Na onda do clube das surfistas de Santa Catarina

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Na onda do clube das surfistas de Santa Catarina

Como dezenas de mulheres encontraram a sororidade e um novo modo de vida sobre as pranchas no sul do país.

Quando era criança, nos anos 90, em Floripa, Jacqueline Silva era muito fácil de ser localizada: era a única menina da região que saía, toda manhã, com uma prancha maior que o próprio corpo debaixo do braço.

Ela admirava a imensidão azul, as ondulações das ondas, os garotos que as dropavam. Conhecia todos eles. Eram amigos e vizinhos na Barra da Lagoa, praia localizada no leste de Florianópolis, em Santa Catarina.

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Foi ali, naquelas águas salgadas da comunidade de pescadores, que Jacque cresceu e aprendeu a surfar. Era impossível não se sentir desbravadora. Mesmo numa cidade com 42 praias, havia pouquíssimas mulheres que encaravam o oceano como ela.

Hoje, aos 37 anos, bi-campeã do  WQS ( World Qualifying Series, a divisão de acesso para o circuito mundial) e vice-campeã do WCT ( World Championship Tour),  Jacqueline Silva se empenha na missão de ajudar mais mulheres a pegar onda. Quase todas as manhãs, no mesmo lugar da infância, ela dá aulas para entusiastas femininas do surfe das mais variadas faixas etárias.

"Tem que incentivar o esporte independente da idade, não tem limite", diz Jacque, após uma bateria de treinos com outras surfistas. "Deu vontade, gosta de praia, vem para a água."

Há um ano, o grupo Elas também dropam se reúne todas as semanas em diferentes praias da cidade para surfar. Jacque, claro, apoia e participa dos eventos. Na manhã do penúltimo sábado de janeiro, debaixo de um sol que se escondia entre as nuvens e um mormaço que ardia os pés, dezenas de garotas carregavam suas pranchas pelas areias da Barra da Lagoa. Enquanto algumas surfistas deslizavam no mar transparente, outras admiravam as performances de Jacque e outras colegas.

Tina, ao centro, com as mulheres do Elas também dropam. Foto: Gabriela Damasceno

A dentista e diretora de surfe feminino da Federação Catarinense de Surf (Fecasurf), Tina Vilela, 37, criou o grupo depois de se revoltar com  a falta de interesse das instituições para realizar campeonatos femininos nacionais. "Mesmo que hoje as garotas venham para a praia apenas para se divertir, aumenta a cultura do surfe", diz. "Muitas são mães. Outras vão ter filhos e filhas e irão incentivar as crianças. Com o tempo, a gente vai ter mais competidoras." Hoje duzentas mulheres fazem parte do grupo.

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Tina acompanhou de perto as transformações do esporte para as mulheres. A sua luta começou dentro de casa, quando pegou as primeiras ondas em uma prancha de bodyboard, na década de 1990. "Meu pai reprovava, era contra. Dizia que era um esporte de homens." Ela não deu bola. Insistiu na modalidade e hoje pratica com todos os tipos de prancha. Surfou em pé pela primeira vez aos 25 anos. "Nunca é tarde para começar. E, quando tu ama mesmo, pratica todos os dias."

Em Santa Catarina, a união das mulheres surfistas surtiu efeito. Neste ano, a Fecasurf irá criar pela primeira vez um circuito exclusivamente feminino nas categorias open, júnior e infantil. Até ano passado só existia uma categoria para mulheres, que não era dividida por idade. "As surfistas no Brasil são guerreiras. Muitas ficam sem rumo e se perguntam: 'Eu tô surfando para quê? Para viver disso ou só por diversão?' Não há muitos campeonatos amadores", questiona Jacque.

