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Música

Cem anos depois, “Pelo Telefone” ainda ajuda a explicar o Brasil

A música de Donga, marco zero do samba, nasceu de uma zoeira com a polícia e chegou a ser rechaçada na imprensa como obra de “um Brasil negroide”.

Donga. Wikimedia Commons.

Se você curte Noel Rosa, Cartola, Paulinho da Viola, Elza Soares ou Romulo Fróes, gosta de bossa nova de Tom e Vinicius e acha massa quando ouve o Fellini e até o Radiohead fazerem incursões pelo samba, talvez não saiba que 27 de novembro de 1916 é hoje uma data tão celebrada como uma das mais polêmicas da história da música brasileira. Naquela segunda-feira em que Donga registrou como “samba carnavalesco” a partitura de “Pelo Telefone” na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, nascia um divisor de águas e surgiam várias questões. Entre elas, a dúvida se aquela canção era mesmo a pioneira do gênero.

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“O ‘Pelo Telefone’ virou um marco, pois foi a primeira música registrada como samba a fazer um sucesso vigoroso num Carnaval, o de 1917. Porém, é claro que é preciso ter uma visão mais crítica sobre isso. Primeiro, porque existem alguns registros anteriores gravados como samba. E depois, do ponto de vista estrutural, a música está mais próxima do maxixe do que do samba como o conhecemos”, explica Luiz Antonio Simas, historiador e autor de livros como Dicionário da História Social do Samba (escrito em parceria com Nei Lopes).

Cem anos depois do registro de “Pelo Telefone”, certas controvérsias sobre a composição de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, e de Mauro de Almeida parecem superadas, mas é claro que a música ainda atrai interesse. E muito.

No Réveillon de 2015/16, a Prefeitura do Rio aproveitou o gancho para comemorar o centenário do samba, levando ao palco de Copacabana SamBRA – O Musical, com o cantor Diogo Nogueira no elenco. E entre 5 de novembro e 3 de dezembro deste ano está prevista para ocorrer na capital fluminense a Samba 100, uma série de eventos organizados por Haroldo Costa, com shows, seminários, apresentação de filmes sobre o ritmo e oficinas de instrumentos. Toda essa festa parte da ideia de que foi mesmo Donga quem deu o pontapé inicial ao gênero que hoje conhecemos como samba.

Ao reunir um conjunto de quatro melodias inspiradas em improvisos e cantorias surgidas nos pagodes (reuniões de bambas na noite carioca e em casas de baianas que migraram para o Rio, como a Tia Ciata) e lutar por sua inscrição na Biblioteca Nacional, instituição fundada em 1810, Donga anunciava duas novidades no cenário da música brasileira. A primeira era a vontade de resguardar os direitos sobre uma obra popular, algo considerado um tanto descabido à época. A outra, planejar passo a passo — ainda que de maneira rústica — o lançamento bombástico de uma canção para o Carnaval.

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Ainda que com todo esse planejamento, o samba não nasceu da noite para o dia. “Pelo Telefone” vinha da tradição de religiões e batuques afrobrasileiros, da modinha dos saraus, do lundu dançado pelos escravos, do tipicamente urbano choro, do samba de roda da Bahia e tinha bastante também daquele ritmo que guiava o maxixe nos salões. Sem contar que, antes dessa música, algumas canções já eram denominadas como samba seja nos títulos, seja na definição de gênero.

É o caso da instrumental “Em Casa de uma Baiana”, de Alfredo Carlos Brício, que ganhou registro como “samba de partido alto” na mesma Biblioteca Nacional em 1913 e foi gravada pelo conjunto da Casa Faulhaber e Co, na Rua da Constituição, no centro do Rio. Outra música que já fazia referência ao gênero era “A Viola Está Magoada”, que chegou às lojas no ano seguinte com o selo “samba” posto pela primeira gravadora de discos no Brasil, a Casa Edison, localizada na Rua do Ouvidor, também no centro da cidade. Num tempo de gravações mecânicas, em que era preciso muito gogó para que o som captado por cornetas pudesse marcar os sulcos das matrizes, a composição de Catulo da Paixão Cearense foi interpretada por Baiano, o primeiro astro brasileiro da voz, e Júlia Martins, cantora e atriz de teatro de revista, com o acompanhamento do coral da gravadora.

