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Música

O Biel não é o único: outros casos de assédios a jornalistas por entrevistados babacas

​Eu também fui assediada pelo Biel durante uma entrevista. E essa não foi a única situação e eu não sou a única. Conversei com várias colegas sobre como é especialmente difícil ser mulher e jornalista.

Foto por: Felipe Larozza/VICE

Ser jornalista e mulher pode ser, muitas vezes, uma bosta. Além de ter que lidar com assédio “comum” dos colegas de trabalho, o que acontece em qualquer profissão, você ainda tem o bônus de correr o risco de ser xavecada pelos seus entrevistados homens. E, sério, não consigo colocar em palavras o sentimento de impotência que eu senti das duas vezes em que isso rolou com duas fontes minhas.

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Uma delas era o Biel. Sim. O mesmo que, na última sexta-feira (3), falou pra uma repórter do IG, cuja identidade está protegida por determinação policial, que ela era “gostosinha” e que, se transasse com ela, a “quebraria no meio”. A jornalista entrou com processo contra ele e a hashtag #RIPBiel ficou nos trending topics do Twitter Brasil quase o final de semana inteiro. E, nesta terça-feira (7), um jornalista do Portal da Música relatou que o cantor teria feitos comentários do tipo “não quer fazer (a entrevista) no meu colo?” e “você gosta de churros? Eu tenho um aqui” para uma colega dele que estava na mesma bateria de entrevistas que a menina do IG. O relato foi publicado na íntegra no Portal IG. Um outro repórter de um portal jovem, que não quis se identificar, também estava no local e disse que “dava pra ver que ele fazia questão de construir essa imagem de machão babaca com as meninas”. "Também ouvi ele falar pra um cara que se chama Gabriel o seguinte: 'Seu nome é Gabriel, então você deve ser pegador", disse.

Daí para “tentar” (bem entre aspas) se redimir do primeira denúncia de assédio, o cantor foi lá e postou um textão no Instagram neste fim de semana, dizendo que tudo não passava de uma brincadeira. Acontece que nem a menina do IG nem a menina do Portal da Música estavam ali brincando. As duas estavam ali trabalhando. Assim como elas, eu também estava trabalhando, em agosto de 2015, quando entrevistei o mesmo Biel. Era um dos meus primeiros textos pro Noisey, logo que comecei a trabalhar aqui. Liguei pra ele por telefone e tentei ser super descontraída, pra tudo rolar o mais de boas possível. Mas talvez, assim como a menina do IG, eu tenha sido simpática demais, a ponto de o cantor achar que seria ok dizer que ele “me amava” quando perguntei se ele gostaria de falar mais alguma coisa, antes de eu terminar a entrevista.

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A única reação que eu tive foi dar aquela risadinha sem-graça e pensar “nossa, que desnecessário”. Infelizmente, não guardei a gravação, nem reclamei de nada na época. Só relatei o trecho da “brincadeirinha” do Biel no meu texto [no final do pingue-pongue]. Não falei pra ninguém nem tomei nenhuma providência a respeito porque “essas coisas acontecem” e estou “acostumada” a ser xavecada, seja na rua, no bar ou no trabalho, mas fiquei pensando: na moral, se eu fosse um cara, qual a chance de ele falar isso pra mim?

Uns seis meses depois, no carnaval deste ano, aconteceu de novo. Mais uma cantada, só que agora de uma outra fonte. O que rolou desta vez foi que entrevistei um famoso humorista de televisão (por telefone, de novo) e ele me pediu pra eu mandar o link da matéria quando saísse. Eu mandei, por Whatsapp. Ele viu a minha foto do perfil e me respondeu com um: “Desculpa qualquer coisa, mas você é muito bonita, viu?”. Fiquei puta pra caralho, mas mais uma vez fingi que nada tinha acontecido — porque, né, ninguém ia me levar a sério se eu reclamasse que estava sendo chamada de “bonita”.

O meu caso com o Biel e com este outro entrevistado foram bem mais leve do que o da menina do IG, com certeza. Mas acontece que nós duas nem fomos as primeiras nem seremos as últimas jornalistas a serem assediadas enquanto estavam entrevistando algum homem. “É muito triste não poder desempenhar suas funções com a qualidade e eficiência que poderia porque a sociedade te vê antes como mulher, que culturalmente é compreendida como menor, submissa e voltada à satisfação do prazer masculino, e não como uma profissional”, me disse a jornalista Susana Berbert.

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Quando trabalhava numa revista de agronegócios, Susana estava fazendo uma pauta sobre produtos orgânicos e agricultura sustentável e, ao perguntar se poderia fazer entrevista com um fazendeiro, ele respondeu que só toparia se ela aceitasse sair pra tomar uma cerveja com ele. “Se eu fosse um homem, isso jamais teria acontecido. Eu teria entrevistado, feito meu trabalho e pronto. Só que esse homem não me viu como jornalista, me viu como um objeto.”

