O Personal Choice fez o primeiro disco emo do Brasil
Foto principal: reprodução da capa do 'Choices'.

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Música

O Personal Choice fez o primeiro disco emo do Brasil

‘Choices’, o álbum perdido do seminal grupo de hardcore gravado em 96, está finalmente ao nosso dispor. Nenê Altro e banda falam do clima da cena à época e sobre as raízes old school do emocore.

Muitos talvez não se deem conta disso, mas o que se entendia como "emo", nos anos 1990, era bem diferente daquilo que viria a se transformar numa tendência mainstream, com o sucesso de bandas como The Used e My Chemical Romance. Antes de virar sinônimo de um mercado construído em torno da autopiedade juvenil e do sentimentalismo, o termo "emotional hardcore" já era usado nos fanzines gringos pela crítica do começo daquela década para falar de nomes póstumos ao Embrace e o Rites of Spring. Egressos da cena punk de Washington DC, tais grupos buscaram ampliar as fronteiras do hardcore em meados dos anos 80.

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Lá fora, essa geração de bandas encontrou utilidade para os elementos do metal que haviam sido desprezados pelos grupos crossover, moshcore e thrashcore. Continuava sendo uma espécie de acasalamento entre o hardcore old school e o metal. Só que ao invés de seguir uma linha ogra, os expoentes do emo em sua fase evolutiva preferiram absorver as referências melódicas e climáticas do metal, reduzindo o andamento das músicas para torná-las mais densas, dramáticas, e, assim, combinar com a proposta de tratar de assuntos menos panfletários e mais existencialistas nas letras. O subgênero ganhou força com o investimento de selos como Doghouse, Initial, Equal Vision, Good Life, Revelation e Jade Tree em nomes entre os quais alguns destaques são o Endpoint, Falling Forward, Split Lip, Texas Is The Reason, Sense Field e Blindfold.

A nomenclatura sempre foi motivo de controvérsia em todo o mundo. Há nela um aspecto de fragilidade que nunca agradou os durões do hardcore. Por outro lado, há também a ideia de que "o pessoal é político", e de que isso deve ser abordado pelo punk. No underground brasileiro, para falar a verdade, emo, no começo, era muito mais uma gíria pra xingar alguém do que qualquer outra coisa – ao mesmo tempo em que começavam a surgir os "zines pessoais" ou "políticos e pessoais". Depois virou uma subcultura urbana, com visual e tudo, mas levou uma carinha.

Até chegar nisso, tivemos ainda o Dance of Days e o Landscape (banda do Tião, batera do Personal Choice), nos anos 90, dando continuidade a algo que se iniciara com o Personal Choice em sua fase derradeira. Mais tarde, a vertente só foi ser retomada no país em 2000, com o Dear Life, do Hateen, que passou da fase melódica registrada no Hydrophobia (1996) para um tipo de emo já mais indie/guitar, na onda de nomes tipo Sunny Day Real Estate. A primeira galera a se autoproclamar emo sem sentir vergonha em São Paulo só foi aparecer após o sucesso dessa obra do Hateen, impulsionando a sazonal dinastia da loja Estrondo, na Galeria do Rock, e o surgimento do NX Zero e quejandos.

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Durante um bom período a única referência ao emo no Brasil eram as músicas da última fase do Personal Choice, gravadas com a intenção de dar corpo ao álbum Choices. Como a banda acabou depois de concluída a gravação, no segundo semestre de 96, o disco nunca saiu. Mas o repertório ficou amplamente conhecido entre o pessoal do underground, não só porque a cena era pequena na época, mas pelo fato de as composições terem sido pulverizadas em diferentes coletâneas, a exemplo da We May Fight a Battle that Can't Be Won, lançada na França.

Choices, o álbum perdido do Personal Choice, está finalmente disponível nos serviços de streaming. A razão dele ter sido disponibilizado, segundo o Nenê Altro, não é nada muito especial. Quando ele planejou lançar a discografia da banda pela Teenager In A Box, a ideia era que o Choices saísse num disco à parte da coletânea Days of Trust (1996). Gravado pelo Jeff Molina, do Rip Monsters e Daniel Belleza e Os Corações em Fúria, não saiu porque o ressentimento do Nenê com a cena straight edge ainda era muito grande. "Daí eu lancei a compilação e teve muita resistência", lamenta. "Hoje é um CD procuradíssimo. Fiquei de bode e foi por isso que nunca chegou a sair. Saiu agora por conta de uma coisa muito espontânea: eu achei o arquivo. Foi só por isso."

Olhando (e ouvindo) em retrospecto, dá pra dizer que esta não foi só a primeira banda brasileira a advogar em nome do veganismo. O conjunto de hardcore paulistano foi, também, o primeiro a investir num tipo de som que em meados dos anos 90 era identificado com o emotional hardcore. Estilo que o Nenê Altro, então vocalista do Personal, viria a desenvolver com mais afinco logo após o fim do grupo, quando montou o Dance of Days e lançou o clássico 6 First Hits (1997).

