Relembrando Chuck Berry e seu complicadíssimo legado

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Música

Relembrando Chuck Berry e seu complicadíssimo legado

Sua história é complexa, seu status de lenda é inegável, e ele mesmo é, talvez felizmente, insubstituível.

Matéria originalmente publicada no Noisey US .

Você conhece o Chuck Berry. Antes mesmo de sua morte aos 90 anos no dia 18 deste mês você conhecia seu nome, seu jeito de tocar guitarra ou de alguma forma tinha noção de seu legado. Sucessos não lhe faltam. Faixas como "Maybellene" e "Johnny B. Goode" são pilares sustentando o peso do gênero que ele ajudou a criar. Repita comigo: ele ajudou a criar todo um gênero musical. "Rock and Roll" pode soar como algo datado diante do caldeirão de 2017 (ver More Life de Drake). Nascido de músicos negros e gêneros criados por estes, como jazz e rhythm and blues e, por mais que Berry tenha sido pioneiro do gênero musical mais influente do planeta, o status de Chuck enquanto herói negro e americano sempre foi alvo de disputa por conta de suas próprias falhas.

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A forma grosseira e confusa com a qual Berry tratava as mulheres deveria pesar tanto quanto sua música, mas na maioria dos perfis publicados por aí não vemos isso. Fica a questão no ar: é possível separar o artista da arte? As transgressões de Berry o tornam alvo de comparação com nomes como Bill Cosby e Mel Gibson, com a diferença de que entre Cosby e Gibson este primeiro é um ícone apenas para alguns na comunidade negra e o outro passa por uma espécie de redenção enquanto este texto é escrito. O clichê "nunca conheça seus ídolos" pode ser readaptado para Berry da seguinte forma: "nunca descubra tudo sobre seus ídolos".

Chuck Berry nasceu em St. Louis, Missouri, filho de uma família de classe média em condição que lhe permitia dedicação à arte. A música o tocou logo cedo e no ensino médio ele já estava tocando por aí. Seu primeiro encontro com a lei também aconteceu na época de estudante da Sumner High School em 1944 — preso por assalto à mão armada. Após cumprir pena, Berry casou, fez uns bicos aqui e ali inclusive como operário de uma montadora de automóveis, mas nunca deixou a música de lado. No começo dos anos 50, Berry deixou para trás as bandas de St. Louis para tocar com Johnnie Johnson, pianista de jazz e blues que viria a ser seu parceiro por um bom tempo.

A essa altura, Berry sabia se vender como músico. Com a intenção de ir além do público negro, ele misturava country em meio aos sets de rhythm and blues. Após um encontro com Muddy Waters em 1955, sendo apresentado ao dono da Chess Records, Leonard Chess, Berry gravou "Maybellene", que chegou a vender um milhão de cópias. Ao final da década, havia se tornado um astro de fato. Uma declaração em sua famosa entrevista de 2002 à Esquire mostra o que o fez chegar lá: "Me impressiono quando as pessoas dizem 'quero descobrir quem eu sou'. Eu sempre soube quem eu era. Eu ficaria famoso nem que precisasse morrer pra isso".

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Para fins de perspectiva: ao longo dos quatro anos após o lançamento de "Maybellene", Berry emplacou uma dúzia de singles (quatro deles entre os dez maiores sucessos nos EUA), participou em dois filmes, saiu em turnê com Buddy Holly e definiu todo um gênero que tantos outros artistas tentavam copiar. Quase 20 anos depois, "Johnny B. Goode" foi enviada ao espaço no projeto Voyager Golden Records, quando a espaçonave foi lançada em 1977. Sua música era tão importante que um grupo de cientistas da NASA optou por incluí-la em meio a obras de Beethoven, Stravinsky e Mozart.

Sua presença de palco combinava com sua ética trabalhista no sentido de captar a atenção do grande público. Passando pelo palco com sua icônica "duck walk" ou com outros passos mais ousados, Chuck era diferente de tudo que as pessoas haviam visto até então. Ele contorcia seus impressionantes 1,87m nas mais variadas posições, tudo enquanto cantava ou balançava sua guitarra, muitas vezes fazendo tudo ao mesmo tempo. Um de seus maiores feitos era tanto ser um ícone negro quanto um ícone norte-americano. No auge da fama, Berry voltou a St. Louis, onde era tido como uma lenda, abrindo sua própria casa noturna Berry's Club Bandstand em 1958. E foi ali mesmo que o herói do rock foi ganhando contornos vilanescos.

