Relembrando Arthur Franquini

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Música

Relembrando Arthur Franquini

Família e amigos falam sobre vida e legado do ex-baterista e fundador do Forgotten Boys, figura chave da cena roqueira paulistana dos anos 2000. Ele se suicidou em 2005, aos 27 anos.

Quando Arthur Franquini se suicidou, quase todas as chamadas de notícias e posts sobre o acontecido o definiam como ex-baterista e fundador do Forgotten Boys. Era 2005, a banda estava prestes a lançar o disco Stand by the D.A.N.C.E e começava a ganhar projeção para fora do nicho independente. Arthur, então com 27 anos, já não vivia essa história desde 2001, mas foi ela que o catapultou para o meio da cena alternativa paulista da virada dos 90 para os 2000. Resumi-lo assim, no entanto, deixa de fora uma carreira solo breve mas significativa, além da maneira como seu humor peculiar ajudou a moldar o que saiu dessa cena. Idólatra da mitologia rock'n'roll, ele entrou sabe-se lá se por querer ou não no malfadado clube dos 27. É impossível entender ou explicar a sua morte, então vamos falar sobre sua vida.

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O primeiro instrumento que Arthur teve foi um "tamborzinho que fazia um barulho do cão pela casa toda", conta Inês Franquini, mãe dele. O tamborzinho era só o prenúncio do que aconteceria no andar de cima da cobertura que morava no Pacaembu. Ali ficava a bateria de Arthur e foi onde nasceu a parceria musical com Gustavo Riviera, com quem formou o Forgotten Boys. "Talvez o primeiro contato que tive com Arthur foi ele falando que um cara ali achava que eu era uma mina, tinha dito para ele que eu era uma mina meio quieta", conta Gustavo. A cena aconteceu no começo do colegial técnico em publicidade do Colégio Oswaldo Cruz, na Zona Oeste de São Paulo, e ambos tinham 15 anos. De um pulo, os dois se juntaram na pilha pelo Ramones e Palmeiras, naquela história clássica de amizade adolescente que não se desgruda: de manhã juntos na escola, de tarde juntos no rolê (o apartamento do Arthur ou a Galeria do Rock), e de noite juntos no telefone.

Enquanto Gustavo era mais retraído e tímido, Arthur era o extremo oposto. Desde criança se saia bem com as palavras. Gostava de contar histórias de terror para os amiguinhos, o que deixava as mães deles putas quando não conseguiam dormir — reclamações que sobravam para Inês. Essa habilidade também sustentava a vocação piadista de sacadas rápidas misturada à molecagem de menino. Erick Costa lembra de um episódio num Bob's em Pinheiros, ali por 1997: "Ele pediu um milkshake, deu um catarrão dentro, mexeu com o canudo e ofereceu para todo mundo 'quer? quer?' como se fosse a coisa mais normal do mundo. Ele gostava de ser figura." O milk shake de catarro rolou depois de um ensaio da Simons Ritchies, a primeira banda de música autoral formada por Arthur, em que Erick tocava. "O nome era inspirado no nome verdadeiro do Sid Vicious, mas a gente não sabia direito colocar o plural", diz Erick.

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Ainda que ele mantivesse esse verniz piadista, o outro lado de Arthur era dramalhão. A primeira música do Forgotten Boys, escrita por ele, chamava "Looking for My Baby" e dava o tom da maior parte da sua obra musical: o amor sofrido, distante, que beira o impossível. "Parecia o tipo de cara que escolhia a menina que sabia que ia ser difícil. Ao mesmo tempo que sofria por isso, punha apelido nelas, tipo Xoira, e tudo virava piada", diz Guilheme Granado, de bandas como Hurtmold, Againe e São Paulo Underground. "Isso é da minha cabeça, mas pode ser que ele fizesse isso porque se sentia sempre sozinho e escolhia ideias de relacionamento que não iam dar certo já que achava que nada ia mudar."

