20 anos sem Chico Science

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Música

20 anos sem Chico Science

Conversamos com os músicos pernambucanos Felipe S (Mombojó), Fábio Trummer (Banda Eddie), Matheus Mota, DJ 440, Felipe Soares (Transtorninho Records) e Almério em busca de um vislumbre da influência de Chico duas décadas após a sua morte num acidente.

Há 20 anos, morria Chico Science, homem de frente da Nação Zumbi e principal nome do movimento manguebeat. Tido por muitos como o último grande gênio criativo da música brasileira, ele propunha uma arte de identidade nacional para o mundo. E fez isso combinando o rock dos anos 1990 e a bagagem que trazia do hip hop com as heranças regionais nordestinas e africanas de ritmos como a embolada, o jongo, o maracatu e o pastoril. A inovação química resultante desse acasalamento cultural não só estimulou o mercado e abriu trilhas para uma nova geração de artistas no Brasil, como fez sucesso na América e da Europa.

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Francisco de Assis França Caldas Brandão nasceu em Recife no dia 13 de março de 1966. Filho mais novo de quatro irmãos, cresceu no bairro Rio Doce, em Olinda, onde ainda na infância foi morar com a família. Na cidade, onde ele passou a maior parte da vida, um dos principais meios de sobrevivência era o comércio de caranguejo, que acabou virando emblema do manguebeat. O próprio Chico foi vendedor de caranguejos nos anos 80, época em que colava nos bailes black para dançar. A ideia de fazer música cruzando estilos foi experimentada por ele pela primeira vez em 87, com a banda Orla Orbe, da qual participaram Lúcio Maia e Jorge Du Peixe, ambos da Nação Zumbi.

No ano seguinte a Orla acabou e nasceu a pedra bruta do manguebeat, o projeto Bom Tom Rádio, de onde brotou a primeira versão da clássica "A Cidade", gravada toscamente num computador MSX. Chico Science estourou com a Nação Zumbi pelo destaque que a banda teve no Abril Pro Rock de 93. A repercussão rendeu um contrato com a Sony para que, em março de 94, saísse o álbum Da Lama ao Caos, com produção do Liminha. Uma turnê mundial e dois anos depois, veio Afrociberdelia. Com o hit "Maracatú Atômico", releitura da faixa gravada pelo Gilberto Gil em 74, Chico Science encravaria para sempre seu nome entre os mestres impulsionadores da música brasileira.

Tragicamente, a grande promessa do início da próxima década viria a morrer no auge da fama e criatividade. Vítima de um acidente de carro, foi-se jovem, na noite de 2 de fevereiro de 97. Ele dirigia sozinho seu Fiat Uno em direção à casa de Du Peixe, em Olinda, e o acidente ocorreu na divisa com o Recife, à beira de um mangue, como que num ato profético.

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Para marcar a data e avaliar a permanência do legado de Chico no cenário atual, coletamos abaixo alguns depoimentos de músicos pernambucanos. Saca aí:

[Felipe S – Mombojó]
"Eu nunca vi o Chico pessoalmente. A Nação Zumbi ensaiava no ateliê do meu pai, no Centro do Recife. Eu tinha 13 anos na época em que ele morreu. O que eu me lembro é de ter ido lá um dia visitar o meu pai, e ver os instrumentos preparados para receber a banda. Ninguém foi lá buscar os equipamentos e as coisas ficaram lá montadas durante um tempo, depois que ele morreu. Acho que tinha ensaio marcado e ele morreu no outro dia.

"Mas me lembro de ter ficado muito triste porque eu era uma criança que assistia muita televisão, e era um momento em que ele estava aparecendo muito na tevê do Recife. Em propaganda da Globo, sabe? Ele sempre aparecia dançando, na rua a gente sempre imitava ele dançando e tal. E por isso eu fiquei muito triste. Só eles ensaiavam no ateliê do meu pai, as outras bandas não. Eles eram amigos.

"Chico Science me fez querer virar músico. Só consegui me imaginar sendo músico por causa dessa injeção de ânimo que Chico capitaneou. Ele estava à frente disso tudo e abria espaço pras pessoas não só da música, mas do cinema. E hoje em dia acho que o cinema é até mais importante do que a música em Pernambuco. Chico veio como esse cara que representava tudo que era meio excluído na época, e depois várias coisas se concretizaram.

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"Todo mundo sentiu uma injeção de orgulho mesmo, sabe? As pessoas começaram a olhar pra produção local como uma coisa boa e tal. Várias coisas estavam envolvidas, mas ele era o cara que foi o porta-bandeira. A influência dele ainda é forte na região, depois de 20 anos que se passaram. Hoje em dia tudo mudou, mas ele ainda é uma figura muito emblemática, forte, mais do que eu um dia imaginei. Ele é muito presente, as pessoas ouvem e se identificam até hoje como uma coisa nova também."

[Fabio Trummer – Banda Eddie]
"Chico Science representou o último grande movimento de criação. Porque quando a gente pensa em música brasileira, remete a cultura, raiz nossa, a esse mix de culturas diferentes. De formação multicultural, de africanos, de europeus. E o Chico sempre teve isso, ele foi uma espécie de educador cultural. Ele propiciou a aproximação do brasileiro com a sua cultura, a partir daquela época e tal, ele sintetizou isso. É aquela coisa, todo mundo tinha uma ideia na cabeça, mas ainda não tinha fechado ela. Ele abriu um novo caminho. No fim dos anos 1980, as gravadoras ficavam todas no Rio de Janeiro, e em São Paulo tinha uma cena independente muito legal. E essas realidades eram muito distantes daqui.