Como nenhuma das duas canções citadas alcançou êxito, passando despercebidas pelo público igual a outros “sambas” da época, voltamos à questão sobre “Pelo Telefone” ter sido, de fato, o primeiro samba a ser gravado. O roteirista, escritor e pesquisador Haroldo Costa vê nas músicas citadas no parágrafo acima uma espécie de pré-história do samba. “O ponto zero é a música do Donga. Daí em diante é que o estilo se desenvolveu”, afirma. Já outros estudiosos, como Flavio Silva, autor de Origens do Samba Urbano no Rio de Janeiro, tese que defendeu na Sorbonne nos anos 1970 e pretende editar pela primeira vez no Brasil em 2017, chamam a obra centenária de Donga de “pseudo” primeiro samba. “A importância dela é muito mais mitológica do que musical. Mas tudo bem: querem comemorar os cem anos de samba e é necessário inventar uma data para isso.”

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NA BOCA DO POVO

De volta às ruas do Rio em novembro de 1916, é preciso lembrar que não havia holofotes em cima de Donga. Enquanto os soldados lutavam nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, o prefeito da cidade na época, Azevedo Sodré, regularizava as feiras livres na então capital federal e o América se sagrava campeão carioca de futebol. Nesse cenário é que o músico, então com 26 anos, colocou em prática o plano de registrar sua nova composição na Biblioteca Nacional. Tudo no miudinho.

Biblioteca Nacional/Reprodução

Tendo escutado o mote da primeira das estrofes do que viraria “Pelo Telefone” do próprio Didi da Gracinda — frequentador de festas na casa da mãe de santo e cozinheira Tia Ciata, na extinta Rua Visconde de Itaúna —, Donga foi costurando a obra a partir do “chefe da polícia” que caiu em seus ouvidos. E, em seguida, passou a fazer o corre para assegurar seus direitos autorais (lembra da Associação Procure Saber? Pois é).

Por um lado, Donga parecia querer marcar território e se adiantar frente ao pianista José Barbosa da Silva, o Sinhô, que mais tarde, em 1927, seria coroado o “Rei do Samba”. Por outro, o autor de “Pelo Telefone” estava interessado em criar um sucesso para o Carnaval que se aproximava.

“As pessoas preparavam o Carnaval com antecedência. Naquele tempo, os dias de folia eram o grande momento de difusão das músicas populares. Quando Donga registra [a canção] em 1916, para lançá-la em 1917, resolve chamar de samba querendo lançar uma nova moda, algo ainda não muito conhecido e vivido bem mais dentro das casas das baianas”, contextualiza o músico e estudioso do gênero Carlos Sandroni, professor do departamento de música da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

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O resultado da empreitada, talvez, nem o jovem Donga esperava. A seu pedido, a música ganhou letra de Mauro de Almeida (autor de peças teatrais e jornalista conhecido como Peru dos Pés Frios), tornou-se o maior sucesso do Carnaval de 1917 e caiu na boca do povo. “Pelo Telefone” fez tanto sucesso naquele início de século 20 que virou até paródia em propaganda de cerveja publicada no Jornal do Brasil de 11 de fevereiro daquele mesmo ano. Sério, era assim: “O chefe da folia/Pelo telefone/Manda me dizer/Que há em toda parte/Cerveja Fidalga/Pra gente beber”.
Reprodução.

Com sua partitura distribuída a bandas militares e também registrada em estúdio pelo conjunto da Casa Edison, a canção foi eternizada na gravação de Manuel Pedro dos Santos — o Baiano, ator, artista circense e mais popular cantor do país nas primeiras décadas do século passado —, no disco de 78 rpm que chegou às lojas em 1917.

Não bastasse ter sido um hit repetido à exaustão e cantado em verso e prosa na semana mais comemorada do ano pelos brasileiros, há um século, “Pelo Telefone” ainda hoje ajuda a explicar o Brasil.

É DEIXAR MÁGOAS PRA TRÁS

Mauro de Almeida, o letrista de “Pelo Telefone”, porém, não parecia alegre em ser celebrado como autor da letra. Como Flavio Silva mostrou no seu Origens do Samba Urbano no Rio de Janeiro, o Peru dos Pés Frios escreveu ao menos duas vezes que era apenas um “arreglador”, um organizador da parada.