Guilherme, assim como os outros membros do Hurtmold, se aproximaram de Arthur quando o Forgotten Boys começou a ensaiar no estúdio El Rocha, da família dos irmãos Daniel Ganjaman, Fernando Sanchez e Maurício Takara. À época instalado na rua Simão Álvares, em Pinheiros, o El Rocha formava junto ao boteco da esquina da Simão com a Cardeal Arcoverde, o Real, uma espécie de centro nevrálgico onde orbitavam bandas como Auto, Objeto Amarelo, Elroy, Strada, Polara, Diagonal, Small Talk, Echoplex e por aí vai.

"Eu conheci o Arthur e o Gustavo quando o Forgotten ensaiou pela primeira vez no Rocha, mas só ficamos próximos mesmo no dia do primeiro show do Hurtmold, em que eles também tocaram", diz Maurício Takara. A festa era em comemoração ao aniversário do cachorro do Michael Arms, um menino americano que tocava em outra banda desse rolê chamada Go Hopey. Guilherme também lembra da ocasião: "Nos demos bem de cara, ele era meu tipo de pessoa. Sem frescura, engraçado pra caralho ao mesmo tempo que sério nas coisas que fazia."

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Chuck, Gustavo e Arthur no Hangar 110.

Nesse final dos anos 90, o Forgotten Boys aos poucos começava a se destacar. Uma demo tosqueria levou a outra um pouco mais produzida que chamou a atenção de Renato Martins, da gravadora Ataque Frontal. Em 2000, a Ataque Frontal lançou o autointitulado disco de estreia da banda, único da discografia marcado pelo toque bubblegum e certa inocência nas letras e melodias, característicos do Arthur. O baixista já era Chuck Hipolitho, que anos depois assumiria a guitarra e dividiria os vocais com Gustavo.

Quem apresentou Chuck para a banda foi Ramón Bonzi, que tocava no Strada e Auto e trabalhava junto com ele na MTV. Ramón conta que lembra de cruzar com Arthur pelas primeiras vezes em outro dos locais importantes para essa movimentação musical da época, a casa de Carlos Issa na rua Havaí, em Perdizes. Diversas bandas ensaiavam lá e também ocorria uma festa chamada Draga, onde o Forgotten Boys volta e meio se apresentava. Às vezes, Arthur emendava uma espécie de stand-up comedy no pós-show.

A frente do Forgotten Boys na Draga. A camisa do Little Italy era uniforme.

"A primeira vez que a gente conversou, ele soube que eu tinha um vídeo do New York Dolls e ficou louco, queria saber a cor da gravata que alguém da banda usava", diz Ramón. "Ele era muito detalhista assim e bem colecionador. Então ele ficava vendo vídeos e fazia comentários sobre detalhes muito específicos. Tinha clipes com edições super rápidas que ele assistia em slow motion para perceber detalhes que ninguém mais via."

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Essa dedicação excessiva às coisas que gostava era algo que definia Arthur desde o início da adolescência. Inês diz que ele alternou épocas em que mergulhava em livros, filmes e música. Um espelho claro de uma geração que começou a se definir tanto pelos coisas que fazia quanto por toda a cultura pop que consumia. Para Arthur, tanto quanto a vontade de sair e encontrar os amigos o puxava para a rua, o mundo que construiu dentro do seu quarto o amarrava em casa.

Quando o Forgotten Boys começou a viajar e tocar muito, esse contraste gerou uma incompatibilidade com a vida de quase rockstar. Certa vez, a banda se apresentaria na capital após um show no interior de São Paulo no dia anterior. Em cima da hora, Arthur ligou, disse que tava doente e falou que não ia rolar. A saída foi chamar Takara, que assumiu a bateria de improviso. "Eu conhecia as músicas e fiz, foi loucura. Mas achei meio estranho, eu tava com eles no dia anterior, e ele já tava meio desanimado, causando uns problemas desnecessários", conta Maurício.