"O fato d'ele afirmar a identidade geográfica no seu trabalho e conseguir, com isso, fazer também uma música que estava abrindo caminhos novos na música brasileira, que é uma música de mestres e mestras, foi importantíssimo pra gente. Bem na época em que ele surgiu eu fazia faculdade, e estava naquela dúvida se eu escolheria a música ou a arquitetura. E eu decidi pela música porque ele mostrou que era possível uma carreira profissional enquanto trabalho pra vida toda. Por coincidência todos os artistas que trabalharam na geração manguebeat continuam trabalhando até hoje, com seus trabalhos autorais, não ficaram presos a um formato de leva e traz.

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"Ele foi realmente o grande mestre dessa escola cultural muito foda. Hoje a gente não faz mais as mesmas coisas, mas os princípios foram mapeados naquela época. Chico ainda está se comunicando. Ele olhava pra fora. Por causa dele as pessoas começaram a enxergar um Brasil melhor, mais esperto."

[Matheus Mota]
"Chico Science é, sem dúvida, um dos artistas seminais de um curso fundamental da música brasileira, com reflexos inegáveis até hoje; e um dos maiores compositores de todos os tempos. Conheci o Da Lama ao Caos bem no período do manguebeat, com uns 10 anos. Já me ligava em música. Aquilo, que era uma verdadeira unanimidade, deu um oxigênio importante para uma Recife antes entregue às moscas culturalmente. Houve uma revalorização de uma série de ritmos locais junto com um grande acesso ao que rolava de mais moderno no rock contemporâneo do mundo.

"É até hoje um som que me pega de jeito, acho completamente inventivo, extraterreno, e, por que não dizer intraterreno também? Não há nada, em especial nesse primeiro disco, que não tenha sido feito com um cuidado quase cirúrgico (digno dos melhores artesãos) nessa polifonia do recife-correria, aquele dos ônibus elétricos azuis dos anos 90. 'Risoflora' é uma das mais lindas músicas de amor que já escutei."

[DJ 440]
"Eu era moleque e, na época, tinha shows na praia de Bairro Novo promovidos por uma TV local. Vi o primeiro show do Chico num domingo de verão. Tava lotado, mas o cara não era famosão ainda. Geral não tava entendendo nada (e nem eu) o que era aquela cara. Era um showman. Pulava, fazia munganga (gíria para 'caretas, expressões', em Recife), dançava e falava umas coisas foda nas letras. Mas todo mundo entrou na onda daquela cara incrível. Depois daquele dia fui atrás de alguma coisa dele. Foi quando descobri o Da Lama ao Caos . Pirei! Por conta dele, tive interesse em me aprofundar na cultura popular do meu Estado.

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"O Chico mudou tudo, né. Recife tava engessado na época e o homem deu um sacode em todo mundo. Mostrou que a gente podia mais. Podia experimentar, podia reinventar o que a gente tem aqui de cultura popular e ficar massa. Quem mais pensou em colocar alfaia de Maracatu numa banda de rock? Colocar sampler de cantiga de roda, Mateus e Catirina, de coco de umbigada… Isso inspirou e ainda inspira muita gente. Chico é uma fonte da qual muitos ainda beberão. É um artista imperecível…".

[Felipe Soares – Transtorninho Records]
"Acho que Chico Science & Nação Zumbi foi importante, e o trabalho dele, de ser sincero em relação a suas raízes, isso eu admiro muito. Mas acho que ele também se tornou um problema. O manguebeat foi muito legal, deve ter sido foda viver a época em que gente de todo tipo, literalmente, se reunia pra ver um show. O problema é que parece que até hoje as pessoas não superaram o manguebeat, principalmente em Recife. Tudo bem gostar pra caralho, mas porra, a cidade tem pouquíssimo show de artista independente se comparado a outras capitais.

"Talvez as pessoas tenham se acostumado a uma forma de consumir e produzir cultura que não se aplica hoje em dia. As casas de show preferem discotecar qualquer música do Nação Zumbi do que apoiar uma banda nova. É um costume horrível. Acho que o problema não foi o Chico Science, acho que ele tinha ideias muito boas, muito boas mermo. O problema mesmo é o culto que as pessoas fazem dele. Talvez eu esteja errado, mas acredito que se as pessoas dessem 10% do valor que elas dão ao manguebeat a novas histórias, seria uma boa."

[Almério]
"Chico Science & Nação Zumbi deram vida a um dos maiores movimentos culturais do mundo, o manguebeat. Reativaram a arte em Pernambuco. Hoje a explosão de criatividade que eu observo nos novos artistas e bandas vem muito dessa força. Não que Chico Science influencie diretamente esse novo momento, mas por tudo que ele deixou aberto pra que essa galera nova pudesse trabalhar com mais personalidade.

"Esse movimento de música mexeu com tudo: moda, cinema, artes plásticas, teatro. E as bandas e artistas das cidades do interior de Pernambuco também foram atingidas por essa ebulição, criando uma pluralidade sonora muito importante. Pernambuco sempre foi e será  uma fonte inesgotável de arte e inspiração."