Novo documentário da Netflix sobre Quincy Jones deixa aquela entrevista lá no chinelo
Quincy Jones e Michael Jackson no Grammy de 1984, com dois de seus oito prêmios. Foto por William Nation via Getty Images.

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Música

Novo documentário da Netflix sobre Quincy Jones deixa aquela entrevista lá no chinelo

Assista o filme, dirigido pela filha dele Rashida Jones, e se deixe iluminar por esse gênio desenfreado.

Dependendo da sua idade, você pode conhecer Quincy Jones por diferentes razões. Talvez você conheça ele como o produtor-executivo e compositor musical de Um Maluco no Pedaço, ou como o fundador da revista VIBE. Talvez conheça ele pelo seu trabalho lendário produzindo os discos solo mais vendidos do Michael Jackson, incluindo Thriller. Se você é bem mais velho, talvez o conheça como um músico de jazz que virou compositor, que treinou e tocou com os grandes nomes da música nos anos 1940, 50 e 60.

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Se nada disso fez sua ficha cair, você provavelmente viu a entrevista viral que ele deu este ano para o Vulture, onde ele fofocou sobre vários amigos famosos, dizendo que Marlon Brando transou com Marvin Gaye e que uma vez ele ficou com a Ivanka Trump.

O novo documentário da Netflix, Quincy, dirigido por sua filha Rashida Jones, desnorteia o espectador simplesmente recontando uma carreira muito, muito prolífica, e é até difícil para os fãs mais casuais lembrarem de tudo. Mas comprimida em duas horas, essa se torna uma história essencial que já devia ter sido contada há muito tempo, iluminando o progresso da música americana e o impacto indelével que artistas negros tiveram em moldá-la.

A personalidade elétrica de Jones tempera o filme com momentos emocionantes e palavras de sabedoria. Para apreciar completamente o impacto dele, vale tirar algumas horas para assistir o documentário inteiro. Mas para abrir seu apetite, aqui vão alguns trechos memoráveis do filme que encapsulam temas significativos de Quincy e, por extensão, o mito do homem por trás do filme.

“Para a música crescer, os críticos precisam parar de categorizar tudo e deixar os músicos se envolverem em todas as facetas da música. Vamos morrer se ficarmos presos em uma área da música.”

Instigado pelo pioneiro do jazz Duke Ellington, Jones tornou sua missão ajudar a descategorizar a música americana, encorajando artistas a abordar projetos fora dos gêneros a que são associados. Rotular estilos musicais pode acabar encaixotando músicos em esteriótipos, como associar o jazz com pessoas não-brancas, ou pop com músicos brancos; gospel com estilo de vida tradicionalista, ou blues com rebeldia.

Jones foi claramente atraído por gêneros particulares em vários pontos de sua carreira, como quando ele seguiu músicos de bebop de Nova York até eles o deixarem entrar para a turma na década de 1940. Mas sua busca por experimentar entre categorias também viria a definir seu legado. Talvez por acaso, ele conseguiu grandes oportunidades de músicos como Frank Sinatra, que reconhecia que Jones podia aplicar suas habilidades numa grande variedade de estilos. Sua importância na indústria o posicionou perfeitamente para realizar sua visão de colaboração entre gêneros, como a famosa faixa de caridade de 1985 “We Are the World”, ou o álbum fundindo hip hop e bebop Back on the Block de 1989.

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Essa citação em particular de Quincy, sugerindo que músicos “vão morrer” se forem encaixotados, dá uma guinada sombria abrupta. Mas essa é uma corrente misantrópica que flui pelo filme. Sentado com Kendrick Lamar para uma sessão de fotos, Jones diz que a música o salvou de acabar morto ou na cadeia — um tema também muito presente na discografia de Lamar.

Rashida Jones também disse ao Entertainment Weekly que aprendeu sobre a “necessidade de sobreviver pela música” do pai enquanto filmava o documentário. Claro, dar tanto de si para sua carreira e estilo de vida pródigo quase matou Jones várias vezes, como quando ele desmaiou de tanto trabalhar com 30 e poucos anos, ou quando ele caiu num coma por causa da diabetes em 2015. Mas aos 85 anos, o jeito como Jones continua se jogando em projetos ambiciosos destaca quão vital a música é para sua própria existência.

Quincy Jones em estúdio, imagem via Netflix.

“Aprendi muito tempo atrás, sua música nunca pode ser mais ou menos do que você é como ser humano.”

Jones diz essa frase para Dr. Dre na cena de abertura de Quincy, logo depois de descrever a violência de sua infância que o deixou com cicatrizes permanentes. O documentário o retrata como um homem com memórias profundas de seus sucessos e tragédias pessoais e profissionais. A insinuação é que se experiência vivida é tão valiosa quanto produção criativa, a história pessoal extraordinária de Jones é pelo menos em parte responsável por seus grandes hits.

O filme retrata Jones como uma pessoa de personalidade excepcional, o que corre em paralelo com sua experiência em produção. Mas ele claramente não é perfeito. Jones tinha um padrão de abandonar sua família em favor da carreira, e tinha algumas coisas bem polêmicas para dizer sobre seus conhecidos famosos na entrevista para o Vulture que viralizou.

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Mas ele ainda é uma figura cheia de magnetismo carismático. Mesmo as esposas que ele deve ter magoado por ser um parceiro ausente não têm ressentimentos para compartilhar no filme — pelo menos não na versão final. E várias ex-namoradas ainda passam as festas de final de ano com ele. Jones parece um homem com amizades profundas e duradouras, e com um interesse sincero em ser um mentor para jovens artistas, tudo isso enquanto usa sua influência para promover justiça social e causas políticas. Nesse contexto, suas produções parecem como uma extensão de um homem que se esforça para atingir todo seu potencial em todo aspecto da vida.