Em textos publicados nos jornais cariocas A Notícia (24/1/1917) e O Paiz (15/2/1917), Almeida respondeu a colunas elogiosas dos cronistas Arlequim e Beléo informando que os versos não eram dele. “Tirei-os de trovas populares e fiz como vários teatrólogos que por aí proliferam: arreglei-os, ajeitando à música. Mais nada.”

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Pense na treta: galera dando tapinhas nas costas e falando de sucesso, e o cara dizia que não era bem assim. Era como se, com sua revelação diante do êxito da música, Almeida tivesse prenunciado em cem anos os desmentidos e anúncios feitos nas redes sociais, tão comuns hoje. Aliás, era mais: ele desfazia em público um mito, um mal-entendido que se tornaria outra polêmica em torno da canção. Parecia que o letrista não queria virar uma lenda por aí.

De qualquer forma, a letra de “Pelo Telefone” (“uma espécie de pout pourri ou rapsódia”, diz Flavio Silva ao Noisey) é um caso à parte. Com referências ao folclore nacional, caso de “Olha a rolinha/Sinhô, sinhô/Se embaraçou/Sinhô, Sinhô”, e à noite carioca da época, citando o próprio apelido do autor, Peru, e o do famoso folião e notívago Norberto do Amaral Junior, o Morcego, essa colcha de retalhos transformada no marco zero do samba é um chamado ao reinado de Momo desde o “chefe da folia” do início.

A música pede inclusive que se deixem as mágoas para trás naqueles dias de festa, algo parecido ao que falaria qualquer um dos entusiastas da bagaceira que rola solta em blocos, que dominam as ruas das cidades brasileiras no Carnaval.

NA CARIOCA, TEM UMA ROLETA

Ainda sobre a letra de “Pelo Telefone”, entraram para a história também versos não creditados a Mauro de Almeida e tampouco cantados por Baiano. A primeira estrofe composta por “O chefe da polícia/Pelo telefone/Manda me avisar/Que na Carioca/Tem uma roleta/Para se jogar” é entoada até hoje e teria origem no combate à jogatina no Rio dos anos 1910.

Em 2 de maio de 1913, repórteres do A Noite instalaram uma roleta no Largo da Carioca, onde ficava a redação do jornal. A ideia? Mostrar como a polícia poderia ser condescendente numa situação daquelas, posto que seu comandante, Belisário Távora, não parecia firme no combate ao jogo. Apesar do bafafá e de o comissário Sá ter espatifado a bengaladas o letreiro com os dizeres “Roleta com 32 números. Só ganha o freguês”, os guardas não apreenderam o material e o chefe da corporação ainda recebeu o epíteto de “instituidor do jogo franco” na legenda de uma das fotos que ilustrava a notícia:

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E a zoeira não parou por aí. A conexão desse episódio com o lance do telefone surgiu devido a outro chefe de polícia. Por causa de uma confusão que rendeu até tiro dentro de um clube da Avenida Rio Branco, Aurelino Leal assinou um despacho, datado de 30 de outubro de 1916, no qual fazia uma recomendação, no mínimo, curiosa. Ele aconselhava ao comissário a dar uma ligada “pelo telefone oficial” para informar qual o ofício da vez.

Estampado nas páginas do mesmo A Noite, no dia seguinte, o documento não demorou a levantar dúvidas na cidade: o responsável pela polícia estaria mandando um recado cifrado com o intuito de avisar com antecedência possíveis diligências aos donos dos locais onde o jogo comia solto? Ou era só algo de praxe a ser feito?

Tudo isso virou sátira cantada. De acordo com Carlos Sandroni, em seu livro Feitiço Decente: Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933), juntar dois acontecimentos, separados por mais de três anos, na letra de uma música demonstrava quanta desconfiança havia em todas as autoridades, nas mais velhas e nas de 1916.

Parece então que a desconfiança em relação ao poder público no Brasil não é exatamente algo novo.

Na canção lançada no Carnaval, Donga e Mauro de Almeida falaram do “chefe da folia”, no clima da festa, mas a obra que os colocou nos livros de história ganhou mais uma polêmica em sua criação.

Se rolou mesmo reclamação do que seria uma apropriação de ideias — embora a nota de 4 de fevereiro de 1917, no Jornal do Brasil, em que um tal de Grêmio Fala Gente dizia que nomes da pesada na época, como Sinhô, João da Mata, Hilário Jovino e Tia Ciata, cantariam o “verdadeiro Pelo Telefone” naquele domingo, nunca tenha sido comprovada como um apelo real dos eventuais reclamantes da autoria da música —, não se costuma mais ver as coisas por esse lado atualmente.

