A história do maior bootlegger do Brasil

FYI.

This story is over 5 years old.

Música

A história do maior bootlegger do Brasil

Roberto Souza foi por muitos anos a Central do Brasil das gravações piratas de shows de rock e agora é, ao lado de outros mitos do vídeo amador do mundo, estrela de um documentário gringo.

Hoje em dia, não há show que passe sem registro. Não interessa o tamanho do evento, basta você colar no meio da galera para se deparar com um mar de smartphones captando vídeos de artistas em ação — até transmissão ao vivo via apps, como o Periscope, se tornaram algo comum. Mas nem sempre foi assim.

As gravações de apresentações ao vivo de bandas e artistas eram raras e só existiam graças a ação de alguns poucos malucos, que tinham acesso a equipamentos de gravação e se arriscavam a enfiá-los para dentro dos rolês. Esses registros acabaram dando origem aos "bootlegs", termo gringo para descrever discos e fitas VHS que eram comercializados e trocados, mas que não constavam no catálogo oficial das bandas.

Publicidade

Para ficar claro: um bootleg era uma gravação não autorizada pelo artista, ou pela gravadora ou pelas duas partes. Elas podiam ocorrer de várias formas, como a utilização de câmera VHS ou gravador de voz escondido no meio do público. Outros métodos eram mais sofisticados, como o uso de equipamento profissional de gravação acoplado ilegalmente à mesa de som e filmagens profissionais destinadas aos telões da casa, que acabavam vazando. Além disso, havia a reprodução ilegal de shows transmitidos por canais de TV de todo o mundo.

A natureza da coisa era tão clara, que, no auge das gravações no final dos anos 1980 e começo da década de 1990, pedir por um "disco pirata" na Galeria do Rock, em São Paulo, significava pedir por um bootleg — e não por uma cópia sem vergonha de camelô para discos vendidos nas grandes redes de lojas, como acontece hoje em dia.

A febre por bootlegs foi global e criou uma subcultura de gravação, trocas e comercialização desses registros. Antes da internet, partes do mundo já se conectavam por causa de música. Existiam bootlegers na Europa, nos EUA, no Japão e no Brasil. Aqui no Bananão, bootleg tinha nome e sobrenome, Roberto Souza. Conhecer sua história é conhecer a história dos bootlegs no Brasil.

O engenheiro, hoje com 58 anos, gravou em vídeo praticamente todos os nomes do rock que passaram pelo país entre 1986 e 1995. Nas contas dele, foram cerca de 70 shows, incluindo nomes como Motörhead, Deep Purple, Black Sabbath, Yes, The Cult, Kiss, Ramones, Bon Jovi, AC/DC, Skid Row, Iron Maiden, Ozzy, Faith No More, Metallica, Judas Priest, Slash, Pantera, Aerosmith e Alice Cooper. "Eu filmava porque eu gostava. Todo mundo quer ter uma recordação dos shows que vai", diz ele.

Publicidade

A partir do começo dos anos 1970, gravações de artistas começaram a se espalhar na gringa, primeiro em vinil e depois em fitas K7. O apetite era tão grande que acabou incentivando algumas bandas a lançar material ao vivo, como o Kiss, que em 1975 soltou o clássico "Alive". No fim da década, as fitinhas já chegavam ao Brasil e Roberto começou uma coleção, o que permitiu que fizesse seus primeiros contatos com a comunidade global de bootleggers. As listas de trocas surgiam em anúncios de revistas gringas de música, e as trocas rolavam via correio — se tudo rolasse rapidamente, as fitas chegavam em até 1 mês e meio.

Mas, para ele, só o som não bastava. Ele queria IBAGENS! As coisas começaram a mudar a partir de 1982, quando a Sharp lançou o primeiro videocassete do Brasil. No ano seguinte, o Van Halen passou por aqui e teve show transmitido pela Band. Roberto pirou com a possibilidade de registros em vídeos e gravou o Van Halen. Dois anos depois, foi a vez do primeiro Rock in Rio virar fita VHS. Com essas pepitas na mão, ele começou a anunciar em revistas gringas, a ideia era fazer trocas e aumentar a coleção particular.

Os gringos piraram no material que ele tinha, e ele começou a receber dezenas de cartas propondo trocas. Em pouco tempo, o cara tinha virado uma espécie de Central do Brasil dos bootlegs. Para qualquer estrangeiro que quisesse fitas daqui, Roberto tinha virado um nome quase obrigatório — ao passo que a sua coleção pessoal de fitas também aumentava.

