FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Uma história oral do ‘Dois’, do Legião Urbana

O segundo disco da Legião Urbana completou 30 anos em julho, e Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá e o produtor Mayrton Bahia relembram as histórias em volta do clássico do rock nacional.

Ilustração por Pedro Nekoi/VICE.

No auge dos 15 anos e passando por uma fase estranha, conhecendo gente ‘esquisita’, eu não me sentia muito legal e não era chegada numa birita. Foi a pegada pop de “Quase Sem Querer” que bateu primeiro. O que depois virou um clichê sobre os escritos de Renato Russo, causou um estranhamento inicial: Como é possível que esse cara cante tanto sobre o que sinto? Com o Legião, tudo se encaixava de um jeito diferente; alegrias, dramas, inseguranças, dúvidas sobre escolhas feitas, a sensação de estar no lugar errado, aquele desassossego que ia aparecendo a cada audição. Se RPM era pra festar, Legião passou a ser a banda que eu ouvia sozinha, o tempo todo. E uma a uma, aquelas 12 canções foram se mostrando e abrindo clareiras.

Publicidade

Como eu, milhares de jovens brasileiros, na adolescência ou iniciando a vida adulta se viram cantados nas linhas e entrelinhas de Renato Russo e sua gangue — e foram arrebatados. Legião Urbana se transformou em símbolo de reconhecimento entre iguais. Gostar de Legião era um primeiro sinal de afinidade. A partir dali, canções da Legião seriam obrigatórias em todos os cantos, nas festas, no rádio, nos lares, nas rodinhas de violões e nos livrinhos de cifras… tudo havia mudado pra nós que tínhamos entre 15 e vinte e poucos nos anos 80.

Em julho de 1986, chegava às lojas brasileiras Dois, o segundo álbum da Legião Urbana, que rapidamente alcançaria a marca de 250 mil discos vendidos. O feito levou a banda receber o disco de platina, que logo seria ampliado para a marca para 500 mil, chegaria a 1 milhão de exemplares vendidos e não pararia por aí. Dois é o disco que eleva o status da Legião Urbana de novidade promissora com relativo sucesso na estreia para o de mito do rock brasileiro e Renato Russo ao posto de principal porta-voz daquela geração. Além disso, praticamente definiu o que seria a estética da Legião dali pra frente, no som e no discurso.

No plano musical, o punk/pós-punk que marca o disco de estreia é substituído por uma abordagem mais acústica e intimista. A temática de estreia, e seu discurso mais agressivo e voltado para questões sociais e políticas, muda para questões existenciais, relações humanas. Dois também mostrou que uma banda poderia fazer sucesso de massa no Brasil com uma música densa, cheia de nuances, que em outras épocas seria considerada hermética demais e inviável comercialmente.

Publicidade

A nova sonoridade da banda refletia outras mudanças também. Não apenas os jovens músicos passavam por grandes transformações em suas vidas. Enquanto Renato Russo, Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato “Negrete” Rocha se realinhavam entre Brasília e Rio de Janeiro — e com a crescente venda de discos provocando o aumento dos shows 3, o Brasil também se debatia na retomada da democracia, no meio de uma crise econômica gigantesca. O Rock Brasil começava a ocupar seu lugar de destaque, colocando pela primeira vez a música brasileira a tocar mais nas rádios que a estrangeira, enquanto os brasileiros encaravam um vice-presidente, José Sarney, que herdou o cargo com a morte de Tancredo Neves. O País estava às voltas com o Plano Cruzado e receberia naquele ano uma leva de discos que foram o ponto de virada para a existência de um rock para as massas no Brasil — Vivendo e Não Aprendendo, Ira!; Cabeça Dinossauro, Titãs; Rádio Pirata ao Vivo, RPM; e Selvagem?, Os Paralamas do Sucesso.