Jacque Silva na praia que sempre a acolheu. Foto: Marina Piccoli

No início da carreira, Jacque se inspirava na norte-americana Lisa Anderson, quatro vezes campeã, de 1994 a 1997. Atualmente, ela admira a cearense Silvana Lima, única brasileira na elite do Circuito Mundial. "Elas surfam muito bonito. São pessoas que tu olha e pensa: 'quero fazer igual'. Tu tenta te remodelar para surfar assim. Aumenta o nível do esporte", contra.

Ver outras mulheres surfar é fundamental para qualquer garota que pensa em seguir carreira em cima das pranchas. Entre 1991 e 1994 Jacque sempre competia com duas surfistas que moravam na praia da Joaquina, outro pico no leste de Floripa. Havia uma troca e uma competição saudável entre elas. Durante esses quatro anos conquistou o primeiro lugar, dando início a uma carreira promissora.

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O mar transforma

Competindo ou surfando por diversão, para elas, o mar é transformador. Ao menos três vezes por semana, a bióloga Débora Monteiro Brentano, 36, cai na água. Participa dos encontros do grupo sempre que pode. O surfe é uma "escapada do dia", como costuma dizer. "Somos cobradas por várias coisas. Para ter um corpo sarado, ser uma ótima profissional e mãe. O surfe é uma alternativa para se realizar como pessoa. Entender o próprio corpo. Tem toda uma questão de consciência corporal. Essa união de mulheres dentro do mar é empoderador. A gente pode fazer e ser o que quiser!"

Debora em ação. Foto: Arquivo pessoal

Jacque, a garota surfista da Barra da Lagoa, partilha do sentimento. É na água salgada que se sente bem. "É a minha segunda casa", define. "Ali eu esqueço todos os problemas. Renovo as energias. Quando faço uma sessão legal de surfe, saio feliz e contente. Essa alegria eu levo para o resto do meu dia. E mesmo quando eu não posso surfar por conta do vento ou o frio, admiro o mar todos os dias."

Somos cobradas por várias coisas. Para ter um corpo sarado, ser uma ótima profissional e mãe. O surfe é uma alternativa para se realizar como pessoa. Entender o próprio corpo.

O amor pelo oceano salvou a designer de joias Carol Grieco, 47. "Sempre tive o mar dentro de mim", conta. Foi justamente o poder da água salgada que amenizou o sofrimento quando o seu segundo filho morreu. Numa tarde de janeiro, Antônio, de sete meses, tirava a sonequinha da tarde e não acordou mais. A criança sofreu a síndrome de morte súbita – caso em que um bebê aparentemente saudável morre sem explicação. Para aplacar a dor, ela mergulhou e surfou de bodyboard durante todo o verão de 2005. "Eu queria estar cansada o suficiente para colocar a cabeça no travesseiro e descansar. Somente no dia que perdi meu filho, tomei remédio para dormir."

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Com uma voz doce mas firme e uma serenidade no olhar que só a experiência traz, Carol descreve o poder do oceano. "A praia tranquiliza, o barulho das ondas acalma. Você coloca os pés na água, sente a areia e a energia. O ser humano precisa de mais contato com a natureza", diz. Durante as suas sessões de surfe, decidiu ter outro filho. Quinze dias depois da morte de Antônio, estava grávida novamente.

Carol, em Floripa, prestes a entrar na água. Foto: Mariana Piccoli

A ciência diz que a façanha de se levantar em uma prancha e pegar uma onda capacita as pessoas a superar desafios mentais, emocionais ou físicos. Os esportes náuticos promovem o bem-estar e também atuam no cérebro, principalmente os aeróbicos, como o surfe. A prática de atividade física aumenta a produção de endorfina, hormônio que alivia a ansiedade e depressão, e tem poder terapêutico. Tanto que na Califórnia, nos Estados Unidos, a Fundação Jimmy Miller dá aulas de surfe para centenas de pessoas que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático, como crianças vítimas de abuso sexual, fuzileiros navais e veteranos da guerra.

