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Música

Entrevistamos Saul Williams, o Ator Principal no Musical da Broadway Inspirado Em Tupac

Saul Williams é um cara extremamente inteligente que só participa de projetos nos quais acredita muito, e seu envolvimento no novo musical da Broadway com músicas de Tupac explica a qualidade da peça.

Se você fosse escolher alguém para estrelar um musical da Broadway com trilha sonora do Tupac, há 100% de chance de que escolheria Saul Williams. Esse multitalentoso prodígio é a mais perfeita definição do que é um artista, assim como era o Tupac. Williams fez mestrado em Artes Cênicas pela Universidade de Nova York, e sua tese, Slam, virou um filme premiado. Já gravou com Trent Reznor e Rick Rubin, e pode-se dizer que seu estilo musical cáustico, que mistura de tudo um pouco e tem alto valor de produção, foi o precursor tanto da banda Death Grips como de um certo álbum chamado Yeezus. E não vamos esquecer que o cara fez K-Pax, que é um puta filme.

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A essência disso tudo é que Saul Williams é um cara extremamente inteligente que só participa de projetos nos quais acredita muito, muito mesmo, e está num ponto da sua carreira no qual as pessoas precisam respeitá-lo como merece. Seu envolvimento em Holler if Ya Hear Me, o novo musical da Broadway com músicas de Tupac, é um dos elementos que explicam a qualidade da peça. Em vez de tentar forçar as músicas de Tupac em alguma espécie de narrativa sobre a excepcional vida do rapper, a peça escrita por Todd Kriedler trata as letras como textos para interpretar. O elenco pode expressar pontos de vista diferentes ao dialogar rimando os dísticos de "I Ain't Mad at Cha", ou fantasiar sobre sair de suas cidadezinhas falidas ao cantar o refrão de "California Love". É uma história rica e universal, e as atuações, principalmente a de Williams, são fantásticas.

Williams abriu um espaço em sua agenda cheia para conversar sobre a peça, sobre seu próprio trabalho e (claro) o legado do inesquecível Tupac Shakur.

Noisey: Onde você cresceu?
Saul Williams: Newburgh, no estado de Nova York. Fica a uns 100 km ao norte da cidade de Nova York e nos últimos 40 anos teve a mais alta taxa de homicídios, uso de drogas, tráfico de drogas e crime em geral do Estado, e isso que só tem 35 mil pessoas lá.

Cacete.
Proporcionalmente, teve as médias mais altas de todo o estado de Nova York nos últimos 40 anos. Havia tiroteios com Uzis na minha escola de ensino médio. Eu achava que era normal, não percebia que o resto do mundo não funcionava assim. Isso foi nos anos 80, antes da loucura. Mas, sabe, a gente não era bom só nos tiroteios, a gente também sabia se esquivar os tiros, então nem todo mundo foi baleado. Eu só fui baleado no palco. É doido fazer parte de algo em que você acredita mesmo, que faz você se sentir bem. Eu sou viciado nisso, é o que aprendi por ter feito teatro antes de entrar no mundo do cinema, mesmo antes de Slam. Ninguém escreve peças para ganhar dinheiro. Escrevem filmes e programas de TV para ganhar dinheiro, o tempo todo, mas quem escrever teatro por dinheiro é meio burro. Você sabe que o dinheiro de verdade está em outros lugares, então ao escrever uma peça está mexendo com outras coisas. Coisas que são um prato cheio para um ator. Eu cresci fazendo teatro, e com esta produção tudo se encaixou perfeitamente, porque na verdade eu estava afastado do teatro desde Slam.

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Quando vi que você ia estrelar a peça, fiquei meio chocado porque eu conhecia você principalmente como músico, por exemplo pelo álbum com Trent Reznor e Dead Emcee Scrolls, coisas assim.
Desde que fiz Slam eu tive uma rotina bem peculiar, que me abriu muitas portas. Slam foi na verdade minha tese, meu projeto final para o curso de graduação que eu estava fazendo na Universidade de Nova York. Estava no curso de graduação em interpretação. Minha intenção era fazer audições para filmes e peças, não pensava em escrever meu primeiro projeto e nunca esperei que uma editora ou uma gravadora fossem me propor um contrato, mas Slam acabou rendendo isso, o que me deu a possibilidade de fugir dos papéis furados que me andavam me propondo.