Pouco depois, Arthur saiu do Forgotten Boys. Eles estavam prestes a gravar algumas músicas para lançar um split junto com a banda argentina Killer Dolls. Alguns dias antes disso, Arthur ligou para Gustavo e o chamou para conversarem na casa de Chuck, a quem já avisara a notícia. Ele disse que não queria mais viajar, não aguentava mais passar som, nem montar o kit de bateria. Tinha dado.

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"Eu fiquei mal, comecei a chorar, não entendia. Perguntava para ele 'ce tá louco?'. Era a banda que a gente tinha criado juntos e agora que tava rolando ele não queria mais, eu não conseguia entender", diz Gustavo. O Forgotten Boys continuou. A amizade dos dois também, mas ficou estremecida no período logo em seguida à saída. "Nós ficamos um pouco mais afastados, não ficávamos tão grudados mais. As vezes ele aparecia nuns shows, mas era uma situação meio constrangedora, uma coisa meio de ex-namorada."

***

Menino de família rica que queria ser pobre, como define a própria Inês, Arthur fazia as vezes de garoto humilde, mas tinha bastante noção de quanto sua posição era privilegiada — e tirava onda disso. Quando quebrava alguma peça de bateria no meio de um show e era chamado de playboy pelos tr00, dizia para os amigos que "minha mãe compra outra". Em outro caso, brincava com a contradição de tocar na frente de uma bandeira do MST enquanto morava num duplex no Pacaembu. No andar de cima do tal apartamento, aliás, fazia barulho suficiente para apavorar a vizinhança inteira. Uma vez, os vizinhos foram reclamar do barulho e se indignaram quando o pai de Arthur, Ary, atendeu sonolento. Ele estava dormindo, aquilo já tinha virado rotina.

Depois que saiu do Forgotten Boys, no entanto, o volume diminuiu. "Ele ainda ficava bastante tempo em cima, mas pegou uma guitarra do pai e preferia ficar mais no quarto tocando ela desligada", diz Inês. Arthur, que já compunha para a antiga banda, começou a juntar umas músicas para gravar o primeiro disco. Após mostrá-las para os amigos, decidiu gravar algumas com Maurício Takara no El Rocha, no dia 24 de dezembro de 2001. Como era Natal, o combinado era começar às 10h da manhã, para não se estender muito. "Nós tínhamos virado a noite anterior, e eu acordei com a maior ressaca", lembra Maurício. "Cheguei na porta do estúdio às dez e o Arthur tava lá, super energético, ansioso, esperando fazia uma hora."

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Maurício, Gustavo, Tomas Spicolli, Arthur e Ramón.

No Rocha, Arthur mostrava as músicas e elas eram gravadas em seguida. "Uma hora eu fiz um arranjo de piano, e ele falou 'pô, cê pode gravar o piano'. Ele tocava guitarra meio mal, daí ele falou 'grava guitarra também', eu já gravaria bateria mesmo, e ele falou 'cê vai gravar bateria, guitarra e piano, gravo o baixo então'. Eu fiz tudo", conta Takara. "Enquanto rolava esse dia, eu pensava como ia levar aquilo para sempre, era um energia muito louca, a gente riu o dia inteiro. Começávamos a enrolar nuns takes e ele dizia 'ô vamo logo que eu eu tenho que ir para casa comer peru de Natal'. Acabamos às oito da noite."

As músicas gravadas naquele dia são a segunda metade do álbum duplo When Loneliness Fucks You Up. A primeira metade seria gravada no ano seguinte, 2002, durante uma viagem para a Argentina, com a ajuda dos integrantes do Killer Dolls.