Um negro havia se tornado o rosto de um novo gênero musical que assolava o país e mesmo assim ele se esforçava para acabar com isso.

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Até aquele momento, Berry havia feito de tudo para chegar ao topo. Um negro havia se tornado o rosto de um novo gênero musical que assolava o país e mesmo assim ele se esforçava para acabar com isso. Em 1959, Berry foi preso com base na Lei de Mann por transportar uma jovem Apache de 14 anos entre estados com propósitos imorais. O suposto motivo era empregá-la em sua casa noturna como guarda-volumes, mas tinha mais coisa por trás daquilo. Após uma série de julgamentos e recursos, Berry passou um ano e meio preso. Durante o tempo atrás das grades, artistas como os Beatles gravaram suas músicas, fazendo delas seus sucessos.

Em recente entrevista ao New York Times, Dave Chappelle falou sobre ícones negros que morrem cedo ou cujas reputações caem em desgraça. Quando o entrevistador menciona Bill Cosby, Chappelle fala sobre como é ser negro e ver o número de seus heróis, já reduzido, diminuir ainda mais:

O lance com Bill Cosby foi dureza pra mim. Não falo isso de forma a diminuir a situação de suas vítimas, mas o cara era meu herói. Tanta coisa ruim aconteceu com nossos ídolos: Muhammad Ali teve Parkinson; Richard Pryor teve esclerose múltipla; Prince morreu jovem demais. Já Bill parecia ser um dos caras que iria até o final e morreria de velhice mesmo. Daí aquilo aconteceu. Meu deus, é terrível.

Da mesma forma que Cosby era um herói para Chappelle, Berry era (e ainda é) um ídolo para tantos outros. Da mesma forma que Cosby (e Gibson) acabaram sendo expostos, descobrimos que Berry também podia ser prepotente e repulsivo. Ele até mesmo admitiu anotar suas aventuras sexuais para um possível livro. "Tenho um computador cheinho", disse Berry sobre tais relatos em uma entrevista de 2010 com a Rolling Stone. Na mesma entrevista ele ainda menciona ter milhares de imagens explícitas, o que é de arrepiar levando em conta seus problemas legais envolvendo mulheres.

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Após sair da prisão em 1963, as décadas seguintes reservaram para Berry uma queda na popularidade, apesar de turnês sem fim. Ao final dos anos 80 ele comprou um restaurante a 45 minutos de St. Louis e passou a administrá-lo. Diversas mulheres o processaram ao longo dos anos 90, afirmando que ele havia instalado uma câmera no banheiro feminino. Berry se defendeu ao afirmar que a medida fora tomada para flagrar uma ladra, mas uma ação policial descobriu fitas com imagens de mulheres no banheiro – incluindo uma menor. No final, ele acabou fazendo um acordo com um total de 59 mulheres.

Seus primeiros problemas com a lei ocorreram em paralelo com a batalha por sua raça. Durante a época como proprietário de casa noturna e em meio ao sucesso nacional, Berry foi convencido de que a polícia caía em cima dele por conta de sua associação com mulheres brancas. Isso poderia muito bem fazer sentido na época de sua prisão em 1959, mas não muda o que aconteceu com as gravações ilegais dos anos 90.

Mas isso também não apaga tudo que ele fez por tantos outros músicos — brancos ou negros — e pelo rock. Berry se inspirou na história negra da música e a lançou rumo ao futuro, e apesar de todas suas falhas, suas criações e influência atingiram positivamente milhões, se não bilhões de pessoas. Seu legado é complexo, seu status de lenda é inegável, e ele mesmo é, talvez felizmente, insubstituível.

Foto cedida pelo Acervo de Michael Ochs 

Austin Bryant é produtor e jornalista residente em Boston. Siga-o no Twitter .

Tradução: Thiago "Índio" Silva