Trinta anos depois, o guitarrista Dado Villa-Lobos e o baterista Marcelo Bonfá — o baixista Renato Rocha, o Negrete, faleceu em 2015 — encontraram uma brecha na turnê de aniversário da banda para relembrar histórias e tensões que marcaram a feitura deste que é um dos mais importantes discos da música brasileira e da carreira da banda. O produtor Mayrton Bahia, atualmente professor de produção musical, também encontrou um tempinho para falar sobre os “meninos de Brasília” cujo som continua sendo uma referência. Relembram o clima entre eles, a expectativa e as dificuldades técnicas para chegar ao som que queriam.​

Publicidade

1985/1986: Tempo fechado e expectativas

Dado: Já estávamos no Rio de Janeiro desde 1985. Quando chegamos o primeiro disco tinha acabado de ser lançado e já pensávamos em ampliar nosso reportório para o segundo. Foi um ano conturbadíssimo, em que Tancredo Neves seria nosso presidente e ficou o [José] Sarney, coisa triste pra gente naquele momento, com uma nova constituição a ser redigida e grandes mudanças. E a gente também vivendo uma grande mudança nas nossas vidas: se mudar de Brasília pro Rio de Janeiro, dois lugares bem diferentes. O primeiro disco foi acontecendo de forma intensa e bacana, subindo nas paradas e a gente virando uma banda de verdade dentro do circuito de entretenimento do Brasil, aparecendo em rádios, vendendo discos, com demanda de shows bacana. E aí, em meados de 85, começamos a falar mais sobre entrar estúdio e fazer novas músicas.

Bonfá: Aquele momento era muito intenso, muita coisa acontecendo, trabalhando o primeiro disco, fazendo show. Estávamos começando e é aquela história de já ter composições na manga, estar executando ao vivo e, de repente, tá na hora de fazer um segundo disco. Lembro de certa pressão externa pelo resultado do primeiro disco, talvez. Ele tem uma variedade legal de informação rítmica e o segundo disco foi um momento complicado pra mim. A gente tava numa batida muito louca, uma vida muito desregrada, na estrada. Vejo nada muito além do que isso: um momento difícil. Me espelho em “Andrea Dória”. Não vou dizer que foi uma letra pra mim, mas pode ser que seja… sei lá…

Publicidade

Mayrton: O momento era mesmo do rock brasileiro. No começo, o mercado estava em crise e isso facilitou que as gravadoras abrissem estúdios para os novos, porque o custo é muito baixo. Antes, a gente fazia aqueles discos com violinos, cordas, intérpretes, um monte de músicos para pagar. Com uma banda, os músicos são a banda. No segundo disco o mercado já estava forte e o Rock Brasil vinha com força. É o primeiro momento em que as rádios brasileiras passam a tocar mais música brasileira que música importada. E foi neste momento que o Rock Brasil começou a virar essa mesa! O que eu vi na Legião é o que chamo de credibilidade. Aquele artista que toca e canta aquilo que ele realmente acredita, aquilo que ele é. Legião sempre fez isso. A primeira vez que eu vi Legião foi numa fita cassete, Renato Manfredini, voz e violão, tinha “Faroeste”.

O desafio do segundo disco

Dado: Renato vinha sempre com a conversa da síndrome do segundo disco: tem que fazer jus aquele primeiro e incendiar a fogueira pra conseguir seguir adiante. Esse era o pensamento do Renato, que era nosso guia. Começamos e apareceram músicas como “Daniel na Cova dos Leões”, “Andrea Doria”, “Tempo Perdido”, que finalmente virou essa canção do primeiro lado do disco. A gente tinha canções que vinham sendo feitas, tipo “Plantas Embaixo do Aquário”, “Fábrica”, “Metrópole”, ideias que existiam e foram tomando formato definitivo neste disco. E, claro, Renato foi adicionando novos elementos, mais acústicos, tipo “Eduardo e Mônica”, musica que a gente já ouvia da época do Trovador Solitário. Então esse quebra cabeça foi se juntando ao longo do final de 85 e quando finalmente entramos em estúdio, no começo de 86, com a ajuda do Carlos Savalla e Mayrton Bahia produzindo. Savalla era o engenheiro de som do Paralamas do Sucesso e um grande amante da música que tinha colado bem no Renato, que também tinha se dado bem com ele. Os dois eram beatlemaníacos e colecionadores de discos e ele foi lá pra ajudar a gente. Mayrton encabeçava a produção naquele momento.

