O inusitado (e talvez punk?) documentário sobre o Grateful Dead
Dead no Egito em 1978. Foto por Adrian Boot

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Música

O inusitado (e talvez punk?) documentário sobre o Grateful Dead

Amir Bar-Lev, diretor de “Long Strange Trip”, explica sua fissura pela banda e a vontade de fazer um documentário definitivo sob uma perspectiva punk.

Entrevista originalmente publicada no Noisey US.

Deixe de lado tudo que você sabe sobre o Grateful Dead — os sonhos solares, os ursos dançantes e as tartarugas sorridentes — antes de conferir o documentário Long Strange Trip, de Amir Bar-Lev.

Quando o documentário de quatro horas, dividido em seis capítulos, entrou para o catálogo da Amazon, dia 2 de junho (uma semana depois da estreia no cinema, nas salas de Nova York e Los Angeles), uma nova narrativa passou a ser contada sobre o Dead. Long Strange Trip é a história de um paradoxo — o paradoxo de uma banda que nunca quis ser estudada, cuja obra agora está sendo compilada, analisada e arquivada para a vida toda; o paradoxo de uma banda estereotipada como emissária de Paz e Amor, mas que andava por aí com os motoqueiros Hell's Angels e não interferia quando rolava briga nos shows; o paradoxo de tratados morais profundos, que fazem parte do cânon da música americana, vistos como escrituras de uma juventude errante e errática.

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E é uma confirmação da discrição jornalística de Bar-Lev; nenhum momento do filme se faz desnecessário, chato ou penoso. Críticos que jamais deram a mínima para o Grateful Dead não param de elogiar a capacidade do filme de lidar com esses paradoxos e tecer um conto perspicaz sobre eles. Bar-Lev evita as típicas entrevistas com celebridades, que costumam elevar os documentários ao clichê máximo, e ao invés disso conversa com personagens que oferecem revelações únicas, de fãs e roadies a antigos romances dos músicos.

Noisey: Você comentou que queria contar a história punk do Dead, e não a história hippie.
Amir: Digo, eu mesmo sou hippie, mas tenho a sorte de ter me casado com uma punk. Enquanto eu ouvia Grateful Dead na adolescência, ela era uma garota punk rock, mas nós dois estávamos em rotas alternativas à cultura mainstream, conformista.

O que quero dizer com essa distinção é que há um senso de perigo na história. Quando aprendi a gostar de Grateful Dead, parecia estar acessando algo verdadeiramente contracultural. Era um escape do mainstream, e era subversivo. Mas, conforme Sam Cutler comenta no filme, o Grateful Dead é uma banda que costuma ser adorada por toda a vida. Não é o caso dos punks. Isso é muito mais comum no "rock clássico", que já foi absorvido e neutralizado pela sociedade a ponto de todo mundo ver o Jerry Garcia como um Papai Noel fofinho e feliz.

Isso é algo que seu filme faz muito bem — encara a escuridão de frente. Acho que todo mundo que já esteve em um show do Dead, ou algum show relacionado ao Dead, teve aquele momento de perceber que nem todo mundo ali tem uma poupança, que nem todo mundo veste chinelo Birken. Motoqueiros e viciados em metanfetamina ainda frequentam esses shows, o que revela certa tristeza por trás dos ursos sorridentes e dançantes. Você acertou na mosca quando observou que a maioria das jam bands não carrega o mesmo senso de perigo por aí.
Era comum estar em um estado fragilizado nos shows do Dead.

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Você veio com essa fala na manga? [Risos]
Roubei do Nick Paumgarten. Se todas as letras fossem mesmo sobre a luz do sol e uma vida descontraída, se o mito do Grateful Dead, inflado nos últimos 20 anos, fizesse jus à realidade, se fosse tudo essa leveza toda, bateria uma tristeza, uma sensação que eu costumava chamar de "melancolia Burning Man". Eu frequentava o festival Burning Man nos anos 90, e sempre tinha um dia daqueles. Sabe por quê? Porque a expectativa era se divertir muuuito, e nenhum ser humano consegue fazer isso, com ou sem substâncias químicas. Impossível manter o ritmo por dias a fio.

É um problema matemático.
Exatamente! É um problema matemático. Mas o Grateful Dead entendia isso, então às vezes cantava músicas sobre a luz do sol e felicidade, e às vezes tratava de pessoas ruins, perdidas, desiludidas. E isso dialogava com a gente, com o momento de cada um. Afinal, todo mundo tem um lado sombrio. Quando tocavam, você sentia estar em embate com seus anjos e demônios, e era um lembrete de que sempre era possível escolher a qual desses grupos dar ouvidos.

