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Música

Breves comentários sobre os sambas-enredos do Carnaval 2017 do Rio

O sociólogo e sambista Tiaraju Pablo analisa os temas e harmonias das escolas de samba cariocas.

O samba-enredo, enquanto gênero musical, vive um momento especial. Desde a safra de 2014 é possível observar com nitidez como o gênero voltou a ter obras de qualidade, após alguns anos de sambas sofríveis.

A safra de 2017 é uma prova disso. Os temas se destacam pela originalidade e crítica (em um momento onde a produção artística parece ainda não ter assimilado o golpe dado pelo golpe). No entanto, temas interessantes não produzem necessariamente sambas interessantes. Não é o caso de 2017 onde, em um universo de doze sambas do grupo especial do Rio de Janeiro, pelo menos seis sambas são excelentes. Óbvio que a opinião é sempre pessoal, mas a safra está ótima, como há muito não se escutava. Seguem abaixo breves comentários sobre esses seis sambas. Escutem!

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Imperatriz Leopoldinense: "Xingu, o clamor da floresta"

Em tempos de conservadorismo e regressão dos direitos sociais, pautar a questão indígena é um ato de coragem. A Imperatriz faz isso com verve crítica e maestria, incomodando os setores mais retrógrados da sociedade, como o agronegócio. Para além do posicionamento político necessário, a obra poético-musical é de rara beleza.

No plano estrutural, o samba possui só um refrão, o chamado "refrão de cabeça", saindo dos moldes chatos e tão replicados de "refrão de cabeça" e "refrão do meio" (cabe notar que muitos sambas estão saindo desse padrão e isso é muito bom. Esta questão surgirá nos outros sambas, como comentaremos). Porém, apesar de em um só momento haver refrão (enquanto repetição de estrofe), em outras passagens há "melodia de refrão", mesmo sem a estrofe se repetir. É o caso das estrofes que começam com os versos: "Sou o filho esquecido do mundo…" e "sou guerreiro imortal, derradeiro…". No final do samba, há o grito de guerra "kararao", com a melodia estendida nas vogais, para se cantar de peito aberto, como um grito de guerra e denúncia. Belíssimo samba!

Portela: "Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse rio passar"

Ah Portela… quando encontras contigo mesma és mais linda que o céu e o mar. Que samba! Que poesia! Que tratamento melódico adequado para tratar de ti mesma, dos rios, das águas… Todo em tom maior, o samba vai modulando suas notas como um rio com ondas. Escutem o verso: "Cantam pastoras e lavadeiras…". Simples e emocionante. E os quatro versos que começam em "Oh mamãe, ora yê yê…" e terminam em "onde canta um sabiá". Não seriam a modulação de um rio quando repousa ao fazer uma curva?

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Os refrões são torrentes caudalosas. O do meio diz: "A canoa vai chegar na aldeia/alumia meu caminho, Candeia", e o nome do sambista (que alumia), é para ser cantado com ênfase. O refrão de cabeça é um dos mais belos dos últimos anos: "O perfume da flor, é seu/um olhar marejou, sou eu". Vale ainda destacar as menções textuais à tríade de fundadores da Portela, Paulo, Caetano e Rufino. E quando o samba fala de "poemas em mananciais", estaria citando sub-repticiamente o sambista Manaceia? Portela pura poesia.

Unidos de Vila Isabel: "O som da cor"

Quando a Unidos de Vila Isabel canta, a África se faz gigante. Ao unir África e música, a questão transborda. O refrão do meio possui uma dolência apaixonante. Já na última estrofe do samba, entre os versos "Ginga no lundu…" e "quando no terreiro novamente ecoar", há um jogo de perguntas e respostas típica dos coros africanos, para serem cantados em roda. É nessa parte que o tom menor se faz grave, pesado, com uma divisão silábica que auxilia a rítmica africana. O breque da bateria nessa parte do samba, como se pode escutar na gravação, é perfeito. Dessa passagem, se abre o horizonte para o refrão explosão "ô ô Kizomba é a Vila…" que não precisa ser em tom maior para ser explosivo. Em tempo: ao citar o samba de 1988, (e o de 2012 sobre Angola?), a Vila se conecta com a África e consigo mesma, numa espiral de referências que dão sentido e corpo ao tema proposto, e fundamento às próprias escolhas dessa escola de samba. "Valeu, Zumbi, a lua no céu/É a mesma de Luanda, e da Vila Isabel". Quem tem história, tem.

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Beija-Flor: "Iracema, a virgem dos lábios de mel"

Uma obra literária tratada de maneira complexa. Este é simplesmente o samba com o clipe mais acessado na história das disputas de samba-enredo, com quase 500 mil visualizações (por enquanto). O samba já era sucesso antes mesmo de ser escolhido, e não é pra menos. Em muitas passagens a melodia é instintiva e leve como um partido alto. O refrão de cabeça é de uma originalidade ímpar, ao possuir oito versos que se repetem. Ou seja, um refrão gigante que não é nem de longe cansativo. Já o refrão do meio é o oposto, um verso, mas que se repete quatro vezes (e não sai da cabeça). Haja originalidade! A segunda estrofe do samba é extensa e toda em tom menor, relembrando essa escola de composição típica da Beija-Flor, de tons graves e pesados e versos com muita informação. Ressalta-se o canto valente dessa comunidade.

Mocidade Independente: "As mil e uma noites de uma 'Mocidade' para lá de Marrakech"

A Mocidade Independente discorre sobre o Marrocos no Carnaval de 2017. Um Marrocos miragem, uma África maghrebina pouco cantada nos desfiles das escolas de samba. A letra mescla de maneira inteligente elementos brasileiros e árabes: "Põe Alladin no agôgo, tantã nas mãos de Simbad". Verso de compositores gênios da lâmpada!

Novamente um samba com um refrão só, mas com duas estrofes que começam com o verso: "Abre-te sésamo que o samba ordenou…" e que também funcionam como refrão. A última estrofe "Chegou…chegou…", em tom relativo, e o repouso dos versos anteriores. A melodia faz uma curva inteligente e saborosa. Cabe ressaltar o tom coloquial e improvável do verso: "Tanto assim que meu olhar…". É a partir desse verso que o samba ganha uma cadencia melódica bastante criativa e gostosa de cantar, até o já citado verso do "Abre-te sésamo". Mocidade com cara de Mocidade.

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Mangueira: "Só com a ajuda do santo"

Mangueira cantando as religiões no Brasil é forte e tem axé. Baita samba! Todo em tom maior, consistente, com pegada, pra frente e com melodia valente. Um refrão de cabeça para mexer com os brios da nação: "O meu tambor tem axé, Mangueira". O verso: "Abriram-se as portas do céu…" anuncia a segunda parte do samba, com muito balanço e beleza melódica, preparando a música para o refrão principal. As citações a elementos da religiosidade africana são precisos. Um samba que tem a cara da Mangueira e tudo para funcionar bem no desfile.

Para além desses sambas excelentes, gostaria de comentar a melodia cadenciada do samba da São Clemente, cujo refrão principal com sílabas alongadas é para ser muito cantado na sapucaí. O samba da Paraíso do Tuiuti tem um refrão fortíssimo e uma melodia valente. O meu Salgueiro vem com um samba com estrutura melódica e métrica parecidas com o do ano passado, apesar de não ser tão bom (mas é difícil manter o nível do malandro batuqueiro de 2016, não?). No entanto, nunca duvidemos da capacidade do canto da comunidade salgueirense.

Abraços de samba!

Tiaraju Pablo é sambista e sociólogo.

Foto da Agência Brasil.