Publicidade

Bonfá: Começamos a focar neste segundo disco, mas havia muita pressão, minha pra banda, da banda pra mim, de fora pra banda, de mim pra mim mesmo. As pessoas costumam dizer que o segundo disco é um marco, e senti na pele. É um marco de uma banda, principalmente quando é uma banda de garotada. Então, consigo ver essa fragilidade toda, uma coisa difícil dentro da banda, para mim principalmente. Cara, a gente tava muito junto neste momento, a gente trocava informação e a minha com o Renato era muito intuitiva. Cada integrante de uma banda tem uma posição muito distinta, né? Cada um é responsável por uma área muito abrangente. E eu tinha total liberdade. Na bateria nunca recebi nenhum direcionamento, justamente porque o Renato esperava de mim essa direção. A fragilidade toda que está no disco é muito perceptível justamente no lado da bateria. Então, acho um disco muito sensível porque explora de mim um lado muito intuitivo e que eu sempre prezei, de evitar muitas referências. Justamente porque acredito que a bateria, dentro do universo do rock, é responsável por uma carga de energia muito grande e acho que é algo primitivo, no rock and roll e no punk, é muito visceral. E isso vem de algum lugar… naquele momento eu não sabia muito bem de onde vinha, só que gostava de onde vinha. Acho que era justamente da química da banda. Quando montei a banda com Renato a gente tinha um tipo de som em mente. Que era uma coisa ao mesmo tempo visceral e simples, intuitivo e meio experimental também. A gente tinha a coisa do Public Image Limited, de bandas pós-punk que tinham muita experimentação naquele momento, e isso ficava meio ao meu cargo.

Publicidade

Mayrton: Havia uma expectativa grande, claro, porque o segundo disco é o que pode ou não confirmar o sucesso do primeiro. No primeiro havia algumas músicas que eles já tinham feito, mas no segundo não. Foi um disco todo feito no estúdio, inclusive com músicas compostas dentro do estúdio. E tem aquele peso! Então, havia muita dedicação da banda de fazer o disco do zero. “Índios”, por exemplo, é interessante porque tinha a base, não existia nem melodia nem letra. Legião compunha muito desta forma. Primeiro faziam uma base e, a partir dali, Renato ia pensar no que ia dizer.

A sonoridade

Dado: O Renato já tinha esboçado como este segundo disco seria, tinha definido a ordem das músicas, lado a lado b e quando chegamos ao estúdio já estava tudo meio pronto. “Daniel na Cova dos leões” vai ter a Internacional Socialista, vai tocar um trecho, esperar e entrar “Daniel”; a segunda música vai ser “Quase sem querer”; vai fechar com “Tempo Perdido”, vai virar o lado e entrar “Metrópole”. Lembro que antes de entrar no estúdio ele me deu uma fita cassete com músicas acústicas. Tinha o primeiro disco do Paul McCartney, Cat Stevens, John Lennon, tudo com muitos violões, porque ele achava importante essa linguagem existir. E aquilo realmente abriu uma janela pra mim com novas perspectivas, junto com o fato de que eu também estava ouvindo João Gilberto, aprendendo a tocar umas inversões de acordes, entendendo mais de harmonias e melodias, tanto que saiu “Andrea Doria”.

Publicidade

Certamente é o momento em que a gente define uma sonoridade. Ali tem todos os aspectos sonoros e líricos, técnicos, de rebeldia, melancolia, questões sociais e você tem uma música como “Índios”, que é quase uma bachiana, meio eletrônica, meio eletro-acústica, que fala aquelas coisas… a gente tá ali. É incrível mesmo este disco. De repente é o que o Renato tinha previsto, né, de a gente se superar e fazer um disco que deixaria uma marca definitiva de quem somos. No caso, agora, de quem fomos… Ou de quem seremos, não sei. Ali era a prova que a gente conseguiu passar e superar esta etapa.