A filosofia de Jones, de que a música nunca deve ser considerada mais valiosa que a pessoa que a criou, é particularmente comovente, considerando o notório tratamento recebido por músicos negros de jazz fora dos palcos durante a segregação, enquanto o público branco enlouquecia com sua música. O documentário toca nisso algumas vezes, mais memoravelmente quando se trata de como Frank Sinatra se recusava a colocar os músicos negros de sua banda em hotéis diferentes de seus músicos brancos, do outro lado da cidade em Las Vegas. Jones se recusou a deixar essa dicotomia afetá-lo, a seu próprio modo. Uma vez, numa entrevista, Jones disse que ele e Ray Charles compartilhavam um refrão empoderador: "Nem uma gota do meu valor próprio depende da sua aceitação."

“Ego geralmente é uma insegurança vestida exageradamente. Acho que você tem que sonhar tão alto que não tem ego, porque sabe que não pode realizar esses sonhos.”

Nos anos 1950 e 60, ser um músico de jazz era como ser um astro do rock. Mas a atriz de The Mod Squad Peggy Lipton, namorada de Jones na época (e mãe de Rashida), disse que ele não queria se ver apenas como um músico de jazz ou compositor de trilhas sonoras. Considerando todo o sucesso em sua carreira, Jones parece insaciável no filme.

Jones quase morreu durante as filmagens de Quincy, depois de entrar em coma diabético, então ele parou de beber, parcialmente porque sente que ainda tem mais sonhos para realizar. O documentário se centra na conquista de um desses objetivos: acompanhando Jones enquanto ele faz curadoria de história musical para a inauguração do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana em Washington, DC.

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Em sua entrevista com a Vulture, vários momentos o fizeram parecer mais arrogante do que ele parece no documentário. Em um ponto o entrevistador pergunta: “Qual uma coisa em que você trabalhou que não deveria ter sido tão grande?” E ele responde: “Do que diabos você está falando? Nunca tive esse problema. Tudo é grande”. Ele claramente tem orgulho de suas conquistas e uma língua de fogo, mas o documentário ameniza esse retrato dele. Quincy aponta que Jones também é humilde por seu desejo incansável de sempre fazer o melhor e conquistar mais.

“Sinto que [quando gravando música], deixe pelo menos 20 ou 30% de espaço para Deus andar pela sala. Porque aí você deixa espaço para a mágica, e álbuns são sobre capturar momentos de magia real.”

Seja estimulando a química entre músicos de bebop e artistas de hip hop, ou convencendo um tímido Michael Jackson a sair de sua concha, Jones aperfeiçoou sua arte de preparar músicos para o sucesso, depois deixar a natureza seguir seu curso. De maneira interessante, Jones não parece tão impressionado com os primeiros sucessos de Jackson como astro infantil. No documentário, ele chama essas músicas de “chiclete”. Mas quando Jones conheceu Jackson enquanto produzia O Mágico Inesquecível, onde Jackson interpretava o corvo, Jones ficou impressionado com seu talento e disciplina, e acabou decidindo produzir os discos solo de Jackson. Jones tinha acesso ao melhor da indústria, e muito do seu gênio gira em torno de juntar as pessoas certas para um projeto — uma habilidade que se manifestava notavelmente nas faixas que Jones produziu para Jackson.

Foto por Susanne Schapowalow via Netflix.

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“Acho que [os rappers] não estão conscientes de que têm uma herança tremenda. Às vezes eles sentem que estão sozinhos no mundo. Mas não estão.”

Como um ícone de várias gerações e de mistura de gêneros, Jones usou sua influência para ajudar a derrubar o mito de que o rap era uma força podre e insurgente desviada do legado de música negra mais “digna”, como jazz, swing, funk e soul.

À primeira vista, essa citação sugere que vai se lançar numa diatribe de dedo em riste sobre rappers terem que respeitar os mais velhos. Mas Jones estava sinceramente interessado em ajudar rappers a ter sucesso e aclamação em seus próprios termos, então ele começou a produzir suas músicas e fundou a revista VIBE para documentar melhor a cultura.

Quando Jones interveio, foi principalmente por preocupação com a violência mortal que pairava na cena. No documentário, várias vezes ele derrama lágrimas para amigos da era do jazz falecidos. Quando ele chora numa reunião em 1995 sobre brigas de rappers gangsta, tentando fazer as pazes entre eles, as lágrimas vêm de um lugar similar. Ele considera esses músicos como parte do mesmo legado.

Através de Quincy, testemunhamos Jones focar a maior parte de sua energia em fomentar afinidade entre músicos negros de diferentes gêneros e eras, enfatizando a história e a luta de que todos eles descendem. Nessa cruzada, ainda há espaço para Jones afirmar de forma excêntrica numa conversa com Lamar que as batidas do hip-hop não se originaram no Bronx, mas dos gritos tribais na África.

Em vez de usar a abordagem do “discurso do bolo” de Bill Cosby, visto como uma calúnia factual contra a juventude negra afro-americana, Jones parece aderir a mesma escola de pensamento de artistas como Eykah Badu, que forjou laços próximos de empatia com músicos mais jovens. Talvez construir a ponte sobre essa barreira é uma das maiores conquistas dele — uma contribuição monumental para a cultura.

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