De nome forte, o disco é bem rockão, com o peso acentuado da primeira parte dando lugar a uma produção um tico mais elaborada na segunda. Não reinventa nenhuma roda, mas é bem mais que a emulação das suas influências. As influências, aliás, ficam claras nos covers: John Fogerty ("Almost Satuday Night"), Leon Payne ("Lost Highway"), Jacobites ("Angel in My Arms") e Dogs D'Amour ("Girl in Black"), uma banda inglesa meio desconhecida dos anos 80 — esta última, um dos melhores momentos do álbum.

Os verdadeiros pontos altos do álbum são os trechos mais lentos, em que Arthur parece se desarmar e deixa a melodia corresponder à fragilidade da letra, como "All of You" e "Can You Love Me", regravação de uma faixa do primeiro disco do Forgotten Boys que fecha o When You Loneliness Fucks You Up. Em contraste com o desejo adolescente e imediatez da versão do Forgotten Boys, a "Can You Love Me" do Arthur sozinha se arrasta, desesperada, com o dobro da duração.

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Nesse período, começo dos anos 2000, Arthur trabalhava como jornalista na gravadora Trama — onde participou do desenvolvimento da Tramavirtual. Lá, conheceu o produtor Miranda, que mostrou as músicas dele para Eduardo Ramos, responsável pela área internacional da Trama e dono do selo independente Slag Records, por onde o disco foi lançado."Ele tinha uma visão muito fechada do que seria o álbum, os dois discos cabiam num só, por exemplo, mas ele queria duplo, tinha que ser duplo", conta Eduardo.

"Eu brinquei com ele, falei 'que autodulgência ein, caralho Arthur, podia fazer um processo de edição aí, tem que ter o que falar para ter um disco duplo'", lembra Guilherme. "Mas pensando no que aconteceu, que bom que foi assim."

Foram poucos shows para divulgar o disco, menos que cinco. Além de Arthur, a banda tinha Guilherme Granado na bateria, Maurício Takara e Charlie Lorenzi do Killer Dolls na guitarra, e Zé Mazzei, que depois tocaria baixo no Forgotten Boys. Apesar de não ter os números exatos, de mil cópias prensadas, Eduardo diz que poucas foram vendidas. "Ficou uma coisa meio cult, apesar de ter tido até uma cobertura razoável na mídia", diz. "Eu até mandei um disco para o Everett True, que falou bem dele numa revista chamada Careless Talk Cost Lives".

Jornalista inglês famoso por ter sido um dos primeiros a incensar o Nirvana, Everett disse lembrar do disco de Arthur Franquini. "Era bem cru, pessoal, triste e bonito. Eu gostei muito do disco e o toquei algumas vezes em um programa de rádio online que tinha", escreveu Everett, por e-mail. "Só o fato de eu lembrar desse disco entre centenas e centenas de outros diz bastante sobre a música do Arthur."

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***

No YouTube, algumas reportagens feitas por Arthur na época da Trama dão uma ideia do seu humor. Em uma delas, ele vai até a passarela Marcelo Frommer para descobrir se as pessoas manjavam quem era o cara, numas de pegar a galera desentendida. Só que todos os entrevistados sabiam responder a pergunta. "Tá bem sem graça (…) Acho que daria uma boa piada, mas o pessoal não pensa assim, então tudo bem", encerra o vídeo, com uma falsa cara de frustração. A graça da piada é ele próprio, e não os outros.

Ele gostava de chamar atenção para si e contar histórias, mas isso não significava passar em cima de ninguém. Pelo contrário, talvez na ânsia por se sentir querido, buscava nas pessoas coisas com as quais conseguia se identificar. Certa vez, quando Arthur ainda tocava no Forgotten Boys, Chuck levou a banda para conhecer Pirassununga, no interior de São Paulo, onde sua família morava. "Ele sabia que minha vó era palmeirense, italiana e católica, então quando foi conhecê-la já chegou falando 'oi dona Therezinha, tudo bom, eu sou o Arthur, sou palmeirense, italiano e católico'", conta Chuck.

