Nelly Furtado quer sossego

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Música

Nelly Furtado quer sossego

No seu sexto disco, 'The Ride', a artista canadense segue uma linha introspectiva, questionando o que quer e quem é agora.

Fotos: Ben Guzman

Entrevista originalmente publicada no Noisey Canadá .

A alegria de Nelly Furtado é tão intensa que pode ser sentida através de um telefonema transcontinental. Enquanto ela fala comigo de Los Angeles, estou sentada em um hotel no Brooklyn, em Nova York, e posso sentir como a sua voz se torna energética e ironicamente mais alta ao me falar sobre como uma época era muito apaixonada pelo pierrô, o palhaço triste de rosto branco da Commedia dell'arte que tem seu coração partido e é tipicamente visto como bobo e ingênuo. A sua voz explode numa exclamação quando ela conta como tinha um mobiliário e uma luminária estampados com imagens do famoso palhaço, até que ela cai num bem-vindo ataque de riso. Nelly é uma das maiores estrelas pop do Canadá, se não do mundo, e já está mais do que acostumada a falar com a imprensa para promover seus lançamentos.

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Furtado está lendo o release do seu sexto disco, The Ride, que saiu no final de março, o primeiro desde The Indestructible Spirit, de 2012. Ele é muito diferente dos seus trabalhos anteriores, criativa e metaforicamente; a capa já revela isso de cara. Todos os outros, do seu disco de estreia, Whoa, Nelly!, ao fantástico Loose, passando por Mi Plan, em espanhol, têm uma tipografia similar; letras enroladas que parecem mais — como ela mesma ficaria feliz em descrevê-las — ripongas. Na capa de The Ride, somos apresentados a uma Nelly mais estóica, vestindo um macacão e segurando flores amarelas, com uma tipografia que reflete isso: linhas simples (com as iniciais NF indicando o nome da cantora) e o título em uma fonte estilo typewriter. "O disco inteiro, para mim, é um confessionário de erros", conta Nelly. "É meio como olhar uma poça de óleo feia e dizer: "Isso é bonito!".

O que ela me diz, e é algo que ela vai dizer a todos nós, jornalistas, é que The Ride é um divisor de águas. Os artistas passam por altos e baixos criativos; destróem suas personas, por assim dizer. Para Furtado, aos 38 anos, o divisor de águas foi fazer algo para si mesma, sozinha, pela primeira vez em muito tempo. Durante 18 anos, ela teve uma relação (platônica, é necessário ressaltar) com o seu empresário, que chegou ao fim antes de ela começar a trabalhar no disco. A parceria estava totalmente acabada quando ela foi para a Inglaterra para fazer algumas sessões de gravação fora de Londres, em uma cidade chamada Ripley. "Cheguei meio triste na Inglaterra. Estava em um momento particularmente ruim da minha vida", ela diz. "Tinha acabado de perder um longa relação profissional e estava meio consciente de que estava em uma nova fase da minha vida." Grande parte do disco reflete este estado de espírito; a sua jornada rumo ao desconhecido como pessoa e artista. "Estava totalmente sozinha e acordei no meio da noite, suando frio, pensando: 'Que diabos você está fazendo aqui? E quem você pensa que é?'. Percebi que, se eu não tivesse a música, não teria nada!"

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Foi quando Furtado escreveu a primeira música para The Ride, que aparece por último no disco: "Phoenix". Ela serviu como ponto de partida para destruir a sua antiga versão de si mesma e encontrar a nova. Ela só gravaria os vocais da faixa um ano depois, com seu novo produtor e mentor, John Congleton. "A música se tornou uma espécie de consolo e fez eu me sentir melhor, tipo, não estamos sozinhos no universo", ela diz. "John e eu tivemos dificuldade em acertar a produção nessa música. Ele adora Brian Eno e o disco Music for Airports, então ele o usou como referência na produção. É o tipo de música que, se não for bem produzida, pode soar melosa, sabe? Quase seguimos numa linha meio Bruce Springsteen. Você consegue imaginar o Bruce Springsteen cantando essa música? ''Like a phoeeeeenix, aahhhhhhh!' Eu não consigo!", ela diz, rindo durante meio minuto. Furtado conheceu Congleton através de Annie Clark (conhecida entre nós, meros mortais, como St. Vincent). A cantora canadense já tinha passeado pelo indie; mais notavelmente, ou recentemente, na verdade, com o Dev Hynes, do Blood Orange, lançando fitas cassete da sua parceria. Com Congleton, ela diz que emergiu mais como artista, seguindo as orientações dele na sua busca por algo mais elevado do que ela chama de comercial (ou sucesso comercial). Isso não quer dizer que antes ela não fosse uma artista no sentido mais sério da palavra, mas ele conseguiu extrair isso dela; ele a desafiou, o que é algo que ela diz que gosta em um produtor. Isso é o que Congleton, Hynes e o Timbaland — este último, aliás, teve um papel importantíssimo em Loose — têm em comum: todos eles a desafiaram a usar todo o seu potencial. "O que aconteceu foi o seguinte, quando você é uma mulher na indústria musical, você quer evoluir, mas também quer dar às pessoas o que elas querem", ela diz. "Acho que o que acontece é, você faz turnê após turnê, constrói um mini império e meio que para, tipo: 'Espera aí. Eu estava fazendo isso por mim?'. Você fica tipo: 'Espera aí. E o sossego que a minha alma precisa? Estou ignorando o sossego que a minha alma precisa'. Há pouco comecei a prestar atenção na necessidade de sossego que a minha alma tem… Comecei a sentir falta da garota riponga de vestido florido de Victoria que compunha no seu violão na sala de estar."