Tipo, quais?
Tipo "o papel do cara preto engraçado ao lado do cara branco bonitão que pega a mocinha no final". E a gente pensa "já vi isso um milhão de vezes, entendo todo o marketing e a as vendas, mas porque eles seguem fazendo filmes assim? É para ganhar dinheiro ou para mudar a vida de alguém?". No teatro é sempre para mudar a vida de alguém. O único propósito é o de fazer essa porra acontecer. Basicamente você não ganha nada por fazê-lo, comparado com o que ganharia se seguisse outros caminhos como ator, então por que raios você faria, senão pela compulsão a dar tudo de si por alguma coisa e ver o que isso desperta em você e no público? Talvez seja porque meus pais sempre foram ativistas. É engraçado que, justo na noite em que você estava lá, Afeni Shakur, a mãe de Tupac, estava na plateia. Era o dia do aniversário de Tupac.

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Sério?
Ela conversou com a gente. Falou que "falando claramente, a revolução não poderia acontecer e não teria acontecido sem o teatro e as artes. Não se enganem, tenham consciência de que aquilo que estão fazendo neste palco é um trabalho revolucionário". Isso é o tipo de ambiente e o tipo de mentalidade com as quais eu cresci, foi o que me ensinaram desde muito jovem. Me ensinaram sobre artistas como Paul Robeson ou até mesmo Sydney Poitier, todos esses personagens, Harry Belafonte, que simplesmente quebraram barreiras e o fizeram com orgulho, em nome de algo maior que seus egos. Claro que os tempos mudaram e também as questões, mas o problema real é o mesmo. É tudo por causa do amor. As pessoas ficam confusas com as questões dos direitos dos gays e dos transgêneros, mas o que tem de tão confuso assim a respeito do amor? O que tem de confuso a respeito de se abrir? Sempre foi a mesma questão, mas as pessoas se bloqueiam nessas coisas e o teatro sempre esteve aí como forma do homem olhar para si mesmo, criticar e analisar seu comportamento e evoluir, antes mesmo da porra da igreja.

Williams observa o palco do alto. Foto de Joan Marcus.

Uma coisa que notei sobre a sua performance foi que vários dos outros atores parecem rimar no ritmo de Tupac, mas achei que você fez um esforço consciente para se apropriar das palavras.
É isso, foi bem isso. Apenas um desejo de possuir o material, coisa que certamente aprendi como músico. Quer dizer, eu fiz covers, mas isso é algo que você aprende no teatro também, e aparece quando consigo me apropriar de um texto escrito por outra pessoa. É questão de enfatizar, me relacionar, e conseguir me identificar com ele até seu âmago, e até o meu âmago.

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Pac também estudou teatro.
Esses duas eu falei com o irmão dele, Mopreme Shakur, e o que é louco nisso tudo é que o irmão era presidente do clube de teatro da escola, e o Pac estava no clube, e disse "ninguém vai acreditar, mas a o que a gente fazia todo dia é sair como uns nerds ouvindo a trilha sonora do musical Os Miseráveis". Imagina isso? O Tupac sendo nerd curtindo Os Miseráveis? Era o que ele fazia o tempo todo!

Outra coisa que me chamou a atenção foi que há poucos outros artistas dos quais você poderia tirar material para um musical, porque Tupac era uma pessoa tão completa e sua obra representa isso.
Todo seu ser está aqui. Veja as mulheres cantando "Keep Ya Head Up". Vem da boca de mulheres e parece ter sido escrito por uma mulher. Me diz com qual música do Jay Z você poderia fazer isso. Me diz com qual música do Biggie você poderia fazer isso, qual música do 2 Chainz. São todos artistas de quem eu gosto, só estou dizendo que Pac era o melhor, porque Pac não fazia rap por dinheiro, Pac fazia rap por pura paixão pela sua comunidade, paixão por estar vivo, ele colocava todo seu ser naquilo da mesma forma que Kurt Cobain colocava todo seu ser. Ele fazia rap desde a porra do cu do Universo, e ele saiu daquela merda toda do jeito mais louco. E sim, o passo em falso foi que o Pac perdia as estribeiras, quando ele se enfurecia ele perdia as estribeiras e fodia com tudo. Quem não perderia depois de ter sido baleado cinco vezes por alguém que você pôde reconhecer como conhecido de um conhecido? Claro que ele se sentiu justificado a dizer que transou com a mãe do filho de Biggie em "Hit 'Em Up", e depois acabar na prisão por outras merdas, especialmente por ele ter um histórico de prisão. Sua tia, Assata Shakur, está ainda hoje em Cuba em asilo político.