Ninguém consegue precisar muito bem quando, mas uma hora Arthur mudou. Ainda que mantivesse a personalidade expansiva, deixou de ser uma presença tão constante na vida dos amigos e aos poucos se distanciou. De um cara que passava horas no telefone — e ligava de volta para quem estava conversando logo após desligar, tanto para encher o saco quanto para alongar a conversa —, começou a pedir para a mãe dizer que não estava em casa quando recebia uma chamada.

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Arthur e Fralda, em 2004.

"Eu acho que era dos últimos caras que ele ainda atendia o telefone", diz Fralda, que tocou baixo no Ratos de Porão e Forgotten Boys e era muito próximo de Arthur nos anos anteriores à sua morte. "Mas eu lembro de ligar várias vezes e chamá-lo para sair, dizia que ia um monte de gente lá em casa, ele não podia perder, ai ele ria, falava 'tá bom, tá bom', e não aparecia", conta.

Durante esse período, Arthur sofria de muita insônia e começou a ter o acompanhamento de um psiquiatra. "Ocorreu que ele nunca estava bem, sem nenhuma razão aparente. É difícil falar que era depressão, para mim foi uma coisa que começou na adolescência", afirma Inês.

Em 2004, Arthur começou a cursar jornalismo na Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo. André Gomez, amigo dele da Metodista, acha que voltar a estudar foi uma tentativa de tentar se encontrar em ambiente diferente. "Ele era mais velho que a maior parte do resto da turma e tinha um aspecto meio arredio no começo, mas já nos primeiros dias um professor nos mandou sentar em roda para uma dinâmica. Na hora que ele falou 'dinâmica' eu o Arthur e mais dois amigos, o Alan e o Rodrigo, nos entreolhamos e pronto, formou o grupinho", lembra André.

Como quem descreve a relação com uma figura mentoral — chamava Arthur de Arthurzão e era chamado de Andrézinho —, ele conta que o amigo era discreto na faculdade. Fugia de qualquer demonstração de vaidade e demorou para contar aos amigos que tinha tocado no Forgotten Boys. "Na realidade, eu também tinha depressão e a gente basicamente conversava só sobre isso, como o mundo era uma bosta. O Arthur via tudo de um jeito muito cinza."

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Uma das consequências dessa mudança foi um emagrecimento extremo. Arthur, antes um cara gordinho, às vezes até chamado de "boi", virou uma figura anoréxica. André, que o conheceu nessa fase, disse que quase não o reconhecia em fotos e vídeos de antes. Erick Costa, depois de anos sem vê-lo, lembra que demorou para sacar que o cara magrelo que o cutucou durante uma festa era o Arthur Franquini.

"Mas até com isso ele brincava, dizia que tava parecendo um rapper", conta Takara. De fato, mesmo com todas essas angústias interiores, Arthur se tornou uma uma figura querida entre os colegas de faculdade. O cara mais velho em quem a molecada confiava para trocar ideia e conversar. Em 2005, porém, ele se retraiu ainda mais.

Certo dia, numa conversa entre amigos de turma, voltou à tona uma preocupação com o Arthur que já estava se tornando constante. Ninguém da faculdade falava com ele há dias, e André ligou para saber notícias. "Eu falei 'E aí Arthurzão, tá em casa?' e a voz do outro da linha disse 'Não é o Arthur'", conta. Quem atendera o telefone fora Ivan, irmão do Arthur. Ele havia se suicidado no dia anterior. "Eu fiquei chateadíssimo, achei que podia ter influenciado por estarmos sempre falando disso. Com o tempo, isso fez com eu entendesse e tratasse a minha própria depressão."

