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“Ultra-Romântico” combate o tédio cotidiano em uma ratoeira de Brasília

Uma peça-festa adapta Álvares de Azevedo em montagem punk hedonista.

Todas as fotos são do Tiago Machado.

Em um buraco escuro e barulhento no centro da capital do Brasil, um jovem errante está no final de uma festa e não se contenta com isso: quer mais, mais e mais. É na noite, afinal, que a dor do existir e o tédio do dia a dia podem ser dissolvidos em líquidos estranhos, beijos, brigas e fumaça. As luzes se acendem e, como todo chato de fim de balada, ele pede mais músicas para o DJ, que diz não. A partir daí, o herói dessa jornada na busca por novas sensações passa a esbravejar palavras ao vento, invocando o espírito noturno que está quase indo embora e ele não quer perder. Esse espírito aparece na forma de Ângela, uma figura andrógina e longilínea que vira uma espécie de guia nessa rota que tem o objetivo de manter viva a chama da loucura. Drogas, sequestro, batalha de rima e a disputa por uma mulher se misturam, em um caldeirão de referências. Ou melhor, em um contêiner de lixo bem grande que está presente a todo momento e se metamorfoseia, na imaginação do espectador, no que as cenas de "Ultra-Romântico" sugestionam.

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Essa "peça-festa" criada pelo Grupo Liquidificador, do Distrito Federal, estreou no dia 13 de fevereiro, e transporta o público para uma saga que se inicia como um espetáculo teatral e culmina em uma festa de verdade que rola madrugada adentro, com muitas pessoas inspiradas pela vibe hedonista que paira no ar assim que a montagem começa. Portanto, fica o aviso aos incautos não acostumados com contato e improvisação e beijos quíntuplos – ou aos sedentos por estreitar laços entre os outsiders e despir o carão usual que a noite pede: é um monte de gente de humanas sendo, maravilhosamente, gente de humanas.

Segundo Karinne Ribeiro, atriz e responsável pela dramaturgia da peça, a mescla de propostas não apenas entrosa diferentes áreas culturais da cidade – como DJs, produtores, atores e afins – como também leva mais gente ao teatro. "As pessoas frequentam mais festa do que teatro, né? Isso é fato. Então trazer o público de festa foi uma motivação, porque a gente está falando sobre essas pessoas, ou sobre essa energia, que é a busca espiritual por viver coisas", fala. "Eu acho que é assim que tem que fazer, é básico você ir atrás do público, não só de quem faz teatro. Isso me agonia profundamente".

O espetáculo tem uma estética fortemente influenciada pelo movimento punk e é uma adaptação da obra "Noite na Taverna", publicada em 1855 pelo escritor Álvares de Azevedo, representante da segunda geração do romantismo – movimento literário e artístico que veio para o Brasil, importado da Europa, no século XIX – e conhecido por tratar de temas como morte, individualismo e fuga da realidade. A ponte que liga a montagem atual com a publicação do século retrasado mostra que a luta contra o tédio instaurado pela burocracia cotidiana, a glamourização de crushes impossíveis e a angústia com pitadas de fascínio despertada pelo desconhecido são coisas que juventudes de diferentes épocas da história recente da humanidade compartilham. Porém, o que parece é que contextualizações políticas evidentes são deixadas de lado nessa adaptação em prol de uma homogeneização das semelhanças desses momentos diversos.

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Para Fernando Carvalho, o diretor da "peça-festa", a vontade de adaptar "Noite na Taverna" surgiu justamente pelo fato de o texto ser muito jovem – Álvares de Azevedo morreu aos 21 anos, então toda sua obra é fruto da mente imaginativa de um pirralho – e trazer questões ainda relevantes aos tempos de agora. "E 'Noite na Taverna' é um ícone da literatura romântica brasileira, da literatura de prosa. É um texto que é muito aberto pra entrar coisas teatrais, tem muitas aberturas pra gente criar. E como a gente cria coletivamente, com improvisos, isso favorece muito" explica. "Existem muitas referências pessoais, é até difícil elencar todas, porque todo mundo contribuiu o tempo inteiro. Mas têm umas macro, que são movimentos jovens explosivos do século XX. A gente começou com os punks e foi abrangendo. Não tinha como falar só de um contexto, porque ele está em constante transformação. Isso é uma tentativa de sugar da história aquilo que ainda está pulsando na gente. Que sensação é essa de barulho, de bagunça, que permanece viva?", diz Karinne. "Aí a gente fez uma linha evolutiva das juventudes desde a época do romantismo até o punk, vimos também os beats, os clubbers… Um negava o outro, que negava o outro, e negava o outro e, no fim, rolava uma similaridade entre o punk e o romântico. O punk é meio romântico", acrescenta o diretor.

Olhando de perto, é até possível perceber uma proximidade entre a geração ultra-romântica – ou geração "mal do século", termos pelos quais a segunda fase do romantismo também é chamada – e os ideais punks: pessimismo, tédio, reforço da individualidade e crença de se estar vivendo em uma sociedade decadente, por exemplo. "No future" poderia muito bem ser algo cunhado por um embriagado jovem romântico de muitas décadas atrás. Se eu tivesse pensado em algo do tipo antes, talvez tivesse sido menos chato ler uns caras assim na época da escola.