Foto por Peter Simon

Achei fascinante o trecho do documentário que mostra Garcia tentando replicar a linguagem musical do bluegrass com instrumentos elétricos. Trechos como aquele funcionam quase como que uma grande reportagem. Por isso, o filme é tão agradável para o grande público, seja o espectador um Deadhead [fã do Grateful Dead] ou não.
É que a história do Dead é pertinente até hoje — eles sabiam o que não daria certo nos tempos de hoje. Sabiam o que estava por vir. A verdade é que Trump é um sintoma. É um sintoma da nossa cultura narcisista. E o Grateful Dead representa uma época, um modo de ser, antes das selfies, antes dessa cultura narcisista tomar conta. Tínhamos um líder carismático que olhava torto para o carisma, não gostava da ideia de liderar. É um alento pensar nisso na era Trump.

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Você é claramente um fã. Com isso em mente, achei notável a sua capacidade de deixar o álbum American Beauty de lado na história. Evidentemente, em retrospecto, os álbuns não eram a alma da banda, e imagino que tenha sido um processo consciente seu, a serviço da narrativa. Você falou do Owsley no capítulo "Wall of Sound", em oposição ao comecinho da história, quando estavam ganhando grana com LSD. Você falou do Pigpen quando ele faleceu, também em oposição ao comecinho da história, e foram todas escolhas deliberadas. Como você conseguiu se isentar da pressão dos fãs para fazer as coisas de um jeito diferente?
O Grateful Dead era uma experiência. Se eu estivesse fazendo um filme sobre um comediante, não poderia chegar e dizer: "Podem botar fé, que esse cara é engraçado". As pessoas não entenderiam a graça. O próprio filme precisa ser engraçado. Preciso dar vida ao Grateful Dead, entende? Não basta falar só de psicodelia, preciso construir uma narrativa desafiadora, ou um formato inventivo, para dar vida à banda.

O que há de novo sobre a banda, que já foi tema de tantos livros e antologias? Imagino que seja uma intersecção de verdades coletivas que revela algo novo.
É… Não curto a maioria dos documentários musicais. Detesto quando usam artistas contemporâneos para defender a influência dos músicos retratados. Imagine se eu colocasse a Adele dizendo "Eu me lembro da primeira vez que ouvi 'Morning Dew'!".

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Foto por Roberto Rabanne

Você conversa com as pessoas para ouvir o que elas têm a dizer, e não por serem quem são. Você conversa com o antigo roadie, Sam Cutler, enquanto ele dirige no trânsito do Brooklyn, porque ele oferece uma perspectiva que se encaixa na sua narraitva.
Isso! Se fosse para bajular a carreira de alguém às cegas, eu não acabaria focando no Sam Cutler. Nem na Brigid Meier, ex do Jerry, de um breve namoro. Em termos de proporção, essas pessoas não são muito importantes para o artigo da Wikipédia. Mas na hora de contar a história, são extremamente importantes. Tem uma hora que o Sam Cutler está dirigindo, contando que não se preocupa com a polícia porque não viaja em posse de drogas — ele sabe como descolar drogas onde quer que seja. Ele diz, "Não vou chegar do nada e pedir para aquele cara, né?", e aponta para um judeu ortodoxo na calçada.

Para entender o Grateful Dead, ver o antigo roadie explicar como descolar drogas em uma cidade forasteira é crucial. A forma como a banda transitava entre diferentes dinâmicas sociais é outro ponto importante que costuma passar batido.

Você também fala de expectativas no filme, sobre como não havia expectativas na época das experimentações com ácido, porque as pessoas ainda não apoiavam a banda, em contraste com o peso das expectativas mais para o fim. Para todas as pessoas que tratavam Jerry como um messias, soa como uma profecia autorrealizável mesmo, visto que, no final das contas, ele se tornou um mártir no universo que ajudou a criar.
É a condição humana, não é? Queremos que nossos amados vivam para sempre. Queremos que continuem sendo quem são para nós de forma estática, em vez de deixá-los mudar e evoluir, e talvez até se afastar de nós. [Risos] Nós, fãs de rock, temos culpa no cartório. Queremos ouvir os grandes sucessos, queremos que os roqueiros sejam a encarnação de uma vida durona e não os deixamos morrer. Exigimos demais das pessoas que adoramos.

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Ninguém é capaz de representar essas funções contraditórias para todo mundo ao mesmo tempo.
Pois é. A faceta mais memorável do Jerry Garcia é que ele se comprometia com o presente momento de uma forma que poucos conseguem se comprometer. O presente momento perdura até acabar, não é mesmo? [Risos]

E não cabe numa antologia. Álcool e drogas a parte, o próprio tempo apresenta desafios à produção de um bom documentário sobre o Grateful Dead. Como obter imagens estáveis quando toda a equipe de filmagem está doidona?
Bom, o filme tem uma cena incrível, que você mesmo mencionou, em que uns documentaristas que trombaram com a gente não conseguem terminar o filmagem deles porque tá todo mundo lesado. É divertido, hilário até, quando assistimos, mas há um sentido operante mais profundo por trás. A banda não queria ser analisada dessa forma, sem paixão. Queriam que todos nós participássemos do que estavam fazendo, fôssemos fãs, resenhistas ou documentaristas.