Bonfá: Eu devo ter visto este roteiro que o Renato fez. O que quero dizer é que isso pra mim não era muito relevante. A princípio eu sou aquariano: só faço o que eu quero! O cara pode falar o que for… claro que daquilo eu tiro o que eu gosto. Ele fazia um roteiro bacana. O que tinha de legal nisso é que ele também era um cara muito democrático. Ele apresentava um caminho, só que depois tinha muita água de baixo da ponte. O Dado não era um exímio guitarrista, nem eu um exímio baterista, então o resultado final é sempre o resultado final, mas todos ali tinham uma ideia clara do que fazer. Agora, eu não lembro deste roteiro, você até pode mostrar ele pra mim, mas eu não lembro o que estava escrito ali. Na verdade, a maioria das músicas da Legião Urbana começou comigo, com exceção das que Renato já tinha feito. Ele chegava e falava: “Bonfá, toca alguma coisa aí”. (risos). Eu olhava: “Puxa, cara, toca alguma coisa aí… peraí, né?!”. “Toca aquele bumbo assim ‘tungo, dango, dundo’ (risos). “Ah, tá. Já entendi!”… (risos). A gente não precisava verbalizar muito. Naquele momento, na estrada direto, a coisa vinha com facilidade. A única coisa é que, às vezes, vinham certas interferências, certos vícios e filtros por essas barreiras que estava falando, de a gente estar se adaptando a nova realidade pessoal. A gente tinha vinte e poucos anos, até menos, e vivendo aquela maluquice toda… a resposta do público para o que você está fazendo… você entender o que estava acontecendo… foi muito difícil, muito complicado.

Publicidade

Mayrton: No início era sempre um rascunho. Quando fui trabalhar com a Legião já tinha produzido Elis Regina e um monte de gente da MPB. Então, tinha uma prática e experiência grande em relação a trabalhar em estúdio, mas com a Legião tive que jogar tudo fora e desenvolver uma maneira própria de trabalhar. Porque eles, talvez, não soubessem exatamente o que queriam, mas sabiam o que não queriam. Muitas vezes eu vinha com uma sugestão, mas tive que desenvolver uma metodologia para conseguir traduzir exatamente o que eles sentiam, pensavam, a maneira que eles estavam querendo se expressar. Eles não tinham uma forma tradicional, como todos fazem, primeiro compõe a musica, depois arranjo, depois grava e depois mixa. Essas etapas aconteciam tudo junto. As músicas começavam num grande rascunho e a gente ia polindo. Eu brincava que a Legião era como se fosse a pintura de um quadro: você faz esboço, joga tinta, pinta por cima e quando olha de muito perto nota imperfeições, mas quando olha de longe vê as camadas. Comparo com quadros do Van Gogh, que você olha de perto e parece que é imperfeito e quando você olha de longe tem uma expressividade imensa. Não só na maneira de fazer, mas também pelo resultado final. Considero a Legião expressionista.

Caiu a ficha do disco que estavam fazendo?

Dado: Não. Porque na gravação você está fazendo uma música nova, algo que nunca ouviu, que surge ali naquele momento, tipo “Andrea Dória”, “Daniel…”, “Plantas Embaixo do Aquário”… e aí vem uma música como “Índios”. Você não sabe… aquilo tá batendo em você de um jeito incrível, mas é algo totalmente novo, sentimentos e emoções totalmente novos e eu não tenho a capacidade de chegar e dizer “Pô, a gente arrebentou”. A ideia é você realmente fazer a coisa do melhor jeito e forma possível, mas isso não quer dizer que você consegue prever a repercussão daquilo. Mas ao final, puxa, a gente tinha conseguido chegar onde a gente queria e isso já é meio caminho andado.

