gravamos algumas coisas e revisamos os arranjos. Também custou a eles entender um pouco o que é a gaita, para eles foi muito duro! Porque as estruturas, as melodias, as transições e os arranjos não seguem, às vezes, aquilo a que eles estão acostumados – por exemplo, o reggae.

Publicidade

Claro, imagino que coube a você explicar a Sherwood a importância dos Gaiteros, o que é a gaita, contextualizá-lo…
Claro, a história, inseri-lo em toda essa tradição mística que representa esta herança gaiteira, que é como uma ciência. Para que ele entendesse o que ela implicava e significava. Foi muito bonito. E também, claro, traduzir isso musicalmente para ele, para que visse os pontos em comum que tem com o reggae, digamos, num nível rítmico, porque há muitas coisas que compartilhamos.

E o que ele dizia?
Para ele foi um impacto. Claro, no começo foi um desafio. Eles se sentavam e diziam: “Isto é brutal, mas não entendemos picas… Por favor, expliquem como é esse troço”. Então essa foi a primeira tarefa: traduzir. Fazê-los perceber, por exemplo, que o tambor chamador, que marca o contratempo, é como a guitarra no reggae. E assim foram entendendo. Ele acabou de me escrever dizendo que estava muito orgulhoso disto. Foi bonito. Sobre a música, me dizia: “Vocês estão loucos! Isto é outro nível!”.

Mestre trabalhando. Sherwood atrás da mesa no On-U Sound.

E o que os Gaiteros acharam do resultado?
Entre todas as coisas boas, a melhor é que eles estão felizes e adoraram o trabalho.

Não acharam muito diferente do som deles?
A questão é que eles têm certos ritmos, como a gaita corrida ou as acabaciones, que são muito indígenas. As suas canções mais viajantes são aquelas em que eles usam isso, essas flautas tão bonitas. O que tentamos fazer foi buscar, a partir do dub, esse lado da música.

Publicidade

A viagem?
Sim. Então eles acharam isso muito bonito. Da mesma forma, como te disse, fomos muito respeitosos. No começo eles diziam: “Isto vai ser uma batida de gaita”, porque foi isso que muitas pessoas fizeram. Mas, quando escutaram a mistura, acharam que era uma coisa mais para ouvir sentado, bebendo.

É uma viagem suave, profunda, misteriosa e sombria, até…
Foi essa a intenção. O som está carregado dessa nostalgia campesina, dessa solidão de transportar as vacas, dos cantos de vaquería, do homem sozinho com seu violão no campo interpretando o canto dos pássaros, como se lesse a natureza através da música. Era um pouco como buscar dar a ela esse sentido.

Diego Gómez, atrás, à direita, foi o mentor do projeto. Ao seu lado está o seu irmão e sócio, Juan, e à frente, os Gaiteros. Fotos: Carlos Saavedra

Em tempos de excessos digitais, o disco se destaca pelo seu caráter analógico. É um bom casamento entre a tecnologia moderna, como a mesa analógica, e coisas como o bongô e a gaita colombiana…
Claro. Realmente não tem nada de digital. Só usamos o ProTools como máquina de playback, mas nada além disso. O analógico realmente ajuda a criar comprometimento. Com o computador dá para fazer as coisas mais de uma vez, corrigir tudo mil vezes. Com o analógico, você tem que estar conectado com a música, sentindo-a, porque tem poucas oportunidades para fazer tudo certo. Acho que essa é a graça.

Publicidade

Qual é o som clássico de Sherwood?
O cara tem um som muito particular, é um som bem noise, distorcido. Se você escuta a discografia do Mad Professor, ali está o som do Mad Professor. Se você escuta o Lee “Scratch” Perry, a mesma coisa. E se você ouve o Sherwood, é o Sherwood. O catálogo do On-U Sound é impressionante, 30 anos fazendo discos, imagina! Projetos como Dub Syndicate, African Head Charge, Guetto Priest, são projetos impressionantes. O cara tem seus próprios macetes. E isso implica ser fiel. Como ele mesmo disse: “ser leal às suas armas”. “Lealdade às minhas armas”.

Como você teve a ideia para o projeto?
Na verdade, foi como unir duas paixões com que cresci. Comecei ouvindo muito punk na adolescência, em seguida veio o Sublime, que me levou a Bob Marley, e daí para o Caribe e o reggae para sempre. Depois, com um amigo que estava aprendendo percussão com os Gaiteros, comecei a aprender um pouco com eles, a me aproximar deles, e um dia, em um aniversário da minha mãe (ela é de Gamarra, César, um povoado às margens do rio Magdalena – então quando era pequeno tudo era La Niña Emilia, vallenato, Diomedes, El Bimonio, ou seja, um ambiente sabanero de festa), e disse a este cara: “Escuta, quero fazer uma serenata para a minha mãe com os Gaiteros, será que eles vêm?”. E ele respondeu: “Se tiver bastante bebida, eles vão”. Então eles chegaram e rolou um porre homérico. A partir desse dia comecei a aprender com eles, e já trabalhamos há muitos anos juntos. Muito depois escrevi para Sherwood, porque queria trazê-lo para tocar aqui, e o cara respondeu, mandou o empresário dele, e aí começamos a combinar tudo. No estilo Llorona, começamos a inventar coisas para a chegada dele, porque sempre nos interessou tanto o processo quanto o resultado, então fizemos uma parceria como Ministério da Cultura, umas oficinas na [Escola] Fernando Sor, enfim, e aconteceu… Aí se juntaram a paixão pelo dub e a paixão pela gaita.

Publicidade

Teaser do documentário que os amigos do Amplificado estão produzindo sobre o disco.