Os críticos não reconhecem, ou não dão crédito à banda pela dedicação em se manter no limite.
A mitologia toda em torno da banda é um desserviço, e estou tentando polir melhor a história. Mas a culpa é nossa, sabe? Como Deadheads, tendemos a nos ater a um aspecto tribal do fanatismo, e isso é um grande erro, creio eu.

"SE VALE A PENA TOCAR… VALE A PENA TOCAR ALTO…". Foto por Peter Simon

Atribuir uma eternidade a uma coisa que sempre se propôs a ser temporária?
É compreensível que o fanatismo dos Deadheads tenha se tornado uma espécie de identidade tribal para algumas pessoas, mas é um caminho infeliz, de certa forma. Aquilo tudo era muito maior que tribalismo. Por isso, "Ripple" é uma música tão brilhante. A noção de que a banda não queria mostrar a ninguém o caminho das pedras.

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Você também dá a entender que "Ripple" tem um significado mais profundo, sobre a morte precoce do pai do Jerry. É possível comparar o afogamento do pai dele com a música e o interesse dele por mergulho.
O Jerry diz: "Se eu der certo como artista, terei construído algo que não pode ser demolido. Não quero isso. Prefiro me divertir". É uma revelação ouvir isso, vindo de um artista cujo legado ainda nos acompanhará por um bom tempo, mas acho que tem muito a ver com a morte do pai dele. Acho que ele entendia o que a maioria das pessoas leva uma vida inteira para tentar compreender — que, praticamente, já estamos todos mortos, de um ponto de vista geológico. O tempo todo, o Jerry estava se preparando para ser uma pessoa morta.

Algumas pessoas abraçam a natureza da mortalidade, e isso as inspira a construir monumentos, ou tentam criar um legado pessoal que lhes ofereça uma espécie de imortalidade. Outras optam pela abordagem oposta, querem apenas viver o momento, amar com todas as forças e estar presente.

O tom presciente da mortalidade percorre grande parte da obra da banda. Até mesmo uma canção aparentemente ubíqua como "Touch of Grey" pode ser interpretada sob esse ponto de vista. O quão cientes você acha que eles eram dessa consistência de temas e narrativas?
Não eram.

Então é tudo projeção dos fãs?
Acho que as letras eram tão bem escritas e ambíguas, que podem ter significados diferentes para pessoas diferentes. Mas não é que sejam sobre nada. Não é que não tenham sentido. Elas vêm de um poço profundo de experiência humana. As pessoas esquecem que Hunter trouxe seu pensamento psicodélico de um lugar intelectual.

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Foto por Ed Perlstein

Ele participou das experimentações com ácido em Harvard, com o Timothy Leary.
Sim, mas a principal diferença entre Hunter e Leary é que Leary, ao que tudo indica, não conseguiu deixar o LSD derrubar o próprio ego. Já Hunter parece ter conseguido. As letras dele têm um senso genuíno de abnegação e empatia por pessoas diferentes.

Talvez por isso ele fosse tão reservado. Não queria profaná-las ou limitá-las com significado.
Acho que você tem razão. Na minha cabeça, no fim de "Jack Straw", por exemplo, ele mata o cara para acabar com a matança. É um paradoxo interessante, e me faz pensar no que eu faria em uma situação do tipo.

E em "Wharf Rat", no finzinho, o narrador parece dizer algo que o ouvinte tende a contestar. Ele diz: "I got a girl named Bonnie Lee, I know that girl's been true to me" [Tenho uma garota chamada Bonnie Lee, e sei que essa garota é sincera comigo]. Então, de repente, desponta uma distância entre o ouvinte e o narrador. Vemos que o narrador é muito mais parecido com o tal Wharf Rat do que imagina. Então ficam essas lacunas de empatia que as letras de Hunter criam. [Risos]

Muitas dessas lições provavelmente se perderam entre os fãs que curtiam a banda por outros meios.
Eu entendo o que você quer dizer, mas havia sempre uma necessidade, mínima que fosse, de embasamento. É por isso que os shows do Grateful Dead eram tão bem estruturados. Você viajava por esses espaços interestelares, então voltava e se deparava com o fato de que precisava comer! Precisa trabalhar, tem uma família.

Justin Joffe é um redator do Brooklyn. Siga ele no Twitter.