FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Seria a Sofrência do Pablo uma Aula de Literatura Romântica da Segunda Geração?

Ai ai ai ai ai ai ai esse amor.

Fui ali fazer um curso de desenho e já volto. Dor de amor, de cotovelo, de corno, mágoa de caboclo, sofrência. Já há algum tempo o cancioneiro popular brasileiro arrochado vem dedicando quilos de versos ao amor perdido, ao abandono, ao zap zap não respondido, à tentativa de reconquista e ao pessimismo. Homens e mulheres choram pela metade da laranja jogada no chão, pisada e macerada trocentas vezes, até o suco azedar.

Publicidade

É 2015, e o cantor baiano Pablo, de 29 anos, é a voz brasileira desse sofrimento todo, resumindo tudo num termo: a já mencionada sofrência, mistura de sofrimento com carência. Conhecido por aí como Pablo do Arrocha, mas oficialmente apresentado em seu site como Pablo, A Voz Romântica, ele conquistou corações partidos (e corações em geral) com sucessos como “Porque Homem Não Chora”, “Bilu Bilu” e “Fui Fiel”, falando sem pudor sobre esse sentimento descrito no primeiro parágrafo que todos nós já sofrenciamos.

Mas bem podia ser 1853, quando a literatura brasileira tava nadando numa maré bem azarada no amor. Essa natação era chamada de romantismo da segunda geração, com obras que versavam sobre o desamor, paixões impossíveis e essa deprê relacionada ao pé na bunda. Sem querer, o Pablo tá se saindo um professor de mão cheia, dando audioaulas informais sobre o assunto. E ele é tão chique que obviamente essa é uma aula a distância, dada com a ajuda do YouTube e com a transcrição de algumas letras de música.

Esse cursinho improvisado pode despertar reações um pouco além do esperado, mas também é nota 10 na hora de ensinar as principais características desse movimento literário que provavelmente caiu na sua prova de vestibular. Lembra? Se não, professor Pablo dá uma ajudinha:

1. EGOCENTRISMO / INDIVIDUALISMO

Esse tal de romantismo da segunda geração povoou a literatura brasileira de 1853 a 1869 e chegou a ser chamado de “ultrarromântico” ou “mal do século” porque, olha, os escritores viam o universo amoroso — e o mundo em geral — de uma forma bem deprê. Alguns anos depois, o Freud e o Lacan alertariam sobre a possibilidade de não ser amor, mas sim cilada, considerando que o ser humano chega a um mundo onde a linguagem do amor, transmitida pelos ancestrais e pela cultura (inclua aí os filmes da Meg Ryan e as canções do Roberto Carlos), equivocadamente pressupõe recíproca automática, sem esforço (aham, vai nessa), e aquela ilusão de completude encarada de forma tão literal que faz com que alguns casais achem que são uma pessoa só - inclusive no perfil do Facebook.

Publicidade

O fato é que aqueles literatos que mencionamos lá em cima estavam sofrendo (na realidade ou no eu lírico), com uma ferida narcísica sangrando a valer e sem qualquer perspectiva de “vamos pro bar conversar sobre isso e superar essa fase, cara”. Não que eles tenham passado a postar milhares de selfies no Instagram pedindo likes salvadores de autoestima, mas rolava a boa e velha autodepreciação nos textos. O egocentrismo elevado à enésima potência era uma das características da época, e “Pecado de Amor”, cantada pelo Pablo, exemplifica bem o recado:

Sou complicado, louco, inconsequente
Meus defeitos você finge que não vê
Por me ver chorar
Por me ver sofrer

2. PESSIMISMO ROMÂNTICO

A mesma “Pecado de Amor” daí de cima pode ilustrar os óculos pessimistas com que os escritores – inclusive os portugueses, como Camilo Castelo Branco e Soares Passos –, enxergavam o relacionamento amoroso naquela época. Pra eles (e pro nosso amigo Pablo), o amor é uma dor sangrenta insuportável chuta-que-é-macumba.

Não vou brincar de amar
Eu vou deixar para lá
Vou esquecer de tudo
É bem melhor que eu vá do que te ver chorar
Pra mim é um absurdo
Pra que se machucar pedindo pra juntar
Esse amor em pedaços
Se Deus não escreveu assim?

3. MELANCOLIA

Longe de serem alegres e festivos, os versos da segunda geração romântica eram beeeeem melancólicos. E todos sabemos que a melancolia pode ser insuportável às vezes, o que faz completo sentido se pensarmos que ela é um retorno patológico (isso não é bom) para o nosso eu depois de uma perda ou uma frustração. Sabe aquela sensação de perder um pedaço de si quando se perde alguém? Então. Arrancaram um pedaço do pobre Pablo em “Recomeçar”:

Publicidade

Minha vida sem você não faz sentido
Meu amor não vá embora
Por favor fique comigo
Eu quero recomeçar
Não vai ser tempo perdido

Eu quis ser super-herói mais fui bandido
Hoje eu sei que estava errado
E estou arrependido
Não vou mais te ver chorar
Eu quero sorrir contigo

Tá pouco de melancolia, tá pouco de relacionamento amoroso craquelado, tá pouco de ver e rever aquelas fotos das férias fantásticas de um verão a dois. A decepção amorosa reaviva, com muita dor, uma ferida inicial de quando ainda tínhamos aquela simpática e universal carinha de joelho e nos expressávamos em gugus-dadás. Certo dia, todos nós perdemos a majestade no mundo quando percebemos que nossa mãe tinha outros interesses além da gente, e aí foi dureza dividir o reinado com o pai (ou padrasto), o trabalho, azamiga, o hobby… você levanta desse tombo e lá vem a vida, com um monte de eventos que dão voadoras sequenciais na nossa autoestima e na vontade de viver, reabrindo essa feridinha lá de trás. Até cairmos a ficha e cuidarmos dela, lágrimas rolarão, viu. “Tá Fazendo Falta” traz outros versos sobre essa vivência dolorida:

Foi aí que a ficha caiu
E eu percebi
Que por um vacilo meu eu te perdi

Nem pisquei, fiquei parado e mudo
Em estado de choque, fiquei surdo
Naquele momento desabou meu mundo

4. SENTIMENTALISMO EXAGERADO

Seja no século 19 ou no 21, não faltou gente se perguntando “quem é mais sentimental que eu?” Dar a resposta que é bom ninguém deu, até porque começaria aí uma competição irrelevante sobre quem tá mais zoado da alma. Decepção + tempo fatalmente resulta em um sujeito feliz e vacinado contra mais uma frustração, mas até parece que o indivíduo com o coração cheio de buraquinho vai dar tempo e viver o luto da sua perda. Esse tal de amor já machucava o poeta Pedro de Calasans lá no romantismo da segunda geração, e continua fazendo estrago para o jovem Pablo, que ficou “Ao Sabor do Vento”

Publicidade

Machuca ficar sem você
Machuca sua decisão
Machuca, machuca

Machuca viver por viver
Machuca não ter seu perdão
Machuca não fazer mais parte
Do seu coração

Tô com saudade de você aqui comigo
Viver distante de você é um castigo
A minha vida sem você é tão estranha
O coração de todo mundo bate só o meu apanha

Machuca e dói que nem “Pena de Morte”:

É pena de morte pro meu coração
fui condenado a pagar o preço
a sentença foi dada e eu pelas madrugadas
tento fugir mas não te esqueço
é pena de morte não tem solução
porque não volta pra me dar carinho
esse é um caso perdido
e eu tô feito um bandido
que sem defesa vai morrer sozinho

5. SAUDOSISMO

O Casimiro de Abreu era um poeta da segunda geração que vira e mexe mandava umas linhas nostálgicas sobre sua infância. O saudosismo mordeu o Pablo também, que foi fiel à mulher amada e anda sentindo falta do “bebê”:

Hoje eu acordei, me veio a falta de você
Saudade de você, saudade de você
Lembrei que me acordava de manhã só pra dizer
“Bom dia, meu bebê!
Te amo, meu bebê!”

emorevival

E agora, como um filme, o passado assisto
Quando bate a saudade quase não resisto
Mesmo estando longe muitas vezes calo a minha dor
Mesmo sendo amigo quase me chamou de amor

(“Quase Me Chamou de Amor”)

6. MULHER INATINGÍVEL/AMOR PLATÔNICO

No ultrarromantismo tinha um lance de desejar uma mulher impossível que o grande Álvares de Azevedo conhecia bem. O Pablo ficou doidinho pela amiga e aí, danou tudo. Ou como ele canta, “Embolou”:

Publicidade

Embolou
Sabe aquele sentimento?
Embolou
Confundi a amizade com amor
Passei a mandar pra você buquê de flor

(…)

Sem te pressionar, eu vou deixar você tranquila
Decidir, mas rezo que seja pra mim

Em “Conto ou Não Conto”, bateu aquele medo de tomar um fora da mulher amada. Como-uma-ideia-que-existe-na-cabeça-e-não-tem-a-menor-obrigação-de-acontecer.

Conto ou não conto
Eis a questão
Tá transbordando de amor por ela
Esse meu coração
Conto ou não conto
Logo a verdade
Meu medo é de não ter o seu amor
E perder sua amizade

7. VOU BEBER PRA ESQUECER MEUS PROBLEMAS

Afogar as mágoas na taverna ou no boteco é o tipo de mimimi atemporal de que ninguém tem vergonha e rolam até umas fotos poéticas no Instagram. O britânico Lorde Byron inspirou toda a galera da segunda geração com sua poesia e estilo de vida boêmios, e provavelmente teria curtido um dedo de prosa com o Pablo, que já derrubou umas lágrimas em cima da birita EM NOME DO AMOOOOR:

Por isso eu bebo e choro
Só pra te esquecer
Quanto mais eu bebo mais apaixonado eu fico por você
Por isso eu bebo e choro
E choro com razão
Se você não voltar
Eu sei que vai parar meu pobre coração

(“Bebo e Choro”)

Vou tirar da minha vida
A mulher que tanto amo
Vou me entregar à bebida
Beber o resto do ano.

(“O Amor Tem Dessas Coisas”)

8. TÉDIO E INSATISFAÇÃO

O spleen era um termo bastante usado na segunda geração romântica, e sintetiza bem você ficar horas a fio olhando para uma parede, mergulhado(a) em tédio e desencanto. Era muito associado ao Lorde Byron, mas pode colar no Pablo também:

Publicidade

Passam noites, passam dias
Só não passa esse amor
Madrugadas tão vazias
E eu aqui com a minha dor

Sonho e acordo sozinho
Faz tanta falta o teu carinho
Vivo sem vida
Sem destino, sem destino

(“Baby”)

9. ESCAPISMO

A literatura romântica do século 19 tinha também uma característica de escapismo, em que a dificuldade em lidar com a realidade e com outros problemas produzia uma espécie de “culto ao eu”, no qual só as questões subjetivas como amor e morte importavam. A gente não sabe se o Pablo chegou a embarcar nessa viagem, mas ele bem tentou escapar da mulher amada e da vida ao lado dela. #boysdontcry

Estou indo embora
A mala já está lá fora
Vou te deixar (vou te deixar)
Vou te deixar

Por favor, não implora
Porque homem não chora
E não pede perdão
E não pede perdão

(“Porque Homem Não Chora”)