***

Arthur não sabia dirigir. Por isso, pegava muitas caronas com a família e amigos. "Um dia eu estava levando ele para a faculdade quando botou um disco e perguntou o que eu achava", conta Inês. "Eu disse 'Não é o Ugly [apelido de adolescência do Gustavo, Inês só o chama assim] que tá cantando, né?, e ele respondeu que não. Então falei que tinha gostado da música, era legal, mas o vocal era meio tosco, como eles falavam, e aí o Arthur tirou o disco." Inês não descobriria antes da morte do filho, mas era ele cantando naquele disco. "A música era um mundo paralelo dele", diz ela.

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Arte do segundo disco, nunca lançado.

Ele deixou outros dois registros em disco. Um segundo álbum foi gravado em 2004 no El Rocha — dessa vez com uma banda completa: Maurício, Marcos Gerez (também do Hurtmold), Zé Mazzei e Gustavo, além do próprio Arthur. Batizado só como Arthur Franquini, deveria sair pela Slag, mais isso nunca se concretizou. "Depois do que aconteceu, nós corremos para fazer a arte da capa, organizamos os músicas, foi tudo enviado para masterização na Escócia e depois… nada", diz Ramón, que assim como outros amigos tem uma versão bruta dessas gravações. Eduardo Ramos não lembra o porquê do disco nunca ter sido lançado.

O outro foi um EP chamado A Guide to Suicide, que ressurgiu no YouTube em maio do ano passado. "O Arthur gravou isso em apenas uma hora num sábado na minha casa, num Tascam de quatro canais, um ou dois meses antes do que aconteceu", diz Eduardo. O EP chegou a ficar disponível no TramaVirtual, mas Eduardo pediu para que fosse retirado do ar quando soube da notícia. O disco mantém o tom dramático das letras de Arthur, mas com uma sonoridade bem mais lo-fi. Como de costume, tem covers: do Whiskeytown, banda do Ryan Adams, e do D Generation.

(Aqui uma ressalva: a lista das músicas do EP não bate com o descrito no vídeo, apesar de seguir a ficha técnica escrita à mão por Arthur. A ordem certa é "I Wanna Die Alone and Sad", "Now That You're Gonne", "Excuse While I Break My Own Heart Tonight", "I'm Not Her Type of Guy/Girl", "I Love You"," Millions Times", "Too Lose" e "Memory Away".)

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A maneira como negociava essas regravações, aliás, mostra outra faceta do Arthur: o detalhismo com que consumia música não era o de fã distanciado. Pelo contrário, ele era amigo de muitos dos seus ídolos. Nikki Sudden, do Jacobites, e Tyla, do Dogs d'Amour, trataram diretamente com ele a cessão dos diretos das suas canções. Além disso, volta e meia ele recebia CD-Rs com discos que sequer tinham sido lançados. "Ele tinha uma rede de contatos impressionante, em todos os sentidos. Uma vez eu fui a Nova York e queria encontrar o Jon [Jonathan Gall], com quem tinha tocado no Auto e tinha perdido o contato. Em 40 minutos ele me conseguiu o telefone da mãe do cara", conta Ramón.

Durante um período breve, Arthur ainda montou outra banda chamada Rock me Jesus — referência a uma música do Wayne County & The Eletric Charis. O grupo tinha ainda Fralda, Jão, do Ratos de Porão, e Mayra Vesvoci, à época baixista do Dominatrix, mas não foi para frente.

Envolvido com tantos nomes que em maior ou menor grau acabaram ganhando algum tipo de destaque, perguntei para Guilherme Granado se dava para estabelecer algum tipo de influência deixada por Arthur. "Cara, é difícil falar assim. Você tá olhando de fora, dá para traçar um paralelo de importância e impacto, para mim foi um cara com quem convivi muito e muito intensamente, então claro que deixa uma marca forte", ele disse.