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The Ride [em tradução livre, "O Passeio" ou "A Volta", no sentido de dar um passeio ou volta em um carrossel ou montanha-russa, por exemplo] é uma metáfora para a vida da cantora. "A vida pode te levar para dar uma volta. Quero dizer, uma pessoa pode te levar para dar uma volta. A vida pode mesmo ser como um passeio, com muitos altos e baixos", ela diz. O parque de diversões como tema está evidente em faixas como "Carnival Games", "Magic" e "Tap Dancing". O que levou Furtado a me contar sobre a sua obsessão por um personagem como o pierrô é que, durante a maior parte da composição e gravação do disco, ela mesma se sentiu como um palhaço triste. Em "Tap Dancing", a cantora aparece como uma entertainer. Ela diz que é uma música que "[examina como] só porque você é um entertainer no palco, isso não quer dizer que você tenha que entreter as pessoas na sua vida pessoal também. E não quer dizer que você precisa ser cheio de drama e agitação. Tudo bem ser quieto, simples e contido". The Ride é cuidadoso na execução; não necessariamente busca o que há de mais pop, embora tenha faixas dançantes como "Flatline" e "Cold Hard Truth"; nesta última, ela me conta, Congleton fez uma referência direta à "Superstitious", do Stevie Wonder, dando um tom mais funk ao disco. Furtado conta que, durante uma sessão de gravação, ela trabalhou numa batida que foi feita originalmente para o RZA. "[Congleton] trabalha com muitos artistas de rock, alternativo e punk que já têm suas músicas prontas e tudo mais, então ele apareceu com uma batida do RZA ou sei lá quem e eu fiquei tipo: "Gostei dessa!". Comecei a trabalhar em cima dela e meio que a adaptei, e ela virou a música "Right Road".

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Por mais que Furtado pertença ao mundo pop internacional, uma das poucas artistas a cruzar a fronteira e fazer sucesso não só na América do Norte, mas no mundo inteiro, ela continua sendo uma de nós. Ela é uma descendente de portugueses de primeira geração, filha de pais imigrantes, nascida em Victoria, British Columbia, cujos devaneios sinceros em Whoa, Nelly! — especialmente "I'm Like a Bird" — cativaram as paradas do MuchMusic em 2000. Hoje ela mora em Toronto; às vezes faz aulas de costura e cerâmica no seu tempo livre, uma atividade a que ela se dedicou especialmente durante o período em que escreveu e gravou o novo disco. A cantora está empolgada com a nova onda de artistas canadenses que estão ganhando reconhecimento nacional e internacional. "Um dos meus preferidos é o River Tiber, de quem me tornei amiga, e estamos compondo juntos. E tenho falado por mensagem com a Charlotte Day Wilson, porque estamos tentando nos reunir no estúdio", ela diz. "Alguém de quem sinto muito orgulho e por quem estou muito feliz é o Mustafa Ahmed — eu o conheço desde que ele tinha 15 anos. E, minha nossa, finalmente pude ver o BadBadNotGood tocando ao vivo — temos amigos e parceiros profissionais em comum", ela me conta. "E finalmente pudemos nos encontrar. Estávamos no camarim e o Ryan Hemsworth, que faz parte da nossa grande família musical, estava lá também. Tenho muito orgulho… Vi o BBNG, e vi eles fazerem o que foi, de certa forma, um show sublime e altruísta."

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Furtado tem tanto orgulho de ser canadense quanto qualquer uma das nossas estrelas pop. Mas ela entende as dificuldades por que passa o país, em um momento em que estamos tendo que lidar com o racismo, a misoginia e a xenofobia que, embora não sejam tão agudos como nos Estados Unidos, mostram que não estamos totalmente imunes ou livres desse tipo de coisa. Em um artigo para o Jezebel , em fevereiro, a artista escreveu sobre a experiência de cantar o hino nacional no NBA All Star Game, em Toronto, no ano passado. Ela mudou a letra de "em todos os seus filhos comanda" para "em todos nós comanda", o que, junto com o flautista indígena Tony Duncan, que se apresentou com ela, gerou uma comoção desnecessária na internet. Ela foi atacada no Twitter, com mensagens que diziam que era não era canadense de verdade e a mandavam voltar para Portugal. A experiência a deixou chateada, mas não muito depois, ela recebeu cartas de apoio da escola Timiskaming First Nation Kiwetin, de Québec. Furtado e Duncan foram até a escola e surpreenderam as crianças, cantando o hino mais uma vez e criando um vínculo verdadeiro com elas e com a comunidade. "Quero ouvir mais histórias canadenses, sobre o novo Canadá, as coisas que estão acontecendo, que estão fervilhando. Adoraria que continuássemos expandindo nosso inconsciente coletivo, nossa autoimagem", diz a cantora. "Foi uma bela demonstração de amizade. Sempre achei que essas crianças mereciam ser homenageadas com uma matéria. É por isso que escrevi aquele artigo para o Jezebel."

Porque por mais ingênua e feliz que ela seja, dona de uma felicidade escancarada que é difícil de encontrar, ela também é muito inteligente. Essa inteligência às vezes pode se perder no topo das paradas pop. The Ride é o disco que Furtado precisou fazer nos cinco anos que se seguiram ao seu último lançamento. Falando sobre se abrir e preparar não só para o processo de começar um novo disco, mas um disco que questiona a sua própria essência, ela diz simples e tranquilamente: "Acho que quando você faz escolhas importantes, pode ser a decisão certa, mas você ainda está inseguro sobre onde está pisando, ainda se sente perdido". Mas, no fim, tudo isso valeu a pena.

Sarah MacDonald é Editora Assistente do Noisey Canadá. Siga-a no Twitter.

Tradução: Fernanda Botta