Grunge Jesus: Uma eulogia a Chris Cornell

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Música

Grunge Jesus: Uma eulogia a Chris Cornell

O vocalista do Soundgarden foi um ícone do rock, detentor de uma das vozes mais incríveis que já ouvimos. Sua memória segue viva em meio aos fãs de grunge.

Texto originalmente publicado Noisey US.

O grunge é um gênero com um nome perfeito. Resumindo, o termo conjura em imediatamente uma constelação de imundície sem qualquer traço de luz. Guitarras lodosas, uivos primais e blusas de flanela de brechó, cimentando o monopólio dos roqueiros tristes de Seattle sobre as aspirações adolescentes de quase toda uma geração — o que acabou gerando centenas de milhares de tatuagens terríveis e uma real ameaça de falência para barbeiros e salões de beleza por todo o mundo.

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Todo e qualquer gênero musical é, em parte, ficção. Mas alguns parecem mais verdadeiros que outros. O Soundgarden apresentava uma espécie de grunge platônico — fabuloso, digno de bater cabeça, uma esponja para os surtos violentos de frustração adolescente. Em 1991, seu vocalista Chris Cornell, à época com 27 anos, afirmou não ter nenhum dia em que não sentisse raiva. Cornell faleceu na última quinta (18), aos 52 anos de idade, com poucas folgas dessa cólera ao longo destas últimas décadas.

O mito narcisista de Rimbaud de um transtorno compulsivo já foi invalidado demais para parecer remotamente plausível, mas por vezes é necessário levar em consideração uma força particularmente tenebrosa como Chris Cornell, encontrado com uma corda no pescoço num quarto de hotel em Detroit. A interrupção de uma carreira brilhante — um fim desolador que contextualizava novamente a fonte das profundezas subterrâneas e alturas sobrenaturais que sua voz alcançava.

Esqueça hinos sepulcrais como "The Day I Tried to Live", "Like Suicide", "Fell on Black Days" ou "Pretty Noose". Como alternativa, você pode ouvir uma balada folk subestimada como "Seasons", da trilha sonora de Vida de Solteiro, dirigido por Cameron Crowe, para sacar a sensibilidade miserável que se escondia por trás da postura de deus do sexo, seguida de imensa solidão e demônios ocultos.

Guru estava certo: o lance é a voz. Cornell era capaz de alternar momentos angelicais e demoníacos, capazes de fazer mercúrio congelar ou ferver, dependendo de sua vontade. Ele soltava oitavas dignas de quebrar o pescoço e que poderiam ir de um falsete de louco a um cover infernal de "Smokestack Lightning", de Howlin' Wolf. Robert Plant e AC/DC eram as comparações óbvias, mas Cornell não deixava espaço para misticismo barato ou metáforas óbvias. Havia dor, opacidade e agonia em estado bruto. Era grunge e nada glam.

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Crescer nos anos 90 com a onipresença de Cornell na MTV significava herdar automaticamente a noção de que aquilo era o que um rockstar deveria ser. O que era o grunge senão rock clássico reconstruído com a crueza do punk e a força do speed metal? O que é o grunge sem Cornell? O Soundgarden foi a segunda banda a lançar um disco pela Sub Pop. Kurt Cobain chegou a afirmar que eles foram o motivo pelo qual ele topou trabalhar com a icônica gravadora de Seattle. Até Axl Rose se referia a eles como sua banda nova favorita e os colocou na turnê "Use Your Illusion" do Guns'n'Roses.

Alguém chegou a parecer tão cool? Naqueles primeiros clipes, Cornell parecia Clark Gable interpretando um Jesus grunge — ou quem sabe, o Capitão Jack Sparrow que das fantasias de vida real de Johnny Depp. Em Caindo na Real, Ethan Hawke copiou seu estilo. Jordan Catalano pode muito bem ter tocado covers de Violent Femmes e Ramones, mas lá no fundo acho que ele queria mesmo era ser do Soundgarden.

Cornell nunca encontrou uma camisa que não pudesse rasgar ou pelo menos cortar as mangas — sempre se retorcendo em agonia, destruindo a guitarra de joelhos, com altos olhares do tipo "vou roubar tua namorada". Cornell com certeza influenciou mais péssimas escolhas de corte de barba do que Abraham Lincoln. Era um daqueles caras tão profundamente estilosos que ele poderia usar uma boina e você pararia pra pensar se deveria investir em um figurino francês. E citando Lucille Bluth: "Ah, aquele cabelo". O cara tinha uma peruca tão transcendental que se comparava a nomes como Bryan Ferry, Keith Richards, Jim Morrison, Jimi Hendrix e Plant.

