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Música

Zine é Compromisso: Esquizofrenia

Seguindo com nossa série sobre zines musicais, um papo com Gilberto Custódio, o Rei dos Indies.

O fanzine Esquizofrenia, do Gilberto Custódio, figura que vocês devem conhecer por conta da Feira de Discos e da loja de vinís Locomotiva, era bem diferente daquilo que a gente estava acostumado a ver na época em que esteve em circulação. Tinha um capricho no layout e uma legibilidade incomuns se comparado a outros títulos do gênero, surgidos entre 1992/94. Sem contar que era um dos poucos citados por jornalistas/críticos de música já influentes em programas de rádio, tevê ou impressos. Os textos, extensos para o formato, eram ritmados, analíticos e informativos. E as pautas, por sua vez, passavam longe da tosqueira musical. As capas traziam nomes como Sonic Youth, e lendário número #8, com 48 páginas, chegou a vir com uma k7.

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A preocupação do Gilberto em revelar pra turma indie o que estava rolando de mais promissor no cenário sempre foi certeira. O quarto número, saído em maio de 1994, brindava o leitor com uma entrevista com o Pelvs, lançando o primeiro disco, hoje clássico do indie-rock tupi, Peter Greenaway's Surf. Em outubro de 1995, a edição #7 trazia o Portishead na capa. "Esse zine foi feito totalmente sob efeito de Dummy, o primeiro álbum da dupla trip-hop, que eu ouvia sem parar na época", conta ele. No mesmo ano, o Gilberto publicara um artigo apresentando o Pulp, à luz do álbum His'N'Hers - a banda estouraria somente com o trabalho seguinte.

Tinha também uns lances ousados, tipo o especial Anos 80, dividido em duas partes, nas edições #9 e #10: o ano era 2002 e, em plena febre Trash 80s, o Esquizofrenia mostrava que aquela década não foi feita só de lixo, vangloriando as boas bandas do período. E, na boa, que outro zine emplacaria uma edição inteira dedicada ao Indiepop Sueco [Fev/2003, #12]?

"Nunca vou escrever sobre os Strokes ou Echo and the Bunnymen (…). Devo ter lido umas 30 resenhas de Is This It! Não tenho mais nada a acrescentar, tudo o que gostaria de dizer já foi dito em algum lugar. E eu não vou ficar copiando…", declara uma passagem do editorial de julho de 2002. Posturas assim marcaram a trajetória do Esquizofrenia. Um zine que não chovia no molhado e que, justamente por isso, foi relevante para um monte de gente.

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Seguindo com a nossa série de entrevistas que resgata os zines mais representativos no underground musical brasileiro, conversamos dessa vez com o Gilberto Custódio. No papo a seguir, ele fala sobre suas ambições e motivações à frente do Esquizofrenia. Acompanhe:

Noisey: O Esquizofrenia chegou à cena no final de 1993. Naquela época, quais publicações do gênero você já acompanhava? Alguma delas te inspirou ou serviu de base para que começasse a fazer o seu próprio fanzine?
Gilberto Custódio: Quando saiu a primeira edição do Esquizofrenia eu tinha 14 anos, então não era leitor de longa-data de nenhum outro fanzine. Mas nessa época eu já havia tido contato com fanzines de música, que comprava em lojas de discos. Três fanzines me influenciaram bastante. O primeiro é o Psychedelic Garage, um fanzine de Osasco que estampou na capa do número #2 o Jesus and Mary Chain. Comprei o fanzine na Zoyd, uma loja de discos que existe até hoje na Galeria Presidente, na Rua 24 de Maio. Mandei uma carta para o editor, chamado Glauco Fuzz. Foi o início de uma amizade que dura até hoje. Passei a tocar baixo na banda Comespace junto com o Glauco e hoje em dia ele trabalha comigo na Locomotiva Discos. Tem também o fanzine Into The Groove, da Any Shoegazer. Esse eu comprei na Bizarre, loja de discos que ficava pertinho da Zoyd, na mesma galeria. Outro zine que marcou foi o Blood, que eu também comprei na Bizarre. Eu comprei esses três fanzines na mesma época, escrevi para todos, mas o único que me respondeu foi o Glauco. Esses fanzines, todos sobre rock underground, foram cruciais para a criação do Esquizofrenia. Foi depois de ter eles em mãos que eu decidi fazer um fanzine também.

