A ascensão do black metal de esquerda na Holanda

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A ascensão do black metal de esquerda na Holanda

Em Utrecht, metaleiros com ideias progressistas se unem numa cena de produção musical diversa e robusta.

Mesmo com população de apenas 345.000 habitantes, Utrecht é uma das mais importantes cidades holandesas. É dona da maior estação de trem do país e abriga algumas das melhores universidades da Europa. Com a música não é diferente. O mais conhecido evento musical da região é o festival Le Guess Who?, cujo elenco diverso e bem selecionado é responsável pelo festival ser um dos mais interessantes hoje. Ao longo da última década, uma cena black metal fascinantemente incomum surgiu naqueles palcos e se desenvolveu pelas vielas floridas.

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Trata-se de uma cena cuja música e estética devem mais a nomes esquisitões dos anos 90 como Ved Buens Ende do que aos medalhões do gênero. Numa época em que a política holandesa aparece marcada pela ascensão do populismo de direita do PVV (ou Partido da Liberdade, um partido nacionalista holandês), as eleições municipais de Utrecht em 2018 foram vencidas pela esquerda, na figura do GroenLinks. Ou seja: Utrecht não faz parte da guinada à direita que o país deu e sua cena black metal surpreende ao fugir do lugar-comum.

Bati um papo com N*, do Laster, integrante de um dos principais coletivos da cena. Ele me falou sobre o contraste do cenário atual com o antigo. Ele disse que, antes, por mais que certo coleguismo fosse comum entre músicos da comunidade black metal, na maior parte do tempo tudo “se dava em torno de ódio ou um desgosto em específico. O desgosto por um certo tipo de música, pessoas, raças, posições políticas”. No caso de Utrecht, porém, a cena se constrói com base no “amor mútuo por música alta e barulhenta em geral". "Não se trata mais do que você não gosta, mas sim do que curtimos dentro dos sons que criamos”, concluiu.

Uns dias depois, em um bar de Amsterdã, encontrei com Johan van Hattum, baixista e um dos letristas do Terzij De Horde. No início, a banda logo percebeu que não era nada difícil tocar em Utrecht, onde conheciam boa parte dos produtores, ao contrário do que rolava em outras cidades. Os caras eram considerados black metal demais para os produtores de eventos punks e hardcore demais pra galera do black metal. Isso, de acordo com Johan, os fez dizer “que se foda, vamos fazer shows de bandas que não podem ser categorizadas facilmente”. E assim nasceu a Footprints In The Void, uma série de shows organizados pelo Terzij De Horde e pela casa de shows/estúdio de ensaios local dB’s Studio, onde boa parte das bandas das quais falarei mais adiante deu seus primeiros passos.

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A Footprints In The Void “reuniu todas as excelentes bandas de pegada agressiva, atmosférica e black que alguém gostaria de ver para Utrecht. Nomes como Fell Voices, Ash Borer, Vampillia”, comentou N., o que por si só não representou só a chegada de bandas provocadoras ao longo dos anos, mas sim uma chance de bandas da região poderem tocar junto a elas logo no início. Os eventos também ajudaram a dar o tom da cena, permitindo a seus músicos, nas palavras de N., “a abracerem livremente o caráter progressista do gênero”. Ele falou ainda mais sobre sua visão a respeito da natureza do estilo, comentando que “o black metal começou como um gênero progressista que, por conta do bafafá todo, acabou virando este monstro conservador. Agora, locais como Utrecht retomam este lado progressista que estava escondido há tempo demais”.

Se você já parou pra pensar como o black metal seria se fosse levado adiante pelas bandas mais experimentais de seus primórdios, Utrecht pode te dar uma boa ideia de como as coisas funcionariam. No final das contas, de acordo com Johan, não é uma questão de sonoridade em específico, mas um amor que os une. “Um amor pela vida, pela música, pela descoberta, um amor por melhorar no sentido mais amplo possível", disse. S"e você não conhecesse as pessoas destas bandas e ouvisse estes discos, nunca que acharia que se trata da mesma, nunca que te pareceria um coletivo de amigos e indivíduos que compartilham as mesmas ideias.”