Publicidade

MÃO NA MASSA

Ao receber as listas de material dos gringos, Roberto começou a perceber que algumas eram marcadas como "private shots". Ou seja, os estrangeiros não estavam passando para frente apenas material de TV, mas também gravações caseiras. Ele, claro, percebeu que tinha que fazer igual.

A memória não ajuda muito, mas o cara chuta que a sua primeira vez deve ter sido com o Sepultura em 1986. Para fazer suas próprias gravações, ele arrumou com um brother de Santo André uma câmera Panasonic M6, um trambolhão de 2 quilos que precisava ser apoiada no ombro e que tinha autonomia de meros 50 minutos. Do jeito mais DIY, começava de fato a saga do bootleger brasileiro.

"Era muito legal filmar. Tinha um lance de desafio, de burlar a segurança", diz ele. Apesar do papo de aventureiro, ele não sofreu muito. Roberto era um cara muito bem conectado. Embora engenheiro, ele tinha uma loja na Galeria do Rock e conhecia todos os caras que traziam artistas para o país ou que trampavam na imprensa local.

Assim, Roberto quase sempre tinha credencial para os shows, o que permitia escapar de revistas no acesso aos rolês. Quando não tinha essa facilidade, bastava esperar na entrada de imprensa por algum amigo e pedir para que ele entrasse com o equipamento de gravação. Depois, era só comprar o ingresso normalmente, pegar a câmera e se posicionar para fazer o registro sem dar bandeira. Durante a gravação, bastava tomar cuidados básicos, como cobrir a câmera com uma camiseta.

Publicidade

Mas os shows não eram suficientes. Roberto passou a frequentar aeroportos à espera das bandas (sempre com a ajudinha de um parça que trabalhava na Varig). Foi assim que, em 1992, apenas ele e mais cinco ou seis gatos pingados receberam o Black Sabbath, que na época tinha Ronnie James Dio nos vocais. Outro alvo do bootleger eram as coletivas de imprensa, tanto que alguns gringos o apelidaram de "rei das coletivas".

A fama no circuito de bootlegs cresceu tanto que até os departamentos de jornalismo de canais de TV do Brasil, como Globo e SBT, passaram a fazer pedidos de material de coletivas de imprensa, o que rendia algumas histórias bizarras.

Em 1992, o Extreme, bombadaço com a bregóide "More Than Words", veio para o Brasil para participar do Hollywood Rock — evento cujos direitos de imagem pertenciam à Globo. "O diretor de jornalismo do SBT me ligou pedindo material da coletiva, que tinha rolado no Maksoud Plaza", conta. Ele preparou às imagens, que foram exibidas em algum telejornal do canal do Silvão.

Claro, a Globo ficou putaça. "No dia seguinte, eu fui no hotel de novo e tava uma segurança! Os caras redobraram a segurança e não deixavam mais ninguém entrar com nada. Foi divertido!", conta dando risadas.

BIG BUSINESS

No começo dos anos 1990, o mercado de bootlegs tinha virado um grande negócio. Na Itália, a lei de direitos autorais era ultraflexível, colocando gravações ao vivo quase em domínio público. Qualquer pessoa poderia lançar trabalhos ao vivo de qualquer artista — bastava depositar em juízo um valor referente ao direito autoral. Assim, mesmo que um artista ou gravadora não quisesse lançar um disco ao vivo, a lei permitia que terceiros lançassem esses trabalhos sem a necessidade de qualquer autorização.

Isso permitiu que surgissem selos gigantescos, que lucravam alto. Um dos nomes mais conhecidos, a KTS tinha um prédio em Milão, com departamento de arte, estoque e estúdio para mixagem e masterização de gravações. Quando esses discos chegavam no Brasil, os bolsos choravam. No meio da década de 1990, enquanto um CD comum, comprado nas Lojas Americanas, saia, em média, por R$12, os importados nas galerias paulistanas podiam custar até R$ 60. Lembre-se: o salário mínimo em 1996 era de R$ 112.

Publicidade

A febre entre os fãs de bandas movimentava também a vida de Roberto. Colecionar bootlegs começava a ficar caro, e ele passou a comercializar a suas próprias gravações (além das gravações de TV). No começo dos anos 1990, ele investiu US$ 2.000 em um videocassete Panasonic AGW1, que convertia padrões de imagens de qualquer lugar do mundo. O equipamento era obrigatório entre bootlegers de todo o mundo.

Além disso, terceiros passaram a contratar Roberto para filmar shows que ele não estava planejando assistir. "Na verdade, eu pedia pras pessoas cobrirem os custos, algo como o valor do ingresso, estacionamento, gasolina e 'o lanche', nada mais. O filme, qualquer banda que fosse, sempre servia pra trocar no exterior, então esse era o meu lucro", diz.

