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Música

Entrevistamos Di Melo, Compositor de um dos Discos Mais Importantes da Música Negra Brasileira

Durante oito dias em um estúdio de São Paulo, Di Melo reuniu gigantes da música brasileira e, com inspirações lisérgicas e banhado no uísque, o cantante fez história.

Todas as fotos por Felipe Larozza

1975 foi o ano do “suicídio” de Vladmir Herzog. Foi o ano que uma geada no Paraná promoveu o êxodo de mais de dois milhões de pessoas. Foi o ano em que a blumenauense Ingrid Budag faturou o concurso de Miss Brasil. E o ano em que Di Melo lançou um dos discos mais clássicos da soul music brasileira.

Durante oito dias em um estúdio de São Paulo, Di Melo reuniu Hermeto Pascoal, Milton Banana, Heraldo Monte, Cláudio Beltrame, Geraldo Vespar e até um cara que tocava bandoneon com o Astor Piazolla, mas que ninguém recorda o nome. Com inspirações lisérgicas e banhado no uísque, o cantante fez história.

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Depois disso o cara já foi dado como finado, já disseram que tinha virado cantor de churrascaria, entre outras lendas. A real é que o cantor tá vivão e vivendo, fazendo sons novos com novos nomes da música, entre eles Emicida, tocando com frequência pelo Brasil. Em 2011 o documentário Di Melo, o Imorrível desvendou alguns desses mitos e alimentou outros tantos.

Trocamos uma ideia louquíssima com Di Melo sobre o álbum clássico, sobre as noitadas no Japão e mais uma pá de coisa. Se liga.

Noisey: Você lembra quando começou a tocar?
Di Melo: Eu nasci tocando.

Qual é a sua primeira memória musical?
O Artur Napoleão tocava – meu pai. Minha mãe cantava. Tinha a voz de uma viola. Ele era

homem de muitas mulheres, assim feito eu. Agora eu parei porque essa fez macumba (apontando para sua esposa e empresária Jô Abade). É macumbeira safada… Minha mãe tinha uma voz maravilhosa. Meu pai tocava violão e tinha táxis na praça. E eu nasci assim, de família musical mesmo. Desde muito cedo eu me interessei por entalhe, por pintura e música – em termos de composição. E Recife tinha lugares como Parque São Pedro, onde tinha o Bumba Meu Bar, o Aroeira… e pra onde eu ia, levava minha viola na mão.

Isso com quantos anos?
O meu padrinho tinha uma casa de ferragens, uma das maiores de Pernambuco e me levou pra trabalhar. Fiquei 8 dias. Ele me olhou e disse [imitando sotaque de português] “vugubundo, não quer trabalhaire? Só queres violare e violare e violare. [risos]. Aí cortou minha mesada o Português, mas eu tinha uma madrinha muito bondosa…E eu era assim, fazia entalhes, pinturas, compunha, cantava. Era um forrobodó arretado, fazia tudo ao mesmo tempo. E já ia pro teatro, já curtia tudo. Eu acho que nasci pra fazer essas coisas porque de outra forma eu não consigo me ver. Onde pintava som eu tava. Onde tinha um bar sonoro, eu me felicitava.

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E como era a cidade do Recife nessa época?
Isso foi na época em que tavam lançando o sarongue

O que é o sarongue?
Isso era uma beca em que a mulher estava vestida e ao mesmo instante tava nua.

E o que isso tem a ver com a época?
Era uma loucura. Época de altas descobertas. Aí eu fiz parte dessa peça e foi foda. E o lançamento dela foi no TPN – Teatro Popular do Nordeste. E no final dessa peça ficava todo mundo nu.

Aí você caiu no mundão pra fazer show?
E eu cheguei aqui (em São Paulo) trazido pelo Vanderlei, organista de Roberto Carlos, que foi muito solícito, muito atencioso, muito prestimoso. E me levou pra fazer shows. Era uma época de grandes caravanas. Eu passei a fazer show pra caravana da Ducal (marca de roupa). E tinha caravana de gravadora, caravana de rádio, caravana de teatro, era uma época em que era uma onda de caravana. O Brasil é muito de época, é muito de modismo. E eu comecei a fazer esses shows. Mas aí quando ele teve um problema de saúde, ele largou todo mundo e ficou só com o Jô Soares. Quando ele se distanciou, eu comecei me sentindo órfão, mas aí fui pra noite. Aí foi Lei Seca, Chopp Chocolate Show, Aleluia, Janela para o Mundo, Zecktrack, Balacobaco, Igrejinha, tudo que tivesse de casa noturna sonora, eu tava. Era eu, Negão Bira fazendo a percussão, Tigrão fazia percussão e atabaques, tinha um amigo meu, o Flecha, que tocava também comigo. E a gente arregaçava um sonzinho muito agradável. A gente fazia um som nas madrugadas e vinha gente de todo canto pra nos ver tocar.