"Nunca esqueci o que aconteceu", explica Carol. "Mas os dias passavam e nada melhor que o tempo. Tinha o meu trabalho, meus dois filhos e o mar. Tudo isso vai preenchendo a vida e curando a ferida." Desde os 16 anos ela surfa com uma prancha de bodyboard. Em 2008, conheceu o Stand Up Paddle, o SUP. Como homenagem ao estilo de vida que tanto ama, tatuou no ano passado o contorno de uma sereia na costela esquerda. E não pretende abandonar o mar tão cedo.

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Carol no mar. Foto: Mariana Piccoli

"Mesmo as mulheres mais velhas têm condições de praticar um esporte aquático. Tem mar para todo mundo. Hoje tem muitas escolas para ensinar", diz. Ela preza por uma vida descomplicada e com menos encanações com o corpo. "Por mais que eu decida fazer plástica, eu não tenho mais o colágeno de uma jovem. Por isso procuro mesmo é estar com a cabeça fresca e entrar no mar. Inclusive, me sinto mais satisfeita com o corpo de hoje do que o de 10 anos atrás. Esqueço as gordurinhas e me jogo na água."

Surfar até a melhor idade

O corpo nunca foi problema para a analista de crédito Viviane Rosa, 46, mas sim a idade. À medida que os sinais do tempo revelavam as primeiras rugas, ela mentia os anos de vida. Era uma forma de esquecer o peso do tempo. Seu maior medo era perder o condicionamento físico. "Um dia um parente perguntou: 'Tu achas que tens idade para surfar?' Eu respondi que sim e percebi que não tenho que me preocupar. Mesmo se um dia eu não conseguir mais andar, eu entro no mar carregada por alguém", respondeu em meio às risadas.

Esguia e com bom condicionamento, Viviane tem rotina tranquila. Levanta cedinho, toma café e vai de bicicleta até a praia surfar de bodyboard. Mora próximo ao mar, na praia Barra da Lagoa. À noite, anda de skate em uma pista próxima a sua casa – começou a praticar há três meses. Por causa do novo esporte, resolveu se arriscar em pé na prancha. "Prezo pelas coisas simples que me fazem feliz", resume. Se hoje a sua vida é leve e tranquila, há pouco tempo tinha uma rotina completamente diferente em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. Após uma separação e venda da empresa – fabricava acessórios, bolsas e bijuterias para uma grande loja de departamentos – enfrentou um período de depressão. A situação só melhorou quando a sua irmã a levou para a praia. Foi aí que resolveu se reerguer. "Eu vou ficar em casa chorando? Vou é surfar!", relembra. Decidiu, então, se mudar para Florianópolis e recomeçar.

Viviane Rosa, de 46 anos, não quer parar de surfar tão cedo. Foto: Mariana Piccoli

"Algumas mulheres desistem quando chegam aos 40, 50 anos. A vida não precisa ser assim", explica Viviane. No passado, era comum as mulheres se conformarem com as suas frustrações, principalmente as que chegavam na meia-idade, período que antecede a velhice. "A gente foi criada para casar e ter filhos. Mas eu defendo que as mulheres podem fazer as mesmas atividades que os homens, o que dá prazer", reitera a surfista. E, de fato, com a expectativa de vida crescendo a cada ano, a meia-idade pode ser o início de um novo ciclo. De acordo com o IBGE, as mulheres vivem em média até os 79 anos. No meio da vida, muitas reagem, renascem e se transformam. No caso da Carol e da Viviane, sempre com a companhia do oceano.

O surfe é um ótimo aliado para a auto-estima, as relações afetivas e o sexo, explica Viviane. "Não há creme que vai ajudar a tratar a tua beleza interior. No mar tu ficas boiando e esperando a onda chegar. Tais dentro d'água e de repente encontra um golfinho ou peixe pulando, um arco-íris no fim da tarde. A pele fica bonita, o corpo muda." Carol acredita que o esporte une as pessoas – independentemente da idade, gênero e classe social. "Todo mundo é igual dentro d'água." E complementa: "o mar é o auge da natureza."