Publicidade

Bonfa: Hum, não tem como. Eu me realizava muito mais no palco, naquela troca de energia absurda… agora, claro que isso tudo tem preço muito grande, viver num ambiente muito único, com pontos de vistas completamente diferentes. Imagina que a gente vendeu 25 milhões de discos na carreira e quantas pessoas tem esse ponto de vista dessas músicas? Só eu, né… (risos). Ninguém mais trabalhou ostensivamente compondo, ensaiando, tocando. Ou seja, vendo essas músicas de cima, de baixo, de lado, de dentro pra fora. Vivendo isso… é totalmente diferente a relação do músico com sua criação. Quando você tem uma abrangência do nível da Legião não é tão simples, tem um preço bem complicado.

No estúdio

Bonfá: A gente chama de bateria vários instrumentos, na verdade. Tem caixa, tom, surdo, prato, bumbo pra equalizar, gravar ou tocar e precisa de vários microfones equalizados para simular um instrumento. Tem que ter equipe muito boa, técnico de som muito bom e neste período do Dois a gente não tinha um técnico de som muito bom. Era o Savalla, um cara chato pra caralho. Ele tocava para os Paralamas, que faziam um som pop e a gente era rock. Havia uma amizade, se não me engano ele já estava na EMI, caiu de paraquedas e complicou mais. Ele não era um cara muito sensível com os músicos porque ele tinha uma ideia diferente. Paralamas era algo muito mais animado e festa a gente era algo mais denso e sério.

Publicidade

Dado: Era sempre um pouco tenso porque lá dentro a gente não conseguia timbrar direito o instrumento, então dava a impressão de que tava sempre meio ruim… digo em relação a guitarra elétrica, né. Era outro momento. Era muito difícil conseguir um amplificador maneiro. Com o que tínhamos na mão conseguimos talhar e formar nossa personalidade sonora e atmosférica. A ideia de um disco duplo foi logo descartada porque o país vivia uma crise filha da puta, que era o Plano Cruzado, e as pessoas estavam escondendo o boi no pasto, não tinha papel para imprimir capas, não tinha dinheiro pra comprar disco. E o que aconteceu neste disco que a gente estendeu ao máximo, ele tem mais de 23 minutos de cada lado, o que é muito, prejudica, diminui o número de graves e tudo mais. A gente teve até que tirar uma versão incrível de “Juízo Final” do Nelson Cavaquinho e Élcio Soares. E quem sabe um dia vai sair.

Bonfá: Na verdade, aquele estúdio era meio nosso. Tinha os Paralamas, acho que Blitz, então a gente meio que dividia como se fosse a casa de uma turma muito grande. Cada um com seu horário. Acho que neste momento a gente ocupava o estúdio 1. Minha bateria ficava montada direto, porque dava muito trabalho. O técnico de som não tava muito acostumado com este tipo de som, a gravadora não tava, o país não tava, né? O que se tirava de uma bateria naquele momento era um som muito chinfrim e a gente brigava por um som mais pesado. A gravadora tinha medo disso, de assustar as famílias conservadoras, sei lá… Ao mesmo tempo queria um resultado de rock. Claro que a gente também não sabia, mas ouvíamos um som que a gente sabia que ia fazer uma revolução sonora. Em Brasília vimos isso acontecendo, inclusive no público. Porém, é como digo: microfonar uma bateria com uma pessoa que não sabe o que você está querendo dizer é uma coisa… complicada. Você toca um som que passa por um monte de fio, que vai lá pruma salinha a 20 metros de você, o cara faz aquele som voltar pra você por um fone de ouvido… Quer dizer, você toca um bumbo e ouve um bumbo… perdão pela palavra, de merda! Você vai lá dentro e… “Pô, que porra é essa? Onde está o botão? Quero mais bumbo, mais clareza, mais ataque… você conhece Sex Pistols, Ramones, Public Image?” Entendeu? Era um negócio trabalhoso, você tinha que mostrar o som pro cara… esse processo foi o que aconteceu no Dois. A gente brigava, eu brigava muito com produtor. Porque a parte da bateria é muito significativa para chegar ao som que você quer. Com guitarras e tudo mais você tem uma incrível possibilidade de variações e de sons, e pode fazer depois. E neste período não tinha pro tools, não tinha revolução digital. A bateria era gravada e acabou. O disco começava ali e eu tinha que lidar com isso. O segundo disco todo nasceu de algo que não existia. A gente criava a música em cima da bateria. Alguém criava um riffzinho, com a própria boca, mas não tinha estrutura da música. A maioria das músicas da Legião, neste momento, gravei sem letra, com ideia de melodia, uma vaga ideia de tudo. Claro que ninguém sabia onde a música ia dar, mas pra mim era muito complicado porque eu tinha uma certa limitação para fazer dinâmica. Só que os discos da Legião tem uma cara e é essa. E estou te dizendo porque: as baterias são retas, não tem viradas, não tem marcação, parecem experimentais justamente por causa disso, porque era quebra cabeça que ia sendo montado. Era uma maluquice completa.

