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Música

Será que o funk pode dar a Childish Gambino o que ele precisa?

Em ‘Awaken, My Love!’ Donald Glover lida com a paternidade, mas a música é menos interessante do que as circunstâncias ao redor do disco.

O ano está sendo bom para Donald Glover. Seu programa de TV, Atlanta — que ele escreve e protagoniza — poderia ser um desastre, tendo em vista a tarefa que lhe foi incumbida ao retratar a cultura da cidade. Precisão incrível aliada a muito trabalho, amor e humor fez do programa um sucesso merecidíssimo, fazendo jus à sua decisão de deixar Community em 2013 para seguir seu próprio caminho, o que permitiu que os críticos vissem seu verdadeiro talento como escritor e criador. E é exatamente por isso que é um pouco frustrante ouvir Awaken, My Love!, seu mais novo disco sob o alter-ego musical Childish Gambino.

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Awaken, My Love! desde sua capa provocativa e viajandona até sua última faixa é um cosplay do Funkadelic, uma tentativa de adaptar Maggot Brain para a era das redes sociais. O pior: tem todas as características e armadilhas de um artista tentando fazer seu álbum sério; música feita para ganhar críticos numa época em que o pêndulo da black music retorna ao comentário sociopolítico de forma a refletir o que está acontecendo no mundo como um todo e aos negros em especial. Childish Gambino sempre teve uma reputação meio zoada por conta do lado comediante de Donald e sua má-fama como música para "special black snowflake" (flocos de neve pretos, numa horrível tradução livre) — rap para jovens negros que "são diferentes dos outros" — mas o som em si sempre teve bons momentos, perspicazes e originais. Seu último disco, Because the Internet, não foi incrível, mas tinha algo de intrigante — tratava de forma sinistra e niilista a era da internet, entre desesperançado e esperançoso. E tinha um monte de música boa. Awaken, My Love! utiliza, em contraste, o funk psicodélico de George Clinton e Bootsy Collins, criando uma visão muito mais fofa de nossa realidade, mas ousa muito menos em sua sonoridade. O esforço está ali e merece aplausos, mas falta som no sentido de que o disco não atordoa nem emociona como os discos de funk de outrora. É um lance meio banda cover que funciona para o clima social do momento, mas não tanto com base apenas em seus méritos musicais. O mais interessante do disco tem menos a ver com a sonoridade e mais com as circunstâncias ao seu redor.

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Em outubro, em meio à temporada de Atlanta, pipocaram notícias de que Donald Glover seria pai. Era um segredo bem escondido até que paparazzis flagraram ele e a namorada na rua, junto de um carrinho de bebê. Neste contexto, aliando letras e títulos de faixas do disco, podemos afirmar que Awaken, My Love serviu como a trilha da jornada de Glover rumo à paternidade. Podemos notar seu gosto e honra em ser pai nesse disco. Faixas como "Me and Your Mama" e "Baby Boy" são como equivalentes musicais do Ritual de Nascimento de Kunta Kinte; ele reconhece sua responsabilidade e alegria em criar um ser humano completo que irá vagar pelo mundo.

A música feita em torno de uma época de mudanças dramáticas na vida pessoal de um artista nos permite vislumbrar o momento vivido mentalmente durante este período. Uma comparação recente e fácil de ser feita seria com Yeezus, disco composto em meio ao noivado com a então grávida Kim Kardashian, o primeiro casamento e primeiro filho de Kanye. Um dos mais interessantes aspectos de Yeezus, além da música em si, era sua cabeça em meio a tudo aquilo. Fora as frustrações vividas com a indústria da moda, ele começava ali uma aterrorizante transição rumo à paternidade e ao casamento, e a música apresentada lida com este medo.

Mas onde Yeezus tinha cara de exorcismo, Awaken, My Love parece mais um despertar. Seu uso de instrumentação estilo Funkadelic e Sly Stone, o estilo de cantar de Bootsy e agudinhos a la Prince estão a serviço do amor, esperança e claro, temores de trazer uma nova vida ao mundo. " Keep all your dreams, keep standing tall / If you are strong you cannot fall / There is a voice inside us all / So smile when you can": este trecho surge ao final de "Stand Tall" e guia boa parte da atitude do disco. Além do que, este era um conselho do próprio pai de Glover. Um homem que certa vez disse que "preferia ter AIDS a um bebê" está aqui, disposto a lidar com este novo desafio, dando conselhos como "fica esperto, tem nego de olho" na faixa "Redbone".

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Faz sentido que Glover acabe aqui. Parliament e Funkadelic foram bandas que, além de fazer música incrível, criaram uma utopia. Antes do termo Afrofuturismo ser oficialmente cunhado, P-Funk era a música que continha elementos de ficção científica, criando um mundo intergaláctico em que negros eram os heróis e seus problemas eram as principais preocupações. Num mundo em que uma criança negra não está a salvo, a sonoridade afrofuturista do P-Funk fala de outro mundo em que esta mesma criança é uma necessidade e uma estrela. É fácil ver como Glover pôde se prender à psicodelia radical de uma faixa como "Hit It and Quit It" e encontrar conforto e orgulho em trazer mais um negro ao mundo. Dito isso, porém, apesar de suas intenções, não aparenta haver qualidade o suficiente nas músicas para passarem de covers.

As melhores faixas ("Zombies," "Riot," "Redbone," "Terrified") são excelentes apesar disso, mas as piores ("Have Some Love", "California") deixam claro que você está ouvindo uma versão de segunda categoria da parada. A música prospera por ser um disco extremamente negro para um momento especialmente turbulento para os negros nos Estados Unidos — com tiroteios, protestos e um presidente que parece abraçar a exclusão e o ódio. Mas é um disco fraco para ficar em pé nas próprias pernas. Letras como " Every boy and girl, all around the world / knows my niggas' words / but if he's scared of me, how can we be free?" em faixas como "Boogieman" são uma brisa de ar fresco e provocantes, mas o construto ao seu redor não encanta. O lance com George Clinton, Prince ou Bootsy é que eles eram tão absurdamente originais, geniais e intrincados em seus estilos que qualquer imitação mais parece paródia que homenagem.

Awaken, My Love é um exemplo excelente de ideias grandes demais para as músicas que as contém. A evolução de Donald Glover não foi acompanhada por Childish Gambino ainda, mas o esforço de ser uma voz para sua família e esta era está, admiravelmente, presente. Em entrevista radiofônica, George Clinton respondeu à pergunta "O que é funk?" da seguinte forma: "Tudo que você precisa que seja e quando você precisar". A música certamente ressoará em algumas pessoas por mais que pareça um tiro no escuro, mas o certo mesmo é que Awaken, My Love confirma o ponto de George Clinton — e junto dele — o de Donald Glover, pai e artista, que nos mostra quem precisa ser.

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Tradução: Thiago "Índio" Silva