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O impacto que os caras do Personal Choice tiveram no contato com a cena hardcore da Argentina, sua primeira turnê internacional, em setembro de 95, mudou completamente as ambições de seus integrantes. Nenê, Luciano (baixo), Tião (bateria), André "Ufo" (guitarra) e Tarcísio (guitarra – ele abandonou o baixo para substituir o Kiko Dinucci) ficaram impressionados com a evolução estética da cena portenha e de outras localidades. Voltaram decididos a gravar um álbum mais inovador e atual, deixando para trás o punk básico, acelerado e porta-bandeiras da Juventude Libertária. "Havíamos gravado uma demo old school split com o Self Conviction, que foi a que distribuímos na Argentina, e essas músicas formariam nosso primeiro álbum, sucedendo o EP Raise Your Head (94). Não foi o que rolou. Encostamos todas elas e começamos a criar músicas novas, assumindo o rótulo de 'emotional hardcore' já no final daquele ano", afirma Nenê.

"Acho que a banda entrou numa fase mais legal praquele momento, enquanto todo mundo estava seguindo uma parada mais metal, youth crew. Não era uma coisa nem outra. E nós estávamos indo pra outro caminho, que também não era muito definido", comenta Luciano Valério, que hoje está à frente da Desmonta Discos. Tião complementa: "Antes até mesmo de sair o Raise Your Head começamos a ter muita influência das bandas da cena de Nova York, principalmente Youth of Today. Acredito ter sido a pior fase, porque só queríamos fazer a mesma coisa que os caras faziam."

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O Tião acredita que o Personal não tinha originalidade musical nessa fase. "E não fomos originais na temática também", acrescenta. "Porque ficávamos só falando as mesmas coisas, reafirmando uma cena… que na verdade é uma merda, né. Na época tinha sentido, estávamos entre os 16 e 20 anos… Já no último ano de atividade começamos a nos aproximar muito do pessoal do Paura, Againe, outras bandas que não faziam parte da cena straight edge. Tirando o No Violence, com quem já tocávamos."

André concorda, porém frisa que a turnê argentina foi um choque não só artístico, mas também social. "Víamos que a maioria dos caras não precisava trabalhar, então podiam se dedicar aos instrumentos de um jeito que aqui quase ninguém podia. Vimos como as bandas dos caras dialogavam mais livremente com o metal e com o pop." "A gente ficou impressionado, os argentinos tinham até produção de CD, que pra nós era uma coisa fora do comum", diz Nenê. "Era algo tipo ver um CD do Seven Seconds na vitrine da Galeria do Rock e achar que os caras tinham virado mainstream."

Personal Choice em Curitiba, 1996. Foto: Arquivo pessoal do repórter.

"Com relação ao som", continua Nenê, "era tipo o metal emo [risos]. Aquela coisa pesada, atmosférica. O Chokehold fazia isso e era um lance político, né. A gente pirava em tudo aquilo, naquela intensidade. O Blindfold, que escutávamos muito, tinha uma coisa mais pesada no segundo disco, e todas aquelas gravadoras da Bélgica só lançavam banda de metal. A gente começou a entender esse tipo de coisa." Vale dizer que essa inclinação ao emo era algo mais do Nenê, do Lu e do Tião. Todos queriam fazer algo diferente, mas não necessariamente assumir uma identidade engessada.

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André relata que havia um pouco mais de empolgação da parte do Luciano nessa direção. "Ele gostava de algumas bandas mais melódicas antes", afirma. "Acho que teve alguma resistência por parte do Tarcísio, se não me engano. Por fim, chegamos a um certo acordo, a partir de algumas influências: Shelter, Endpoint, Split Lip, Quicksand, Sense Field e Converge, que serviram para dar o tom, na ocasião." "Eu fui ouvir esses dias de novo e percebi um som lá no meio que tem uma base onde dá pra notar a influência clara de um disco do Shelter, Attaining The Supreme, umas guitarrinhas bem melódicas", revela Tarcísio, confirmando a guinada para outras vertentes do punk.

"A maioria das bandas que os outros caras citam eu não ouvia. Eu gostava, no máximo, de um Embrace. E dos melódicos clássicos, tipo Bad Religion", contrapõe o guitarrista. "O que eu mais curtia eram umas barulheiras. E o André curtia uns sons bem diferentes, de Fugazi pra lá. Sons mais alternativos, Sonic Youth, umas coisas assim. Tem várias guitarrinhas ali que eu reconheço também essa influência dele. A banda não tinha uma definição muito clara. Nós estávamos escutando muita coisa diferente e aprendendo a tocar melhor."

"'Emo' era uma coisa meio babaca", dispara André sobre o assunto. "Tínhamos notícia de Washington, por exemplo, de uma tentativa artificial da mídia de rotular assim bandas como One Last Wish, Rites of Spring ou Embrace. O que não fazia o menor sentido, uma vez que não havia um 'movimento', uma tendência ou estética específica. Ou seja, era uma coisa sem relevância para o Personal Choice, não tinha nada a ver com o que veio a ser, me parece, uma estética assumida por algumas bandas." E emenda: "Acho que o Nenê até entrou mais nisso depois, com o Dance of Days, mas aí o emo já significava outra coisa."

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