A fama dos bootlegs, claro, começou a chegar ao ouvido de artistas e gravadoras. Alguns até abraçaram a causa. O Metallica, durante a turnê do Black Album nos EUA, disponibilizava tomadas e espaço para tripés na primeira fila.

Sabendo disso, Roberto agiu rápido quando a banda tocou no Parque Antártica em 1993. Por meio de conhecidos nos EUA, conseguiu falar com o guitarrista Kirk Hammet em São Paulo e obteve autorização para fazer uma filmagem profissional do show. Tem um pedacinho dele no YouTube. Antes disso, o bootleger havia registrado o histórico show da banda em 1989 para meras 2 mil pessoas no Maracanãzinho.

Porém, ao contrário do Metallica, as gravadoras surtaram com o mercado de bootlegs. E logo, passaram a pressionar a Itália para que modificasse a sua lei. Nos EUA, carregamentos vindos da Europa com milhares de bootlegs eram apreendidos e destruídos. Até que, em 1995, a lei foi modificada na Itália, colocando um ponto final nos negócios dos selos locais. Reza a lenda que o dono da KTS se refugiou na Ásia. Roberto não sabe o paradeiro dele, mas afirma conhecer um outro dono de selo de bootlegs que mudou-se para a África do Sul.

Publicidade

O ponto final na febre dos bootlegs começou na virada do milênio e a chegada da internet, do MP3, dos sites de compartilhamento e das câmeras digitais. O que era raro e antigo começou a surgir de graça em formato digital. Enquanto isso, o poder de captação de novos shows tinha caído nas mãos de qualquer Zé Ruela com uma Canon PowerShot.

FIM E RARIDADES

Foi também em 1995 que Roberto se aposentou. "A situação econômica da época era ruim e a loja que eu tinha não tava muito legal. Eu estava preocupado." O ponto de mudança ocorreu após o Monster of Rock de 1995. "Eu tinha filmado todos os shows e estava voltando para a casa e pensei: 'Chega, hoje foi meu último show'", diz. Depois disso, ele prestou concurso e hoje é funcionário público.

Há alguns anos, ele abriu um perfil no YouTube com pedacinhos de algumas de suas raridades - na descrição dos vídeos propõe trocas. Lá é possível ver que o cara registrou o show do Motörhead em São Paulo em 1992!

Outras gravações nem viram a luz do dia. Em 1995, Roberto registrou a primeira turnê solo de Slash em São Paulo. A gravação tem apenas meia hora porque nesse rolê ele foi flagrado pela segurança. A casa percebeu que ele estava com uma câmera embaixo de uma mesa no Olympia e chegou junto, impedindo que o resto fosse gravado. A outra única vez que deu bosta foi em 1991, no show do Deep Purple em Curitiba. Mas, naquela vez, ele perdeu apenas uma única música da banda.

Publicidade

Um show que quase foi registrado por ele foi a passagem do Guns n' Roses em São Paulo em 1992, que ficou conhecido como "show da chuva". Roberto estava no Anhembi, mas lembra que choveu tanto e por tanto tempo que ele começou a temer pela sua câmera. Antes mesmo de Axl Rose começar a se esgoelar, o bootleger já tinha vazado de lá.

DOCUMENTÁRIO

A história de Roberto e de outros bootlegers espalhados pelo mundo foi recontada no documentário Bootleg Cowboys - The Music Industry's Outlawn Historians. Lançada no começo do último mês de dezembro, a produção é totalmente independente e foi tocada por Gary Shurtleff, 47, um bootlegger aposentado da região de San Francisco, Califórnia.

Veja o documentário inteiro no YouTube.

O cara colocou US$ 20 mil do próprio bolso e saiu entrevistando bootleggers (tem gente de diversas cidades nos EUA, gente na Europa e na América do Sul) e artistas. Entre eles estão Dave Mustaine (Megadeth), Herman Rarebell (Scorpions 78-96), Andreas Kisser (Sepultura), Jay Bentley (Bad Religion) e Franklin Vanderbilt (batera do Lenny Kravitz).

O filme conta uma cacetada de causos que mostram como os bootleggers eram malucos e apaixonados pela arte de registrar shows. Gary, por exemplo, foi flagrado enquanto filmava o Nirvana na virada de 1991 para 1992 em San Francisco. A página do cara no YouTube tem alguns registros. O último deles foi uma apresentação do Pantera em San Jose (Califórnia) em 2001.

No total, foram 250 shows registrados e outros tantos trocados. A dedicação pode parecer uma tentativa de ganhar uma grana em cima de uma indústria já milionária. Mas, na real, as ambições eram bem menores. Diz, Gary:  "A troca de fitas VHS foi o YouTube original!".