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Aí já era começo dos anos 70?
Sim, e eu já tava mais malandro, já dominava a cidade de São Paulo. Porque a noite te dá aquela história da manha, da maranha, da mamunha e da tramoia.

É fácil se perder na noite?
Sim, se o cara não tiver cabeça, se envereda por vários caminhos. E as coisas não andaram tão boas pra mim porque eu facilitei também. Admitidamente eu saí fora da história. Alaíde Costafoi foi a um diretor da Odeon em São Paulo e disse: “tem um baiano, louquíssimo, e o povo para no barulho dele, todo mundo quer ver ele cantar, o magrelo cheio de malandragem”. Aí o cara foi lá, viu o show, gostou e me chamou pra fazer o trabalho. Como na minha primeira vinda com Vanderlei eu fiquei conhecendo Corisco, que era arregimentador de várias gravadoras e já tinha contato com as editoras, eu passei a colocar as músicas editando lá. Ele me convenceu que, de alguma maneira, era melhor que as músicas estivessem editadas para que não fossem roubadas.

E onde que o Roberto de Melo Santos virou o Di Melo?
Meu nome antes era Bob di Melo. Ainda cheguei a gravar música com o Jair Rodrigues e com o Wando com esse nome. Tem alguns discos que tem isso aí.

Você falou que trabalhou 8 dias na loja do teu padrinho. Você teve outra profissão, além da música?
Não, sempre foi isso aí. Sempre música. Entalhava esculturas também. Sempre fui ligado às artes, escultura, pintura, quadrinhos.

Como rolou a gravação?
Veio o Moacir e me contratou pra fazer esse trabalho pra Odeon. O Corisco era arregimentador de várias gravadoras, e foi ele que fez essa junção do “útero ao agradável”. Ele que convidou o Hermeto Pascoal, ele que convidou o Heraldo.

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Você nunca tinha entrado num estúdio?
Nunca. Eu tinha a manha de tocar de noite e a malandragem de palco. Foi isso que me deu essa cancha de meter a bronca.

Chegaram e tentar te empurrar um papel de Simonal 2, né?
Quando pintou os ‘buxixo’ de Simonal, neguinho chegou e falou: “você tem que pegar essa cancha aí. Simonal tá sujo” e eu dizia “não, eu tenho meu rumo, não quero”.

E como você foi parar no Japão?
Os caras queriam mandar o Marku Ribas pro Japão, mas mudaram de ideia quando me viram tocar. Aí eu fui pra lá ficar três meses. Mas eu encontrei por lá um lutador, que era malandro, e ele ganhou o campeonato de karatê lá e ganhou mó grana. Ele tinha uma manha de que, quando vencia o prazo dele, ele sumia por 24 horas. Ele me ensinou a manha. Aí voltava, carimbava o passaporte e ficava, mais três meses. Nisso eu fiquei um ano e meio por lá. Isso foi antes de eu gravar.

Isso foi em 73?
Eu vim, fiquei por aqui, aí pintou esse lance. Aí fui pro Saci Pererê, que era um bar brasileiro, no Japão, mas aí eu ia pra Harajuku, que era o point dos artistas, ia pra Ginza, ia pra Ho-Pong. Foram épocas muito boas.

Mas o Japão na década de 70 não devia ser esse Japão tecnológico de hoje né?
Não, não. O pessoal andava de quimono e tal, tinha um pouco da tradição, e tinha o lance dos caras que foram pra guerra. Eu fui pra lá cantar bossa nova. Tem caras que vivem lá, como Jorge Silva, a Rosinha, e o pessoal não vem pra cá mais.

