A vida do homem que ilustra folhetos de missa
Marco Funchal na capela que pintou. Foto: Marcelo Daniel

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A vida do homem que ilustra folhetos de missa

Marco Funchal é o ilustrador que mais produz no Brasil.

Criado para ser uma espécie de guia para acompanhar a celebração, o folheto de missa passa batido aos católicos fervorosos. Já os menos praticantes, que estão lá por causa do batizado da sobrinha, veem naquelas quatro páginas uma eternidade. Mas não é do conteúdo do folheto de missa que vamos falar aqui — pelo menos não da parte escrita. A primeira página do impresso costuma trazer uma gravura, que geralmente representa a leitura do Evangelho daquele domingo. Em São Paulo e, durante muito tempo, em várias partes do Brasil, esses desenhos vêm do bico da pena de Marcos Funchal.

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Aos 39 anos, o arquiteto, ilustrador e filósofo é responsável pela gravura semanal do folheto Povo de Deus em São Paulo, publicado pela Mitra Arquidiocesana, com 85 mil exemplares impressos a cada missa dominical, distribuídos em igrejas na região central da capital. Achou muito? Até pouco tempo, também era seu o traço do folheto Deus Conosco, produzido pela editora do Santuário Nacional de Aparecida, que apesar de não divulgar números, como veremos mais abaixo, estima-se que cerca de um milhão de exemplares eram feitos a cada domingo. Durante uma década, até 2013, quando esteve nas duas publicações concomitantemente, teria Funchal sido um dos ilustradores mais impressos do Brasil? Ele acena que "sim", com a cabeça.

Marco Aurélio Funchal Camargo aguardava a reportagem da VICE sentado, sozinho, na capela Maria Imaculada, construção com a fachada de tijolinhos avermelhados, que quase se esconde em uma rua do bairro paulistano da Saúde.

Ele projetou e pintou a fachada, altar e a cúpula da construção, fez as duas faixas de vitrais laterais (apenas os desenhos) e uma cena do batismo de Cristo no corredor ao lado, com ladrilhos. Tem muito orgulho do lugar, onde frequenta a missa, interage com a comunidade e ainda é ministro da Eucaristia, aquele que ajuda o padre a distribuir as hóstias.

Nasceu em Pouso Alegre, Minas Gerais, mas veio para São Paulo com "zero" anos, no bairro da Saúde, onde vive até hoje com os pais. Passou por dificuldades financeiras na infância, época em que já rascunhava prédios no papel. Era apaixonado pelas torres, as construções e, consequentemente, pelas igrejas.

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A capela no bairro da Saúde pintada por Marco. Foto: Marcelo Daniel

Introspectivo, fala olhando para um ponto fixo entre o horizonte e o chão. O jeitão foi o mesmo durante toda a vida — mas sem o dom da eloquência. Conta que seu estilo fez com que fosse vítima de bullying tanto na escola e mesmo na catequese."Nessa fase, quem não usa a violência passa a ser vítima daqueles que a usam", lembra ele com tristeza. Por um tempo, passou a rejeitar escola e igreja.

No entanto, foi na faculdade de Arquitetura, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, interior de São Paulo, que uma professora o aproximou da arte sacra e do trabalho de Cláudio Pastro, um dos mais conhecidos nomes do segmento no país, falecido em outubro de 2016. Foi a docente quem abriu os olhos de Funchal para a iconografia da arte bizantina, conteúdo que revolucionaria sua vida e trabalho. Pouquíssimo tempo depois, seu nome estaria em evidência no catolicismo brasileiro.

Apesar de iniciativas como o aplicativo Católico Orante e as paróquias que optam por substituir o impresso por projeções em telões, com aparelho de data show, não é visível uma movimentação mais impactante que faça os 123 milhões de católicos do Brasil, segundo o último Censo do IBGE, deixarem o papelzinho da missa de lado ou substituí-lo por um dispositivo móvel.

O que existe, segundo fontes da área gráfica ouvidas pela reportagem, é a concorrência entre os títulos. Com as mudanças de padres em paróquias de tempos em tempos, é comum que o novo pároco opte pela assinatura do folheto de missa de sua preferência.

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Detalhe de uma das ilustrações feitas por Funchal. Imagem: reprodução

Em números e abrangência, o maior produto em território nacional é O Domingo, publicado pela Paulus Editora. Apesar de a organização não ter fornecido à reportagem dados da sua tiragem, o site da empresa aponta que quase dois milhões de exemplares do folheto litúrgico são produzidos semanalmente. As ilustrações, no entanto, não são feitas no Brasil.