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Terzij De Horde

Quando o Terzij de Horde foi formado, em 2010, ele escreveram algumas frases (ainda no Facebook da banda) que descreve o grupo melhor do que qualquer um poderia: “Isto é paixão enfurecida”. A música, uma mistura de black metal com hardcore e traços de screamo, é intensa e visceral, a mesma descrição valendo para seus shows, intensa a ponto de conquistar o público de um festival de literatura que nunca nem tinha ouvido black metal antes – o que de fato aconteceu no Lost & Found em Muziekgebouw em 2016, com gente do público chegando na banda e dizendo que por mais que não tivessem ideia do que tinha acontecido, “a energia e paixão eram tamanhas que conseguimos nos conectar”, disse Johan.

A razão pela qual acabaram em um evento destes tem a ver com o próprio nome da banda, que pode ser traduzido como “isolado da horda”, tirado de um poema do escritor holandês Hendrik Marsman, cujo vitalismo é uma influência constante nas composições da banda. Em 2015 eles lançaram A Crooked Flower In Cosmos' Flailing Mouth, um livro de poemas de Marsman traduzido para o inglês pela primeira vez por integrantes da banda. A faixa que o acompanha, “Wacht / Lex Barbarorum”, é um dos pontos altos da carreira do Terzij de Horde até então.

Eles lançaram seu primeiro álbum, intitulado Self, no mesmo ano, com boa receptividade por parte de público e crítica. Complexo e conceitualmente ambicioso, o disco não só é um marco para a cena de Utrecht – levando a um show de lançamento no Le Guess Who? daquele ano e uma fantástica apresentação no Roadburn no ano seguinte – mas também provou que os caras conseguem traduzir toda aquela energia fantástica ao vivo em um disco de estúdio. Ao falar com Johan, fica a impressão de que a banda é levada muito a sério, perceptível em seu argumento de que, por trás de tudo, há “um aspecto do nosso ser que crê ser necessário criar e construir, em vez de ser apenas um crítico ou consumidor voraz de coisas. É preciso criar algo, adicionar algo à vida para ser uma pessoa mais completa”.

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Foto do Terzij De Horde por Mirko Meerwaldt

Laster

A história do Laster é de mudanças. Sua primeira demo “Wijgeer & Narreman” é fruto de uma jam entre W. e N. em que este último usou riffs que havia composto para o Northward (projeto de black metal atmosférico que tinha com S., que entrou no Laster após a demo), mas que tinham sido considerados “muito quentes” pelo baterista da banda. Seu primeiro disco De verste verte is hier, compost no formato de trio, incorporou ainda mais elementos de shoegaze e pós-punk ao black metal climático da demo, dando origem ao rótulo “obscure dance music”, em grande parte por conta de sua faixa-título. No ano passado, eles deram um grande passo com o lançamento de Ons vrije fatum, em que são adicionais mais elementos que nos permitem associar seu trabalho às influências de nomes como Ved Buens Ende, Fleurety ou Virus. À época, sua temática também passou por mudanças consideráveis.

Após a temática faustiana de sua demo, o primeiro disco focou em “um tema dualista construído em cima de uma perspectiva bastante pessoal e individualista”, explicou N., destacando como isso se reflete na arte criada pelo guitarrista/vocalista para acompanhar o álbum. Foi lançada a faixa “Vederlicht Verraad”, em um split com a banda Wederganger. Interpretando a faixa literalmente, “é sobre uma garota traçando círculos na neve”. A garota inicialmente dá grande importância a estes círculos, mas com o tempo passa a questionar se é esta história mesmo que ela quer contar e então a música evoca o derretimento do gelo e a chegada da primavera. Como explicado por N., “é como se esquentássemos as coisas um pouco, ficando menos frios e individualistas”. Já com Ons vrije fatum, o foco era “no indivíduo em relação aos que estão ao seu redor. Não olhamos mais para dentro e sim para fora”.

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Ons vrije fatum é um disco de black metal que lida com temas de “amor, amizade, pressão social e ansiedade”. Ele atinge seu auge na segunda metade, que ilustra a entidade idiossincrática que o Laster se tornou. “Helemaal naar huis”, por exemplo, usa uma sonoridade black metal estilo Crzal como base, inclui uma excelente passagem de saxofone, partes faladas poéticas, tudo isso enquanto conta uma história de ansiedade com um toque holandês distinto ao mencionar bicicletas roubadas. As últimas duas faixas do disco “De roes na” e “Er wordt op mij gewacht” contam histórias pessoais com uma pegada de cinema induzida pela invocação clara do canal e torre de Utrecht. Mas, acima disso tudo, o disco inclui algumas das melhores canções desta região marginal do black metal lançadas no ano passado.