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Com o tempo, o grunge se tornou celeiro fértil de paródias. Seu auge na forma do "The Grungies" do The Ben Stiller Show, que tirava sarro tanto dos Monkees quanto da cena contemporânea de Seattle. Ben Stiller interpretava o frontman da banda, igualzinho a Cornell. Apesar de que este último sempre foi mais consciente e inteligente do que as pessoas acreditavam. Sua "Jesus Christ Pose" acabou esculhambando com a absurda autodeificação de todos os Perry Ferrells do mundo, ainda que sutil o bastante para render ao Soundgarden um espacinho no Lollapalooza de 92; já "Big Dumb Sex" descia o cacete no rock tipicamente macho.

Sempre direto, Cornell disse à Spin certa vez que ""Stone Temple Pilots, Bush e Silverchair [pegaram] os elementos mais simples do Soundgarden, Nirvana e Pearl Jam, fazendo tudo virar uma coisa só". Ele comentou ainda que "o Alice in Chains era um monte de moleques que soavam como um Ratt que de repente sacou o que estava acontecendo e incorporou isso. Eles eram inspirados de verdade [pelo grunge], o que é legal, mas não era a mesma coisa". Cornell era um cara sincero.

Talvez haja algo de único no fato de que ele seja o único nativo de Seattle no panteão grunge. Cobain era de Aberdeen, Vedder de San Diego. Layne Staley veio dos subúrbios e Scott Weiland parecia ter passado tempo demais no mercado de peixes da Pike Street.

Enquanto isso, Cornell crescia como o filho caçula de dois pais alcoólatras (uma contadora e um farmacêutico) em uma cidade deprimente tomada pela chuva que nada se parece com vórtice de gentrificação que ela se tornou hoje em dia. Sua obsessão musical começou quando descobriu uma pilha de discos dos Beatles no porão de um vizinho. A quadra em que morava era de classe média baixa, uma vizinhança onde todo mundo vendia ou usava drogas aos 12 anos de idade. Uma viagem errada de PCP aos 14 anos lhe fez largar as drogas, desenvolver agorafobia e perder todos os seus amigos naquela época de desenvolvimento crucial.

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"Até então a vida era bem boa", disse Cornell certa vez. "O mundo era grande e eu podia fazer o que queria. De repente, senti como se não pudesse fazer mais nada, mas em meio à isolação, minha imaginação tinha como trabalhar bem."

Naqueles primeiros clipes, Cornell parecia Clark Gable interpretando um Jesus grunge – ou quem sabe o Capitão Jack Sparrow das fantasias da vida real de Johnny Depp

Durante breve período em uma escola alternativa, Cornell logo largou o ensino médio, aprendeu a tocar bateria e começou uma série de trabalhos intermináveis em cozinhas pela cidade. O ponto alto foi ter sido sous chef no Ray's Kitchen. Cornell esperava ficar o bom bastante na bateria e backing vocals para ser convidado para alguma grande banda. Nunca rolou. Então, aos 21 anos, Cornell se ligou que, se fosse para tocar o tipo de música que gostava, ele teria que criá-la.

Com o nome vindo de uma instalação de arte sonora às margens do Lago Washington, o Soundgarden formou-se oficialmente em 1984, uma conexão inicial que se deu pelo gosto dos integrantes por bandas como The Minutemen, Meat Puppets, Butthole Surfers, Wire e Joy Division. Eles gostavam de Black Sabbath, mas certa vez o guitarrista Kim Thayil chegou a dizer que a missão do Soundgarden era "fazer músicas do Black Sabbath sem as partes escrotas".

Além da voz incomparável de Cornell, talvez a maior inovação da banda tenha sido descobrir a ligação entre Beatles, Sabbath, heavy metal e punk rock oitentista experimental (ou pelo menos fizeram isso um pouquinho diferente do Nirvana). Afinal, o Soundgarden foi uma das primeiras bandas a aparecer em programas tão diferentes quanto Headbangers Ball e 120 Minutes.