O folheto litúrgico Deus Conosco, da Editora Santuário, em Aparecida, São Paulo, tem quase 50 anos de existência. O órgão também não fornece números de sua tiragem, mas uma publicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no início da década, informa que a edição semanal era de um milhão de exemplares.

Mesmo com os estudos em Bauru, as viagens quinzenais à capital não atrapalharam a atuação de Funchal no catolicismo. Por morar perto do Santuário de São Judas, na Zona Sul, também passou a colaborar com ilustrações na instituição. Em um encontro entre santuários, um representante de Aparecida, o maior do Brasil, gostou do trabalho e, assim, surgiu o convite para ilustrar o Deus Conosco.

Um cartão comemorativo personalizado entregue nas mãos de um bispo, de uma série de 50 unidades, funcionou como uma espécie de incentivo para que Funchal passasse a ilustrar, também, O Povo de Deus Em São Paulo, da arquidiocese. À época, por questões relacionadas ao pagamento de direitos autorais, eles buscavam um novo artista para estampar a primeira página dos folhetos.

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Batismo de Jesus desenhado em azulejos, feito por Funchal na lateral da capela Maria Imaculada. Foto: Marcelo Daniel

Em nenhum dos casos, conta o ilustrador, houve uma procura pela vaga, com entrega de currículos ou algo do tipo. O vínculo se deu naturalmente, a partir do relacionamento dentro da própria igreja.

Nos créditos do folheto paulistano a Marco Funchal está, também, o número de seu telefone residencial. É muito comum ligarem para ele, como se fosse um SAC católico. "Nunca serviu como um divulgador para que eu fizesse outros trabalhos, ao contrário dos meus sites", conta.

Para ilustrar um folheto de missa, é preciso entender um pouco como funciona o calendário católico. Os impressos obedecem a um ciclo trianual, que segue os três anos litúrgicos: A, B e C, que correspondem aos apóstolos Mateus, Marcos e Lucas. Levando em conta que um ano tem, em média, 50 domingos, significa que Funchal tem de entregar 150 ilustrações, que ele faz em cartolina e, posteriormente, digitaliza. Após esses três anos de imagens inéditas, é comum que a editora passe a repeti-las por novos ciclos até que sejam renovadas as artes.

No passado, ao criar o presbitério de uma catedral no interior do Estado, Marco se surpreendeu ao ver sua arte reproduzida em impressos até no exterior, simbolizando as comemorações do Ano Sacerdotal. "Eu não sei como isso aconteceu, não sei quem fez isso sem me comunicar", diz, com certa revolta. Ironicamente, pelo fato de o desenho ter sido muito difundido em Portugal, o artista recebeu pedidos lusitanos, solicitando autorização para uso. "Autorizei, é claro, sem cobrar nada".

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Falar em dinheiro com Funchal significa abordar um tema ligado à sua filosofia de vida. Desde a juventude ele é ligado às causas sociais o que o faz cobrar valores que considera "realistas". "A situação é sempre difícil, eu tento me organizar financeiramente, mas tenho um caráter voluntarista", explica.

"Esses desenhos têm um valor que transcende à minha pessoa; meu trabalho poderia ser considerado um patrimônio nacional, sem modéstia" — Marco Funchal

De várias comunidades em que realizou pinturas sacras no interior e fachada das capelas, cobrou R$ 500. Lembra que em uma delas, a paróquia acabou pagando, por conta própria, o dobro, diante das dimensões do que havia sido feito. "Eu tive que desenvolver um critério para executar os trabalhos e escolhi cobrar pelo metro quadrado; estou muito próximo do preço de um pintor normal", diz.

Marco, durante nossa conversa, estava com pressa, era preciso sair para orçar mais um trabalho em um capela. "Esses desenhos têm um valor que transcende à minha pessoa; meu trabalho poderia ser considerado um patrimônio nacional, sem modéstia", finaliza, olhando para baixo, com o mesmo jeito introspectivo, do menino tímido que enfrentava problemas com os colegas no colégio e com os garotos na catequese.

Dessa vez, quem o observa é uma gigantesca Nossa Senhora, o Menino Jesus, o pai José, um cordeirinho e os três Reis Magos, todos frutos de seu pincel.

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