Publicidade

Mayrton: Quando ouvi a fita do Renato pensei esse cara realmente é aquilo que ele tá mostrando. Este foi o meu critério. Porque você tem dois caminhos no mercado. O primeiro é de fora pra dentro: ver o que o mercado quer e fazer. O outro, que é o que gosto de trabalhar, é o caminho de dentro pra fora: você procurar artista de repertório que o mercado queira, mas que propicia ao artista o caminho que ele quer. Foi assim com Cássia Eller, na Polygram, com vários. Prefiro trabalhar desta forma, que demora mais tempo.

Na verdade, no estúdio tranquilo totalmente nunca era. Tinha bom relacionamento, mas tive que largar muita coisa que eu conhecia e era sempre uma aventura trabalhar com a Legião Urbana, era navegar por caminhos que não sabíamos muito bem onde iam dar. As etapas são todas misturadas, a música só ficava pronta quando era mixada. A gente tava sempre trabalhando em esboços que podiam ser o ponto final. Isso também trazia algum atrito. E o referencial pra conseguir dar ordem no caos era justamente buscar o que fosse uma expressão do que a Legião queria realmente dizer. Porque quando você consegue passar essa credibilidade, ao longo do tempo ela se transforma em identidade e aos poucos vira a identidade sonora da banda. A Legião é relativamente fácil de tocar, mas este disco é extremamente complexo, aquela estrutura tem diversas camadas de sons.

As músicas

Mayrton: No caso de “Índios” Renato tinha uma base, fez uma letra e a partir daí ia tentando cantar aquela letra e a melodia foi surgindo aos poucos. Pode ver que ela é muita falada. Neste caso, como eu já conhecia o jeito deles capturei logo as primeiras tentativas dele em criar uma melodia e lá pela sexta, sétima vez, quase desistindo já, propus reouvir as primeiras tomadas, que estavam mais espontâneas. Tem uma coisa interessante que, se você perceber, no final da música os instrumentos vão desaparecendo, se desintegrando. Porque? Porque faltou música para o tamanho da letra. E quando chega no final, os músicos acham que já terminou um para de tocar, outro faz brincadeira com o instrumento. Na época não tinha computador, nada disso, o que eu fiz? Quando ele terminou a letra falei para fazer um violão, acompanhando a base. Tanto que este violão está no mesmo canal da voz porque a gente não tinha canal. A gente gravava em 16 canais só. Aí acaba a voz e ele vem tocando o violão, embaixo os instrumentos vão desaparecendo, você vai perceber que a bateria faz uma virada toda fora do lugar e de repente ele faz um sinal com violão e parece um fim maravilhoso, parece que é tudo pensado, planejado! Muita gente falou ‘que incrível esse final que vai se desconstruindo’. Foi uma solução para poder aproveitar a base. Ficou legal, ficou maravilhoso, a gente fazia muito isso. Para aproveitar, a gente ia criando em cima do que ia acontecendo.