Para você, que conhece a fundo os Gaiteros, no que reside a sua magia?
A música de gaita tem uma coisa muito bonita. Todas estas músicas do Caribe nascem do encontro do indígena com o negro trazido pela escravidão e um pouco do que representou a colonização espanhola, mas, no caso dos Gaiteros, o que predomina é a flauta indígena. Eles se orgulham muito em dizer que tocam tambor como os índios e não como os negros. E os índios são pessoas bem caladas, meditativas, com outro tipo de contemplação, diferente da agitação, do bullarengue negro, então acredito que por esse lado pesa uma herança ancestral muito importante, e também uma maneira de interpretar que é bastante diferente. Isso me parece um dos aspectos. O outro é que na família gaiteira há um compromisso de tradição, de preservar como um presente que muitos poucos recebem.

Há quantos anos existe o grupo?
Oficialmente, há uns quarenta e poucos anos.

E antes disso…
Antes disso havia famílias que faziam isso.

Dos mestres mais velhos dos Gaiteros, quantos restam?
Dois. Juan Chuchita, que tem 84 anos, e Toño García, que tem 86. No ano passado morreu Nicolás, que tocava gaita macho e foi diretor dos Gaiteros durante muito tempo. Juancho está forte como um touro, tem um grande vigor para cantar. Toñito, sim, tem mais dificuldades para fazer turnês e tudo mais.

Publicidade

E o mais jovem?
Damián. Deve ter 32, 34 anos.

E a tradição é passada por linhagem? Eles são parentes?
Alguns. E foram chegando novas famílias. Ou garotos que desde pequenos seguiam o mestre e se uniram ao grupo porque os mestres têm o compromisso de deixar a herança para alguém. Se chega um garoto muito interessado, eles o acolhem e ensinam tudo. É algo muito singular. E falamos de pessoas como Juan Chuchita, que não sabe escrever, mas tem uma memória impressionante. O cara se senta para tomar rum e vira uma Bíblia. Absolutamente lúcido.

Este espírito índio, contemplativo e profundo de que você fala, esta interpretação do canto da natureza que se expressa na música de gaita também existe no dub? É uma viagem parecida para você?
A evolução do dub, como eu a entendo, começa um pouco depois desse encontro espiritual de figuras como Lee “Scratch” Perry com o rastafarianismo como religião, com eles compreendendo sua música como caminho espiritual. Isto significa uma mudança naqueles que tocavam ska ou rocksteady, e de uma hora para outra disseram: não, espera um pouco, o reggae é a música espiritual, é o que devemos fazer. Então eles começaram a ir por esse caminho e, obviamente… Rastafarianismo, ganja, misticismo… Porque conseguiam meditar através da música. Depois surgiram máquinas e efeitos, e isso obviamente os levou a outra dimensão. O dub tem um tema de reverberação, delay e eco que por um segundo parece vozes falando com você. Então estes caras começaram a brincar com isso e, é claro, a música começou a adquirir um caráter que transcende a interpretação natural do instrumento, é o trajeto do som viajando pelo espaço. É uma viagem. Então depois você ouve estas gaitas com estes ciclos de melodia muito insistentes, e elas parecem pássaros brincando. Você coloca um delay nesse troço e parece de outro planeta. Acho muito divertida essa história do engenheiro transformando ou desconstruindo a mistura com efeitos. E o tema da repetição, que é sobre o que se constroem estas músicas…

Publicidade

Músicas rituais.
Exatamente. Isso. Músicas rituais.

Esta experimentação resultou em três discos. Agora este vai ser lançado. E os outros?
O segundo vai ser lançado no final do ano, e o outro em seguida, no próximo ano.

E ao vivo, como vai ser?
Digamos que desde o começo sabíamos que contar com Sherwood seria muito complicado, mas aqui estamos, numa espécie de processo de aprendizagem depois de termos trabalhado com o cara. Estou nisso com o meu irmão, que é um DJ incrível. Em Dub de Gaita estão todos os Gaiteros de San Jacinto, além do meu irmão e eu fazendo a mistura dub ao vivo. Estamos ensaiando há um tempo. A ideia é que seja como uma roda de cumbia ao redor da mesa.

Como é o seu ‘kit de dub’? Como você o montou?
É igual a todo o resto. Os mestres vão passando a tradição. Tenho um par de delays analógicos, reverberações e delays digitais, o Eventide Space, que é a versão pequena de um rack superpoderoso que o Sherwood tem, uma mesa analógica, o Maschine…

Como se pode conseguir o vinil?
É uma edição limitada. Este selo com que trabalhamos, o ZamZam, é muito purista. Na web tem alguns trechos e tudo, mas o acordo com eles é que a canção não pode sair em nenhum formato até que acabem os vinis. É dar a ela esse significado de jóia de coleção. Saíram 1.000 cópias: 800 distribuídas ao redor do mundo (foram lançadas há umas duas semanas e já estão esgotadas) e 200 na Colômbia. Estamos vendendo-as aqui na Llorona. Quando acabarem os três volumes, o plano é fazer o lançamento digital. Até lá, só os vinis de coleção.

De onde vem o tema do fim do mundo para os Gaiteros?
Outro dia estava falando disso com o Edgar Benitez, um etnomusicólogo, músico e gestor cultural de Cartagena que tem este projeto, Ciudad Móvil, e ele me dizia que há muitas canções com esta alusão, é um sentimento comum nos caras. Recorrente. Se você olhar o disco Un Fuego de Sangre Pura, aquele do Grammy, a última música se chama “La Acabación”, também tem outra que se chama “El Fin del Mundo”, tem muitas canções que fazem alusão ao fim do mundo e são as instrumentais mais compridas, encerradas com a gaita.

Gaita apocalíptica…
Exato. Gaita apocalíptica.

Nicolás adora gaita apocalíptica. Siga-o no Twitter: @nikovc

Tradução: Fernanda Botta