Juliana* disse que, quando ela era estagiária num portal, entrevistou dois médicos venezuelanos para fazer uma matéria sobre o programa Mais Médicos. “Eles começaram a fazer comentários de cunho sexual sobre mim em espanhol na minha presença, pra eu não entender”, disse. “No fim da entrevista, um deles me apertou a mão, deu um beijo bem nojento no meu rosto, virou pro outro e falou algo tipo ‘Um beijo na linda periodista (jornalista)’”. Quando chegou na redação, ela tinha recebido um email de um dos médicos, a elogiando pela beleza. “Além disso ser errado por razões óbvias, eu tinha tipo 19 anos e os caras 70, sabe?”.

Apesar de estar morrendo de medo, por ser nova na empresa e tal, ela resolveu contar pro seu chefe do ocorrido. “Tava morrendo de vergonha, mas a reação dele foi surpreendentemente incrível”, contou. “Ele derrubou a pauta e ainda me disse que nenhum entrevistado nunca pode me desrespeitar, porque a minha integridade física e moral e minha dignidade estão acima de tudo”.

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O assédio por parte de fontes é tão corriqueiro que, às vezes, os próprios editores acabam alertando as repórteres de que algo pode acontecer. Rolou comigo. Um ex-editor meu me disse pra eu tomar cuidado com dono de casa de show porque ele tinha “fama” de xavecar todas as meninas. Pelo menos, saí ilesa dessa matéria. Mas não foi o que aconteceu com Marcela*. Quando trabalhava numa revista de alta circulação, ela foi incumbida de entrevistar um famoso escritor e as chefes delas a avisaram, meio em tom de brincadeira, que ele “pegava todo mundo”. “Já fui tensa pra casa dele. E era um dia desses, em São Paulo, no qual faz frio e calor ao mesmo tempo. Tinha saído sol e eu tava de meia-calça. A primeira coisa que ele me perguntou quando me viu foi se eu não queria tirar a meia”, disse a jornalista. “Pra piorar, na hora de eu me despedir, ele passou a mão na minha cintura e ficou dizendo que ‘tinha sido ótimo me conhecer’, esses papinhos. Fiquei super constrangida e sem saber o que fazer”.

Assim como rolou comigo, com a Marcela e com a repórter do IG, Marina*, uma amiga minha, também recebeu uma “cantada” de um cara famoso. Quando trabalhava na área de comunicação de um órgão público, a jornalista entrevistou por telefone um cantor da Jovem Guarda. Ao final da ligação, ele perguntou se ela tinha namorado e a idade dela, porque, pela voz, ela parecia “novinha”. “Só por que o cara é famoso, parece que ele acha que tem mais liberdade ainda de dar em cima, como se ele tivesse uma proteção maior, não sei”, disse. “O pior é que eu não tenho nenhuma prova de o que aconteceu porque resolvi só ignorar”.

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E esse lance de ser assediada por uma fonte pode acontecer tanto se você trabalha num veículo de comunicação, quanto se você é só uma estudante. A assessora da Inker Letícia Justino, ex-aluna da Universidade Metodista (SP), me contou que, durante um trabalho do curso sobre crise hídrica, foi entrevistar um professor da UFABC junto com uma amiga. “Desde que entramos na sala, percebemos um tom diferente dele nas respostas. Além de olhar fixamente a menina que estava comigo, ele a assediou de forma direta, ao dar um exemplo durante a conversa. Falou algo do tipo: ‘bonita que nem você’”, falou Letícia. “Me lembro também de ele usar a palavra ‘gostosa’ em uma das questões, dando exatamente a entonação pejorativa de ‘gostosa’. Foi horrível e ainda acabamos usando no nosso projeto porque ele era um especialista no assunto.”

É sempre a mesma coisa: ou é entrevistado que acha que tem liberdade de te chamar pra sair, ou de te perguntar se você tem namorado, ou de te constranger com um elogio desnecessário. O problema é: por que eles acham que tem essa liberdade? Foi porque nós estávamos sendo “simpáticas”, daí eles já pressupuseram que a gente tava “dando mole”? Bem, praticamente todo jornalista, homem ou mulher, é obrigado a ser “simpático”, mas só porque a gente tem que arrancar o maior número de informações possíveis das nossas fontes para podermos escrever os nossos textos. Acontece que, se você é homem, você consegue fazer isso tranquilamente. Se você é mulher (e o entrevistado for homem), tem que lidar com o risco de ser chamada de “gostosa” — e ainda ter que engolir seco, pra isso não prejudicar o andamento da sua matéria.

(Só um adendo: com certeza deve tido um monte de jornalista mulher por aí que não foi lá super simpática com o entrevistado e levou cantada do mesmo jeito).

*Os nomes com asteríscos foram trocados a pedido das entrevistadas, a fim de preservar as suas identidades.

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