Foto do Laster por Daan Paans

Verwoed

Quando começa a parecer que Utrecht só rende sonoridades black metal cheia de influências externas, o Verwoed mostra que esse não é bem o caso. Este projeto solo de Erik B. fez um barulho e tanto em 2016 com o lançamento de seu EP de estreia Bodemloos, que teve um impacto tão grande que seu primeiro show, organizado pelo pessoal da Footprints In The Void no dB’s, que esgotou já na pré-venda. O mesmo lugar seria o palco do show de estreia (também esgotado) do Black Cilice, mais uma vez organizado pela Footprints, desta vez em parceria com a produtora Tenebrous Haze.

Menos “diferentona” que as outras bandas da lista, Verwoed mostra em Bodemloos todo um cuidado na criação de um black metal melódico e sufocante. Quando pergunto a Johan o que mais lhe impressiona no disco, ele diz que “é o reflexo mais próximo de Erik que já vi. Isso não significa que ele é uma pessoa fria e distante, mas alguém que pensa muito, que guarda muito pra si”. Com o próximo disco prometido para um futuro não-tão-distante assim, as apresentações do Verwoed colhem elogios por sua coesão, algo que estará presente na próxima edição do Roadburn em que se apresentarão. Para seu segundo show no festival, eles foram escolhidos como destaque “Roadburn presents”, os sucessores do Laster.

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Black Decades

Por mais que o Black Decades só esteja na ativa há seis anos, seus instrumentistas já tocam juntos em diversos projetos (como o Cathode) há uns 20 anos em outros gêneros que não o black metal. Em 2016, a banda lançou This Hideous Life, uma furiosa declaração de blackened crust que atropela do início ao fim. No ano passado, seu primeiro vocalista Mark Van de Maat saiu da banda e foi substituído por Johan do Terzij de Horde, com quem a banda compõe desde então. Vi os caras abrindo um show do Alkerdeel com a nova formação há um mê se o que me impressionou mais foi a pegada death metal das novas músicas, o que Johan confirma ao falar do novo disco, adicionando ainda que “queremos ter mais espaço pra respirar, pros riffs poderem ser riffs mesmo”.

Quando o questiono sobre como é escrever letras pro Black Decades e Terzij De Horde, ele destaca que “o Black Decades me permite ser mais direto com minha raiva e emoções”. Alinhadas com a influência crust da banda, as letras tratam de temas políticos, com o disco vindouro abordando temas como “direitos dos animais e necessidade ou falta de fronteiras”, e mesmo quando se fala de temas mais pessoais tudo tem a ver com “a luta do cotidiano, destruição e superar adversidades". "Por um lado são temas bem comuns do punk, e por outro, é como a vida é. Por que não falar disso?”

Project Nefast

Quando descobri a banda, ela se chamava Nefast e a faixa em questão, “Discomfort”, me deixou com sentimentos meio confusos. Em meio a uma série de influências interessantes, ficava claro que a banda ainda buscava sua identidade artística. No final, o que faltava mesmo era um pouco de drone, não do tipo Sunn O))), mas na pegada do Gnod. Esse direcionamento já deu seus primeiros sinais no segundo disco Dogma e foi explorado adequadamente em SEX MONEY POWER lançado em 2017, cuja recepção foi tão boa que os caras acabaram sendo convidados pro Roadburn. Seu disco mais recente também é importante para a história da cena local.

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No evento de lançamento de SEX MONEY POWER, o Project Nefast não só tocou o disco como também apresentou seu Project Nefast Drone Ensemble, em que o trio conduzia vinte músicos de Utrecht e demais regiões do país. Johan e N. tocaram no conjunto, com este último afirmando que a experiência foi “linda; uma celebração da amizade, uma celebração do som” e que todos que tocaram ali “ficaram com a impressão esquisita de que haviam participado de algo realmente único, especial e decididamente local. Aquele momento foi, pra mim, uma das muitas confirmações de que temos algo de especial rolando por aqui, no sentido dessa caracterização do black metal. Todos conhecemos o gênero, passamos por isso e aquilo e continuamos fazendo isso. Mas a combinação deste gênero frio e cruel e o que rolou com a apresentação em grupo, bem como o que vem acontecendo em Utrecht, é algo singular que nunca vi em nenhum outro lugar antes”.