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O faça-você-mesmo da cultura punk foi incorporado para além da estética, sendo também o modus operandi do grupo na confecção de flyers, zines relacionados à peça, cartazes e até mesmo na construção do roteiro. "A dramaturgia foi muito nessa onda, comecei a recortar e colar mesmo, tipo um trecho aqui que alguém disse em tal ensaio virou uma fala ali com outra que eu escrevi em cima", ressalta Karinne.

"Noite na Taverna" é uma publicação dividida em sete partes e escrita sob a ótica de diferentes personagens que se reúnem em uma taverna para compartilhar vinho, vícios e histórias sanguinolentas que envolvem também o abuso de mulheres – nada muito diferente da biografia de muitos doidões dos dias atuais, inclusive. Por isso, a adaptação do Grupo Liquidificador é uma versão diferente, que não apenas condensa elementos gerais da obra em uma nova narrativa como também ironiza atitudes mimadas, violentas e hipócritas de quem coloca máscaras subversivas no próprio egoísmo – e de uma sociedade que nunca ligou muito para a ideia de consentimento, principalmente quando o assunto em questão é a autonomia de uma mulher. "Sou um cara bacana da noite" é como se apresenta o protagonista do espetáculo, antes de sequestrar a sua musa.

Embora a narrativa seja clássica, calcada em cima do conceito de "Jornada do Herói", isso fica escondido por conta da intensa troca de atores. O herói sem nome – ou "heróia", como o grupo gosta de chamar – é interpretado por Karinne, Fernanda Alpino e Marcos Davi, que se revezam também no papel de Maffio, o antagonista, e personagens secundários. Kael Studart faz a mentora Ângela e Iza Cavanellas a musa Eleonora. Durante o processo de pesquisa, o grupo descobriu o queer e rolês relacionados que celebram a diversidade e questionam os rótulos de gênero, o que faz com que eles entrem em cena deixando pra lá o uso "correto" de pronomes femininos e masculinos, e a distinção certinha entre homens e mulheres. "Começamos a construir personagens em cima disso, fora desses padrões de gênero, dessas regras, dessas simbologias binárias de masculino e feminino. Hoje, seis anos depois, está muito mais fácil falar sobre", conta o diretor. A primeira temporada de "Ultra-Romântico" foi em 2012, mas o processo de pesquisa começou em 2010.

O local escolhido como taverna contemporânea foi o subsolo do Teatro Dulcina, no Conic, um point histórico do underground brasiliense que já abrigou festas e experimentações de estilos variados. A "ratoeira" andava meio abandonada e a ocupação promovida pelo "Ultra-Romântico" em 2012, 2013 e agora, em 2016, trouxe fôlego para uma nova fase. Neste ano, o lugar, que estava caindo aos pedaços, recebeu uma reforma e os banheiros foram recauchutados e ampliados. "O espaço tem vida própria, é um cenário muito forte, quase um personagem mesmo. Só que agora você pode ver que pintaram as paredes, né, uma higienização para fazer uma galeria de arte urbana. Apagam a história para colocar uma curadoria, uma coisa mais formalizada", reflete Fernando. As paredes eram cobertas por grafites, rabiscos e outros resquícios espontâneos de acontecimentos que rolaram por ali. "Eu, como DJ da cidade, vejo a performance deles como uma ocupação de um espaço que, por um tempo, foi muito importante para a cidade enquanto celeiro de exposição de artes mais voltadas para a música, e que sempre foi um espaço muito democrático, com diversidade sexual e social", comenta Cris Quizzik, que junto com Fábio Popinigis, forma o duo eletrônico DeltaFoxx. Tal diversidade, inclusive, está presente no próprio Grupo Liquidificador, com membros de diversas cores, corpos, sexualidades e regiões administrativas do Distrito Federal.

Os músicos do DeltaFoxx são parceiros do grupo desde a primeira temporada da peça-festa e se tornaram os DJs residentes da festa nesta edição. Junto com o produtor e DJ Bruno Antun, fazem também a curadoria sonora de todas as quatro noites de balada. Já a trilha sonora da peça é executada ao vivo e foi criação do músico Ricardo Alcântara. Entre diversas ações paralelas, estão o lançamento de um aplicativo para celular chamado Ismarte Ultra, com história em quadrinho, galeria de foto, mixtapes e outros itens relacionados ao universo – que se tornou praticamente transmidiático e conta com a colaboração de artistas de diversas áreas. Em uma Brasília onde a diversão é cada vez mais policiada, os horários de eventos são estritamente controlados e o transporte ineficiente afasta as pessoas umas das outras, todo e qualquer laço entre os fazedores de cultura se torna muito importante na construção de uma rede contra a repressão. "A peça está embasada nisso também, essa coisa de Brasília, tudo acaba cedo, esse sentimento de tédio. O estado está calando o que ele não controla e provendo o divertimento que vem dele mesmo", teoriza Fernando. "O divertimento é subversivo por si próprio, as pessoas se libertam, se encontram, elas criam novas coisas, ideias. Por isso, querem que a diversão seja setorizada, não pode fugir às regras, e se ela transcende demais, preocupa principalmente o poder".

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