Uma das maneiras em que isso fica óbvio é em expressões inventadas pelo Arthur e que ficaram. O nome Chaka Hotnightz, uma das festas pioneiras em não se ater a determinado estilo musical e que durou mais de 10 anos, veio de uma história contada por Arthur. Pode ser verdade ou não, mas dizia ele que o irmão tinha ido para uma casa na praia onde havia uma lista com o nome dos antigos hóspedes — entre eles, um tal de Chaka Haouli. "Aí virou um termo que ele usava para tudo, se ele via um malaco falava 'olha aquele chaka' e depois virou um termo que usávamos um para o outro", conta Guilherme, um dos criadores da Chaka Hotnightz.

Chuck lembra outra: durante um show do Forgotten Boys em Jundiaí em que nada estava dando muito certo e ninguém estava feliz, uma hora ele e Arthur se trombaram e a bateria começou a desmontar. Até aí nada demais, mas uma hora o chimbal caiu. "Ele parou de tocar no meio do show. Falou 'ah pô, caiu o chimbal'. Isso virou sinônimo para gota d'água duma coisa que não dá certo, sabe", diz Chuck.

Mais que esses detalhes, no entanto, a constante é a falta Arthur faz para os amigos de uma maneira, como um parceiro para encontrar no fim do dia e tomar uma cerveja. São milhares de histórias em que foi o personagem principal, e um vácuo em milhares de outros em que teria sido. Fralda — cuja cópia do When Loneliness… tem autografado "From your favourite Chaka' — não para de chamar Arthur de 'italiano filha da puta', enquanto imita a maneira como ele ria mordendo o dedo indicador.

"Talvez a melhor recordação que eu tenho do Arthur foi de uma viagem em que o Gustavo nos levou para um sítio que a família dele tinha no interior. A gente dormiu no mesmo quarto e, no dia seguinte, ele me acordou peidando na minha cara, enquanto fazia 'ri, ri, ri' mordendo o dedo. Parecia uma criança de 10 anos ansiosa para aproveitar o dia. Isso era o Arthur, tá ligado, o cara mais gente boa de todos."

Gustavo e Arthur em show em Campinas, em 99.

Quando Arthur Franquini se suicidou, a polícia encontrou no seu bolso o celular com o telefone de Gustavo digitado. Ele foi o primeiro a saber e, em seguida, a notícia se espalhou para os amigos e família durante a madrugada. Era uma terça-feira, dia cinco de abril de 2005. Arthur se atirou do 11º andar do hotel Formule 1 Paraíso — hoje, Íbis Budget.

"Eu dei uma camuflada nisso durante anos, evitava encarar essa perda", me disse Gustavo, numa tarde em meados de 2016. "Até que no ano passado eu resolvi um pouco isso, com psicanálise, com terapia, relembrando dele junto com amigos. Eu consegui digerir um pouco melhor, mas eu não tenho mais esse melhor amigo, sabe? Eu tenho muito amigos, mas não esse cara."

O Forgotten Boys continua na ativa — o último disco do grupo é Outside of Society, uma coleção de regravações de músicas de outros artistas lançada em 2015. Chuck, que saiu em 2008, voltou no ano passado para assumir as baquetas. Ele tinha ficado com a caixa de bateria de Arthur na época da gravação do split com o Killer Dolls, em 2001, e tem a usado nos shows da banda.

Para Inês, toda a família de Arthur mudou depois do que aconteceu. Hoje, com a chegada de uma nova geração — uma neta e sobrinhos-netos —, um certo alívio se sobressai ao ambiente pesado de anos anteriores. Se divertindo ao relembrar algumas histórias do filho, ela conta que ele sempre fazia encomendas muito específicas quando algum deles viajavam para o exterior.

"Fui a Barcelona em uma ocasião e ele me pediu para trazer alguns discos de uma determinada loja. Quando entrei no lugar, imagina um menino esquisito, muito magro e tatuado inteiro, com cara de 'o que essa mulher tá fazendo aqui?'. Aí eu fui pedindo os discos e ele ria, falava 'não é para você isso, né?'. Ele me colocava em cada situação, viu. O Arthur adorava quando eu contava essa história."