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Qual era o seu envolvimento com a cena indie aqui no Brasil à época do lançamento das primeiras edições? Você já tinha bastante acesso a novidades, ou já tinha essa coisa de ser um garimpador de música?
Com 14 anos eu comecei a trabalhar como office boy para uma empresa de contabilidade no Butantã. O trabalho consistia em ir para o centro da cidade diariamente. Sempre desviava o caminho para passar nas lojas de discos do centro e o meu salário eu gastava todo em discos e revistas importadas, que eram vendidas nas bancas da Praça da República e da Av. Paulista. Nas bancas eu comprava a New Musical Express e Melody Maker e nas lojas encontrava os discos de todas as novidades que apareciam nessas revistas. Não era difícil estar por dentro das novidades. Se algum disco custava muito caro, o próprio dono da loja gravava numa fita cassete. Isso sem contar a troca de correspondência com quem curtia o mesmo tipo de som e a troca do meu fanzine por outros fanzines e fitas-demo das bandas que surgiam na época. Passei a conhecer um monte de bandas nacionais. Publiquei artigos, resenhas e entrevistas sobre várias delas no fanzine.

A distribuição das publicações começou via correio, vendas em lojas/shows? Como era essa parte? A tiragem era grande, costumava esgotar rápido?
A distribuição era feita essencialmente por correio. Eu deixava algumas cópias em lojas de discos, mas o grosso mesmo era distribuído pelo correio. Assim que eu lançava uma nova edição, enviava para todos os jornalistas que admirava. Então assim que o Kid Vinil recebia o zine, ele divulgava no programa de rádio, divulgava o endereço e aí na semana seguinte eu recebia diversas cartas de pessoas interessadas em adquirir o zine. A mesma coisa com Fabio Massari, Fernando Naporano, André Forastieri, Marcel Plasse, Álvaro Pereira Jr e outros. Todos eles recebiam o zine e divulgavam em seus programas de rádio, revistas ou colunas de jornal. A tiragem era em torno de 100 unidades para cada edição. Nunca vendi nenhuma cópia em show, não gosto de abordar e conversar com desconhecidos.

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Entre 1993/96, você lançou oito edições e desencanou ao longo da produção do número 9. O que motivou essa parada?
Eu parei devido à falta de tempo. Trabalhava de dia, estudava de noite. Nos finais de semana ia viver a vida. Não tinha mais tempo para fazer o zine. Mas assim que me formei, passei a editar o zine novamente, pois conseguia reservar algumas noites para escrever e diagramar. Fazer o zine sempre foi algo que me deu enorme prazer.

Mais tarde, quando você retornou com o zine em 2002, a repercussão foi legal? Os leitores ainda eram os mesmos? Quantas edições durou depois disso e por que acabou de vez?
O perfil dos leitores era o mesmo: uma pessoa que adora música e busca algo mais do que os jornais e as revistas brasileiras oferecem. O fanzine acabou pelas mesmas razões da primeira vez: falta de tempo. Hoje em dia, com a Locomotiva Discos, que já tem três lojas em São Paulo, fora o site, não tenho mais tempo nem de pensar no Esquizofrenia. A minha ânsia por compartilhar as minhas descobertas musicais são saciadas com a publicação do informativo da loja, que é feito toda semana e enviado por e-mail para o mailing-list da loja.

Uma coisa legal dos fanzines dos anos 1990 é que, de modo geral, existia um esforço dos editores em procurar cobrir as lacunas deixadas pela mídia de massa. E mesmo no meio underground, os fanzines se diferenciavam e garantiam seu apelo junto aos leitores justamente por falarem de coisas inéditas entre si. Você acha que seria possível encontrar público significativo para esse tipo de preocupação jornalística hoje em dia?
Creio que os blogs atualmente sofrem com o excesso de informação. Para achar uma lacuna não coberta pela mídia, tem que cavar bastante. Nessa busca, precisa ter cuidado para não cair na irrelevância. Está mais difícil escrever sobre algo inédito e significativo, mas não é impossível. Tem que ser criativo e conhecer bastante sobre música. Vejo os blogs como reféns do imediatismo da cultura virtual. Todos falam sobre a mesma coisa. Curiosamente, a melhor publicação de música hoje no país não é um blog, mas um fanzine impresso: o Poeira Zine.

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Traçando um paralelo com a cultura do vinil, a cultura dos zines, pode-se dizer, tem suas idas e vindas. Você imagina esse tipo de publicação retomando seu apelo com a mesma força do passado?
O fanzine hoje em dia tem muito mais apelo artístico e pouca informação jornalística. Os zineiros souberam explorar muito bem esse lado do fanzine visto como obra de arte, inclusive no preço: os fanzines hoje estão bem mais caros do que no passado. Existem poucos fanzines sobre música, mas tem um monte de fanzines sobre fotografia, desenhos, poesia e quadrinhos e esses fanzines são belíssimos. A maioria deles são totalmente artesanais, limitados, usam técnicas de impressão das mais variadas, como silk-screen, carimbos, colagens. A cena zineira continua muito forte e apaixonante. Ter uma coleção de fanzines é uma das coisas mais legais que existe. Eu guardo todos os meus fanzines com muito carinho. Já revistas como a Rolling Stone e a 100% Skate, eu jogo fora depois de ler.