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Tem uma parte de seu disco de 1977 que foi feita lá. Como rolou isso?
“Kilariô”, “Minha Estrela” e “Se o Mundo Acabasse em Mel” foram músicas que eu fiz lá. Aqui eu fiz “A Vida em Seus Métodos Diz Calma” e outras músicas.

E como que clareou virou “Kilariô”?
Foi no Japão. Eu tava muito muito travado e surgiu do mar o sol e era uma loucura, uma viagem.

Tava doido de quê?
Ah, tudo. Tinha loló, tinha tudo. Até o cheirinho da papoula. Eu não morri de sorte, porque era umas viagem doida. Me deram um comprimidinho e eu não voltei. Eu tava longe para caralho.

E quanto tempo você passou lá?
Um ano e meio. Eu saía e voltava. Conheci lá o Airto Moreira, Flora Purim, todo mundo cantava e tocava no mesmo bar. Fiquei téte-a-téte com Baden Powell durante três meses. Foi uma periodicidade muito boa.

Você gravou um dos discos mais importantes pra soul music, reconhecidamente. Quando você entrou no estúdio, cê tinha noção do que você ia produzir?
Olha, se você reúne Heraldo Monte, Hermeto Pascoal, Cláudio Beltrame, tinha o Dirceu, que morreu aleijado de tocar bateria, tinha o Capitão no sax, o Bolão no trompete. Esses caras barbarizavam. O Geraldo Vespar tocou na música “João” e também ajudou o Zé Briamonte nos arranjos, Luís Melo nos teclados, Milton Banana tava pelo estúdio e deu uma cucharra também, o pai do Taiguara, Ubirajara. Teve até um músico do Astor Piazzolla, que tava aqui por acaso, que tocou.

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Quem era esse cara?
Tinha um loiro, que eu não lembro o nome, mas eu sei que o cara pegou esse bandoneon e deu esse puta som e foi uma loucura,

E esse disco foi regado a quê?
Uíscão. Só ficava lá com uisquezinho e bibibi. Mas em oito dias esse disco tava montado. Foi uma emoção tão grande, foi tão viajô a coisa que, quando eu dei por mim, tava todo mundo chorando. Foi uma sintonia tão grande que eu fiz todo mundo chorar. Foi uma loucura. E a partir daí puseram 3 mil discos só pra divulgação de rádio. E tudo que colocou-se na rua vendeu.

A foto da capa do disco é bem significativa também. Como rolou esse clique?
A foto foi feita no escuro e essa roupa eu trouxe do Japão. Esse bonezinho aí é da terra dos homens que vestem saia.

E quem você ouvia naquela época? Quem você lia? O que era referência?
Eu nasci e cresci ouvindo Luiz Gonzaga, Miltinho, Elza Soares, Carlos Alberto, o homem dos boleros, ouvia Paul Anka, Elvis Presley, Jimi Hendrix, Beatles, os sons da época. Mas o som do Pernambuco é um som que difere de qualquer lugar do mundo. O som que se faz lá é a junção de tudo.

E como você condensou isso no seu som?
É foda. Mas eu sempre tive a manha de fazer o meu trabalho, o meu balanço é meu, não tem nada a ver com nada e diga respeito a nada. Ele é único e sobrevive porque é legal. Qualquer música minha, seja samba, tango, você coloca letra e fica legal. São letras inteligentes, atualizadíssimas.

Tem alguma coisa que você criou em estúdio para esse disco?
Não, não. Foi tudo razoavelmente mastigado pra lá. Eu levei as músicas razoavelmente prontas e já tinha tocado elas na noite. Como existem Ratos de Porão, existiam ratos de estúdio. Tinha um tal de Boneca que tocava muito; Milton Banana. Eram caras que dirigiam o estúdio.

E como foi essa troca com o Hermeto Paschoal?
O Hermeto é um cara muito legal. Além de ser um gênio, ele é muito cabeça boa. Eu gostei das loucuras dele de graça.

E o Milton Banana fez duas músicas né?
Sim, ele era músico de estúdio. Eu tomava muita birinaite com ele. Cruzava direto com Antonio Marcos, cruzava com um monte de gente da noite, Bebeto, Tom Zé

Você teve problemas com a censura?
Eu tive um monte de música censurada, mas eu nunca me aviltei a encarar os caras. Eu digo: “não, vou ficar na minha”. É aquela história: “se fazer de morto pra comer o cu do coveiro”, né?