Publicidade

Tem músicas como “Acrilic on Canvas”, dificílima de cantar porque não tem onde respirar. Eu fui gravando e emendando as vozes. Eu gravava uma voz do Renato num canal e a outra parte da letra em outro canal. Ou seja, enquanto ele tava terminando de cantar em um canal, tava entrando no outro. Então, tem frases que vão se ligando, emendando e você não sabe onde ele respira. Quando vejo banda cover cantando essa canção e fico esperando onde o cara vai respirar.

Mayrton Bahia

Dado: Foi importante né, ele não fez nosso primeiro, porque estava ocupado com outros projetos, mas estava lá ajudando a gente. No Dois ele assumiu a produção e foi fabuloso.

Bonfá: Me deparei com um cara sensível, uma pessoa super bacana, que estava vendo o que tava acontecendo com a garotada, acho que ele entendeu a personalidade de cada um ali e falou: ‘Vamos fazer essa garotada botar pra fora o que eles tão a fim de fazer’. Eu não sei se ele entendia de punk rock, era mais velho que a gente. A gente queria fazer uma coisa mais elaborada, acho que evoluímos muito naquele momento, mas a gente ainda era moleque, né?! Não sei exatamente, como Mayrton resolveu essa questão, mas ele conseguiu fazer um disco sair. O Renato confiava muito nele e nós também. É justamente isso, o Mayrton viabilizava as coisas, ficava ali do lado da mesa, o técnico de som tinha suas limitações e o Mayrton conseguia dar uma dissolvida nisso. Porque é assim: o técnico de som fica na mesa achando que sabe de tudo. E aí, quando vê um bando de moleque fazendo barulho fala ‘não, não é isso, você não sabe tocar e tal…’ Mayrton chegava e dizia: “Deixa disso, você não tá entendendo. Se o Bonfá quer isso, faça isso. Se o músico quer isso, faça. Você tenta, pelo menos, sei que você tem limitações, mas você tenta, tá bem?”

Publicidade

Mayrton: Tinha acompanhado como diretor da EMI o primeiro disco. Na verdade, no primeiro eu fiz a direção de produção e tive que administrar as crises diversas que aconteceram. Em uma das passagens me disseram ‘vamos embora pra Brasília, não vamos mais gravar’. Chamei o Dado para conversar, uma conversa que começou a tarde e virou a noite. Falei sobre como era o mercado fonográfico e, a partir disso, assumi um compromisso com eles de que o disco teria a cara deles. Eles estavam sentindo que a gravadora queria uma coisa, eles queriam outra. Fizemos um pacto entre a gente, que deu tranquilidade para terminar. Preparei todo o ambiente para eles voltarem. Aí entrou Zé Emilio (José Emílio Rondeau) e fui dando suporte para ele, que não tinha ainda experiência com produção. A mixagem de “Ainda é Cedo”, eu que fiz. Todo um suporte técnico na sonoridade também. A partir desse encontro realmente resolvi assumir que o disco teria a cara deles e conseguimos viabilizar a Legião dentro da gravadora.

Relação com a gravadora

Mayrton: No Dois tinha tudo mais maduro, já tinha captado qual era a da banda. Eu era funcionário da Odeon naquele momento, então eu fazia a parte executiva, a parte de orçamento, planejamento e parte musical. Com a gravadora era o que era menos tranquilo. Na verdade, a gravadora tinha muita expectativa e quanto mais a Legião foi vendendo ficou mais difícil porque eles entravam no orçamento da empresa (que era multinacional) como um todo e a pressão era muito grande para cumprir prazos. Era muita expectativa em cima do Dois.

Dado: A gente era realmente uma grande promessa e a gente cumpriu a promessa no segundo disco. E depois, promessa cumprida, a gente mandava nesses caras. Se eles não cumprissem a gente ia lá e pichava as paredes e pronto. E os três iam! E foi tudo a partir desse disco que vendeu 500 mil.. sei lá, tenho um disco duplo de platina lá… no Natal, no Chacrinha, a gente foi receber e teve que botar o gorrinho de Papai Noel e tudo. E foi ótimo!