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“Donga se baseia em tradições populares e quem levou isso à frente não era visto como se vê o compositor hoje. Agora, compositor é o cara que compõe, escreve, apronta e mostra aos outros. Na época do Donga, isso era feito na festa. Então, ele não roubou. Usou elementos já existentes, mas acrescentou o dele também”, diz Sandroni.

Para Flavio Silva, o músico “farejou” o sucesso. “Ele vislumbrou o negócio e foi adiante. E fez muito bem.”

PIXINGUINHA, CHICO E MARTINHO

Martinho e Donga. Reprodução.

Nascido no Rio em 1890, Donga foi contemporâneo de Pixinguinha. Violonista, ele era grande parceiro do autor de “Carinhoso” e tocou com ele nos Oito Batutas, grupo que fez sucesso na Paris da década de 1920. Donga também ficou conhecido por ter sido recrutado pelo maestro Heitor Villa-Lobos, em 1940, para participar do time que gravou em estúdio dentro do navio Uruguay, atracado no Rio, no projeto do regente inglês Leopold Stokowski chamado “Native Brazilian Music”. Acompanhado por figuras do quilate de Cartola, Laurindo de Almeida, Zé da Zilda, João da Baiana e do próprio Pixinguinha, Donga contribuiu na sessão com composições como “Bambo do Bambu” e “Passarinho Bateu Asas”.

Num tempo em que a turnê dos Oito Batutas na capital francesa era vista com grandes restrições por parte da imprensa, como demonstra o texto de Aníbal Fernandes no Diário de Pernambuco de 1º de fevereiro de 1922 (o cronista fala em não saber “se é para rir ou para chorar… [a exibição] …não do Brasil-elite, mas do Brasil negroide e ridículo”), a música de Donga, a de Pixinguinha e, depois, a de Ismael Silva e a turma do Estácio ajudou a levantar discussões nacionais.

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“O Brasil pós-Abolição teve um projeto de Estado que pensou a questão do branqueamento racial. E esse branqueamento era também cultural, pois havia uma geração de intelectuais, assim como o próprio poder público, que pensava na necessidade de o Brasil consolidar um modelo de cultura de padrão europeu. Nesse sentido, o sucesso de ‘Pelo Telefone’ contribui na luta contra um processo, inclusive, de criminalização, que envolvia praticamente todas as referências oriundas de uma cultura afrodiaspórica”, afirma Luiz Antonio Simas.

Mas se em meados dos anos 1940 e 1950, a geração de Donga ficou em segundo plano, ela foi resgatada de maneira gradual na década de 1960. Basta dar uma olhada aí embaixo para entender. No vídeo, ele aparece cantando e dançando seu maior sucesso, ao lado de um jovem Chico Buarque, em 1966, no palco do programa de Hebe Camargo na TV Record. E logo o músico veria “Pelo Telefone” voltar a ser gravada por novos artistas.

Primeiro, pelo MPB4, no álbum Deixa Estar, de 1970. Depois, por Martinho da Vila, no disco Origens, lançado em 1973.

O autor de “Canta Canta, Minha Gente” conta que conheceu Donga em reuniões das antigas organizadas pela pesquisadora Lygia Santos, filha do compositor de “Pelo Telefone” com a soprano Zaíra de Oliveira.

“Ele não era de falar muito, mas ficou felizão com a regravação”, diz Martinho. O som se tornou hit, alavancou a venda de LPs e rendeu “bastante” direito autoral. O cantor ainda ri ao se lembrar da reação de Donga com o sucesso. “Ele chegou e falou: ‘me quebrou um galho enorme!’”

No ano da morte de Donga, em 1974, ainda saiu pela Discos Marcus Pereira um álbum intitulado A Música de Donga. Ali, além de partes do depoimento que deu ao MIS-RJ (Museu da Imagem e do Som), em 1969, há 11 de suas canções, interpretadas por Elizeth Cardoso, Leci Brandão, Marçal, Altamiro Carrilho, Canhoto e Dino 7 Cordas.

Comemore-se o centenário do samba agora ou não, levando em conta “Pelo Telefone” como pioneira, a obra deste “decodificador” (como o define Luiz Antonio Simas) ficou. Pra valer.

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