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Os primeiros discos do Soundgarden tem seus momentos de genialidade, mas a reputação da banda e de Cornell acaba se prendendo à luz negra que brilhou entre 1991 e 1994. As obras-primas Badmotorfinger e Superunknown. É preciso dar o crédito devido a bandas como Mudhoney, Green River, The Melvins, The U-Men, and Screaming Trees. Nirvana e Pearl Jam também. Mas estes álbuns do Soundgarden representam fielmente a sonoridade que nos vem à cabeça quando se pensa na era grunge.

Assista ao clipe de "Rusty Cage", que depois ganhou uma versão brilhante de Johnny Cash. Ele começa com uma floresta em negativo, com árvores sem folhas e um cara segurando um machado, correndo em direção à câmera. Rola um riff brutal de guitarra. Vemos então uma cabana abandonada no meio do nada. Cabelo comprido aqui e ali e guitarras fritando sem limites. Ou então preste atenção em "Outshined", com Cornell destruindo sua guitarra descamisado encostado em uma grade. A faixa acabou entrando na trilha de Amor à Queima-Roupa, e provavelmente em algum comercial da Doc Martens na sua cabeça.

Aos 12 anos de idade, automaticamente presumi que todas as músicas de Superunknown falavam de heroína. De acordo com Cornell, não era bem por aí. Sua relação com as drogas não começou de verdade até seus quase 30 anos. O álcool levou aos remédios controlados e então todo o resto. A depressão era constante, mas ele prontamente admitiu que a obra-prima da banda era um disco de/para drogados, possivelmente o único clássico do stoner rock criado pela geração grunge.

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Talvez não soe como novidade pra ninguém, mas "Black Hole Sun", seu maior sucesso, segue como o melhor momento da banda. Se as comparações com Led Zeppelin valiam de alguma coisa, foi ali que o Soundgarden forjou sua própria sonoridade. Se você viu o clipe em 94, provavelmente ele ficou tatuado no seu cérebro e permanecerá assim até a sua morte. Era Beatles com uma camada grotesca de sujeira, um grunge todo cagado com frases de efeito de Cornell como " times are gone for honest men". Há imagens de colinas lunares, demônios cortando peixes que se debatem com cutelos, céus cadentes antecipando uma desgraça de proporções babilônicas, pragas bíblicas envolvendo morcegos e garotas de biquíni com línguas de lagarto. Medo e Delírio na Cidade Esmeralda.

Depois disso, tudo começou a se dissipar. A banda terminou em 1997. Cornell lançou o subestimado Euphoria Morning em 1999 antes de formar o Audioslave com integrantes do Rage Against the Machine. Vi um show deles e não me arrependo. Ninguém deveria ser capaz de tocar sons do Soundgarden e do Rage no mesmo show, mas Cornell era esse tipo de cara, único no mundo.

Poderíamos passar o dia falando sobre as duas últimas décadas de sua carreira, que certamente merecem bem mais do que discutimos aqui, mas considere este o jeitinho que dei de passar batido por aquele disco com o Timbaland. Tudo o que você precisa saber está no cover de "Nothing Compares 2 You" que Cornell fez de Prince, a última de suas canções a figurar nas paradas da Billboard antes da morte. Um lembrete da beleza, força e versatilidade de sua voz — um instrumento que merece um lugar no panteão ao lado de seu amigo Jeff Buckley. Um lembrete de que Chris Cornell deixou este mundo ainda em posse deste raro dom.

Há muitos anos, perguntaram a Cornell sobre os mortos de Seattle, as desgraças que levaram o grunge pra cova. Como sempre, ele se negou a responder com clichês ou existencialismo barato. Em vez disso, deu uma declaração simples e profunda que oferece algum consolo para qualquer um que tente entender o acontecido e o que levar dele. Prova do que ele fazia de melhor: extrair significado do insignificante.

"Não é algo que se supera. Não acredito que haja um processo de cura. De certa forma você pode parar e pensar que é a vontade de Deus. Sempre achei essa frase, que ouvi milhões de vezes, uma merda. É tudo tragédia", disse. "Levo isso comigo o tempo todo. Tudo que posso fazer, se é que posso fazer algo, em respeito aos meus amigos que não estão mais aqui, é me esforçar para ter uma vida boa e aproveitar o fato de que ainda estou aqui, aproveitar as oportunidades que eles deveriam ter tido." Siga Jeff Weiss no Twitter.

Tradução: Thiago "Índio" Silva