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Sério?
Se quiser entender Tupac, leia a autobiografia de Assata Shakur, a tia dele. E leia sobre o que está acontecendo com ela agora, por causa do estado de Nova Jersey. Ela está em segundo lugar na lista dos terroristas mais procurados na América, hoje em dia.

Caralho.
E em primeiro lugar entre as mulheres. Hoje. Por algo que aconteceu em 1976, baseado no COINTELPRO, ou seja, aquilo que o governo dos Estados Unidos fez quando considerou o movimento dos direitos civis e o movimento negro como terroristas, movimento que se estilhaçou e se transformou em gangues como os Bloods e os Crips, e essa merda toda que até hoje vemos na comunidade, mas isso tudo quem iniciou foi o nosso próprio governo. A família do Pac foi vítima disso. Por isso ele praticamente nasceu na prisão, por isso seu pai Mutulu Shakur segue preso até hoje. Por isso Afeni Shakur acabou tendo o estilo de vida que ela teve e sua tia Assata Shakur segue no asilo político em Cuba e o governo dos Estados Unidos ainda oferece uma recompensa de US$ 2 milhões pela cabeça dela, até hoje. E as pessoas perguntam como o Tupac podia cantar contra o governo? É uma loucura, é muito mais profundo que hip hop. Pac descende de uma puta força rebelde, lutando por justiça nos EUA até hoje.

Já é uma loucura que tenham feito o documentário Tupac Resurrection com toda aquela porra de material filmado.
É uma loucura. É até engraçado quando outros rappers se comparam ao Pac. Eu leio esses artigos que dizem tipo "Pac era uma grande figura, não necessariamente um dos melhores rappers, mas uma grande figura". Discordo eternamente desses caras. Eles são bem intencionados, geralmente isso aparece em artigos mesmo quando estão falando bem do Pac. Foda-se. Pac era um rapper incrível.

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Principalmente para o seu tempo, imagino.
Sim, seu primeiro álbum saiu em '91, suficientemente cedo para chegar a dar origem a alguns estilos de hip hop. Acho que teve a ver com a sorte de ter nascido em Nova York, ter se mudado para Baltimore, que é no Sul, e depois atravessado o país até Oakland, que é no Oeste, e portanto ser influenciado pelo que acontecia no Sudoeste, por exemplo no Texas, Scarface e tal. Então o Pac foi exposto desde cedo a mais hip-hop do que o normal, em termos de regionalidade. Os nova-iorquinos estavam ouvindo só outros nova-iorquinos, os da Costa Oeste ouviam os caras da Costa Oeste, os do Meio-Oeste ouviam os do Meio-Oeste, os da Flórida ouviam os da Flórida, os de Atlanta ouviam os de Atlanta, os do Texas ouviam os do Texas. Já o Pac andou por aí.

Então você acha que a capacidade de se deixar influenciar por todos esses estilos diferentes, em todos esses lugares diferentes, somada à as suas experiências e as da sua família, você acha que foi o que criou a pessoa do Tupac?
Em resumo, é isso. Não é muito diferente do que falar do signo zodiacal de alguém, é? É o que se diz, é como o lugar e a data em que você nasceu. Um planeta estava aqui, outro estava lá, este planeta faz você ser de Gêmeos, esse outro significa isso e aquele outro está na primeira casa, aquele na segunda casa. Pac estava nesta e naquela casa, ele visitou este planeta, este outro planeta e aquele outro planeta.

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E tem mais uma coisa, o estilo de Bay Area era muito autêntico. Se liga, os pais de Pac eram os Panteras Negras e depois ele mudou pra Oakland, que foi o lugar de origem dos Panteras e de muito estilo por aí. Ninguém tirava o chapéu como os cafetões de Oakland, eram os únicos que podiam competir com os de Detroit ou Chicago. Oakland tinha sua própria cena, orgulhosamente, antes do hip hop. E depois, no hip hop, Bay Area teve sua própria cena com E-40. Vimos isso claramente, quando surgiram Del e oHieroglyphics. A gente disse "caralho, quem ensinou esses moleques a rimar assim?". Eles tinham uma relação tão brincalhona como funk e era isso que o Shock G e o Digital Underground representavam, e o Pac surgiu através disso também.