Bonfá: Estava todo mundo trabalhando muito junto. A gente entrou num universo muito grande, de uma gravadora com muita história, também na Inglaterra. Então, acho que cada um ali tinha seus objetivos. Tinha o Jorge Davidson nessa parada toda e tivemos vários conflitos. Ele queria uma coisa e a gente tinha essa de bater o pé… então, todo mundo teve que ceder um pouco.

Dado: Acho importante falar das pessoas todas, nós mesmos, da banda e todo mundo em volta, Fernanda (Villa-Lobos), Serginho Bittencourt, Savalla, Jorge Davidson. O pessoal da companhia realmente deixou a gente fazer o que queria, sem interferência. São pessoas que acreditaram na gente e hoje em dia você perceber isso é muito bom. Perceber que essas pessoas da indústria, que em geral se trata como crápulas, foram muito importantes no sentido de apostar suas fichas no que estávamos fazendo.

30 anos depois

Dado: O legado sempre foi e sempre será as canções. A gente tem feito shows e “Índios”, “Daniel”, as canções do Dois continuam movendo as pessoas de uma forma como foi há 30 anos. Enfim, acho que o grande legado são as músicas, o rock brasileiro estabelecido, as canções que entraram no inconsciente coletivo, na cultura brasileira de forma definitiva. E ponto. As canções ficaram pra sempre, por enquanto pelo menos, não sei. É o que vejo 30 anos depois: pessoas que se transformam ouvindo aquilo. É algo muito bacana isso, né?! É muito maluco, é realizar um sonho de quando você tem 16 anos e monta uma banda… e essa banda chegar a este ponto em que 30 anos depois, quando ela já não existe mais, Renato partiu … e continuar sendo muito simbólico, muito presente na vida das pessoas… Isso é bem maluco. Fico sempre muito orgulhoso de ter estado ali, na feitura desse repertório, dessas ideias, ter seguido adiante, ter chegado aonde chegamos é fabuloso. É diferente, sei lá… a vida é tão difícil…

Bonfá: Não ouço nada da Legião. Tá tudo nas veias, em alguma memória qualquer que não sei. Mas, quando sento na batera para tocar Legião, lembro tudo. Eu me dediquei tanto a isso, curtia tanto, construir aquilo tudo. Tá em outro plano, não somos só o plano físico. Tem algum lugar aí em que estão essas coisas. Público novo, netos cantando essas músicas. Eles nunca viram a banda, nunca viram Renato e querem Legião. A gente fala que acabou… A gente não é Legião, né, Renato não tá aí… então o que fica evidente nisso tudo é a força da música. E a força da música não tem data.

Mayrton: Orgulho muito grande. E isso é legal porque ensino produção fonográfica no Brasil há 18 anos e trago muito dessa experiência com a Legião para o curso. Essa coisa que falo da credibilidade que com o tempo se transforma em identidade. Não deixo de falar sobre o mercado, que é importante. Sou de uma época de gravadora que você tinha aquele artista popular do mercado e ele bancava o risco do artista novo. A diferença de hoje é que ninguém mais corre risco de nada. A diferença é que hoje a nossa crise é de identidade. Todo mundo joga pra plateia, ultrapassou o marketing estamos na era da farsa. Então, legião continua sendo um Norte para balizar, para dar critérios de quem é você, o que você acredita e não simplesmente um produto de marketing, é uma referência e pra mim isso é muito importante.

Renato podia ter as crises dele, mas sempre procurava ser honesto e sincero. E quando ele achava que tava errado, dizia errei. E ele era muito engraçado. Era uma pessoa simples, todos eles. Tinham senso crítico e, em relação a tudo que aconteceu, foi muito importante. O jeito deles foi imprescindível para chegar onde chegaram. Outra coisa importante de ser dita e que Renato sempre falou: a Legião era os três. O Renato sempre precisou do Dado e do Bonfá, principalmente, para ter seu referencial. Sem os três não seria Legião e duvido que Renato chegaria onde chegou sem o Dado e o Bonfá!

Siga o Noisey nas redes Facebook | Soundcloud | Twitter