Conte um pouco mais sobre o resto do elenco, de onde eles vêm?
Bem, a maioria deles vem do teatro e da música, assim como eu. Temos muitos veteranos da Broadway e muitos artistas como eu que estão fazendo suas estreias na Broadway, então é uma espécie de mistura entre o mundo da música e o do teatro. Também temos muitos dançarinos que fazem de tudo, desde serem b-boys a passarem por escolas de dança.

Há tantos estilos diferentes.
Tem os krumpers, tem os b-boys, os freestylers, os dançarinos que estudaram jazz moderno, estão todos aí dentro e todo mundo na equipe canta também. Tonya Pinkins, seu primeiro filme foi Beat Street, que é o filme clássico de hip-hop. Precisamos trazer de volta os lances do hip hop das antigas para que a galera saiba o que estava rolando. Engraçado como hoje a galera acha que está fazendo uns lances originais e nem sabem que dificilmente vai existir algo mais original do que o hip hop quando surgiu, quando a galera se fantasiava de robôs do espaço.

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Jonzun Crew.
É, você sabe do que estou falando. Africa Bambaataa e Grand Master Flash, veja como se vestiam, veja como dançavam, é fora da casinha. Tô ligado no Bushwick, mas saca só isso. Era assim que eram, os jeans justos. Era uma loucura o que eles vestiam e como falavam, gente como Rammellzee, a gente fala do Basquiat, mas o Rammellzee era, em termos de estilo, do caralho. Esses caras são meus heróis. Acho que a única coisa que falta hoje são eles.

Eu estava falando sobre isso hoje com um colega de trabalho. Acho que está acontecendo quase uma divisão geracional no hip hop hoje em dia, para muitos rappers e fãs e rap mais jovens, a referência "das antigas" é a era Carter 2 de Lil Wayne ou College Dropout. O Chief Keef tem 18 anos, nasceu em 1995. Tipo, isso pra ele é rap clássico.
O lance é que você tem que fazer seu dever de casa. Para mim, é tipo, eu digo isso em termos de acesso. Eu cresci nos anos 80 e 90 ouvindo hip hop e uma hora me interessei por saber de onde vinham os samples, então comecei a fuçar lojas de disco e achar vinis, e voltar no tempo. Espero que quando os músicos na indústria da música tiverem mais interesse na música do que na pose, e realmente começarem a fazer pesquisa musical, vão descobrir o que é ser das antigas. Eu sigo voltando no tempo, mais e mais atrás. Eu ouço hip-hop do Sul e aquilo que me fez entender o que é o blues. Por ser um nova-iorquino, no início fiquei meio "que porra eles estão dizendo, por que eu deveria ouvir isso?". Mas não é o que eles estão dizendo, é como estão dizendo. Assim como Robert Johnson tocava violão como todo mundo, mas dava as costas pra plateia para que não vissem como curvava as cordas para conseguir sons que os outros músicos não conseguiam.

É o que esses rappers sulistas estão fazendo, curvando as cordas. Young Thug e todos eles fazendo bends. Sem falar que Young Thug e muitos outros desses caras vêm do Haiti, da Jamaica, então também têm influência do Caribe, e se você se ligar no que acontece nos países onde eles nasceram, você começa a encontrar de onde vieram essas influências, sejam conhecidas, conscientes ou inconscientes. Amar a música é algo que paga. É como diz o George Clinton. "O funk é sua própria recompensa".

Qual sua música favorita de Tupac?
“Resist the Temptation.” Agora.

Álbum preferido do Tupac?
Me Against the World.

Documentário favorito sobre o Tupac?
Não tenho ideia, nem sei se vi Resurrection. Não sou um especialista em Pac, não sou mesmo. Sou só um ator invocando seu espírito. É algo totalmente diferente. Tem mais a ver com velas e pentagramas.

Como você consegue isso?
[Risos] Pílulas de Pac. Estou tomando boletas de Pac. A mãe dele disse uma coisa doida pra mim na semana passada, ela disse "talvez você volte a ver Saul Williams quando voltar pra casa hoje, mas desde o instante em que começou a cantar "Holler If You Hear Me", no final do primeiro ato, na hora que você fez isso, eu olhei pro palco e vi meu filho, ouvi meu filho e senti o espírito do meu filho na sala e ele está aí, em você, agora. Então talvez você encontre Saul Williams quando for pra casa hoje". E o que eu podia dizer, era a mãe do cara.

Drew Millard é editor do Noisey. Ele está no Twitter - @drewmillard

Tradução: Susana Cristalli