Grey Aura

Tenha em mente a história de um homem saindo da Holanda para visitar a terra natal de sua família, a Espanha, para ver as obras de El Greco na Catedral de Toledo. Imagine agora que duas pessoas resolveram escrever um romance com esta premissa e quatro discos de black metal acompanham a obra. Foi isso que o Grey Aura começou em 2017 com o lançamento de 1: Gelige, traumatische zielsverrukking.

Independente de sua opinião sobre o ambicioso projeto, sua primeira parte foi um sucesso. De alguma forma o disco se mantém coeso desde os vocais de flamenco presentes em “Martinete” e ao longo de 20 minutos de black metal experimental que incluem trombones, vocalistas convidados de diversos estilos, sons de flamenco no violão e samples falados feitos especialmente para o disco. É assustador pensar que os caras responsáveis pelo conceito e instrumentos fora bateria e trombone tenham apenas 22 e 23 anos.

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Verval

Além do dB’s, certamente o local mais importante na cena de Utrecht é o Catacomben, estúdio de W., baterista do Laster e de onde saíram todos os discos da banda até então (o próximo lançamento deve romper com esta tradição). Lá também foram gravados ou produzidos álbuns de Project Nefast, Grafjammer e diversos projetos de W., como o finado White Oak e seu projeto solo Willoos, que começou como black metal depressivo e acabou incluindo elementos de pós-rock e música eletrônica em suas composições.

O lançamento mais recente do estúdio é “Wederkeer”, estreia do mais novo projeto do baterista/produtor, Verval, onde retoma a parceria com R. Schmidt, que também tocou no White Oak. O disco foi lançado no começo deste ano pelo selo canadense Tour de Garde e conta com elementos neoclássicos junto ao black metal atmosférico que caracteriza a maior parte do trabalho de W. fora do Laster. O disco conta com a participação de Galgenvot nos vocais, com quem W. toca no Nevel, uma banda de black metal atmosférico cujo álbum de estreia Teloorgang saiu em 2014. No final deste mês, o guitarrista, baixista e violoncelista do Verval, R. Schmidt, lançará outro projeto chamado Wesenville (com o baterista do Wrang, Valr), que toca uma versão mais direta do black metal em relação aos seus outros projetos. Pensa num Svartidauði com produção mais limpa e dá pra ter uma ideia.

Cer

Antes neste texto falei sobre quando o Black Cilice tocou seu primeiro show em um dB’s lotado, acompanhado pelos holandeses Folteraar, Faceless Entity e Warden. Por mais que o evento tenha sido organizado em partes pela Footprints In The Void na casa principal, a ideia original era que fosse um ensaio aberto promovido pela Tenebrous Haze. Estes eventos intimistas costumavam ocorrer com frequência, muitas vezes organizados pela galera próxima do Violence Action. Era esse o esquema pra sacar o que rolava de “underground do underground”, como dito por Johan. Era uma boa pra ver bandas do selo holandês extremamente prolífico The Throat, especializado em raw black metal.

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Um dos novos integrantes do selo chama-se Cer, uma banda de um homem só de Utrecht cujo primeiro disco Void Emission foi lançado em 2017, com aquela pegada lo-fi já esperada da gravadora. O som pode ser descrito como uma versão ainda mais torta do Darkspace. O compositor, R.v.R também tem outros projetos, com destaque para o Seer’s Fire, onde o black metal é deixado de lado em prol de uma sonoridade sintetizada com um tipo de fantasia épica como pano de fundo.

Kaffaljidhma

No amplo catálogo da The Throat temos outra excelente banda de black metal de Utrecht, a Kaffaljidhma. Caso você esbarre com a primeira demo deles ,“II”, e não seja um grande fã de black metal mais barulhento (“IV”, seu último lançamento, é muito mais acessível), talvez o nome da banda seja mais fácil de falar do que o som de ouvir. Se por um lado, black metal atmosférico de gravação tosca é o seu lance, é uma boa acompanhar o que o Kaffaljidhma vem fazendo. Nos últimos dois anos, este projeto solo do artista multidisciplinar T.J. lançou quatro demos de black metal cru, climático e com temas cósmicos, o que fica claro nos títulos das músicas e artes minimalistas.

O Kaffaljidhma também pode funcionar como portal para a série de outros projetos de seu criador, que vão do drone ao synthpop, passando, é claro, pelo black metal. Dentre os destaques deste último, temos a atmosfera melódica e quase que relaxante de “Primitive Casket”, EP de estreia do Olxane, outro de seus projetos, e na outra ponta do espectro, Mirre, um trio de black metal cru e barulhento que faz todas as outras bandas citadas neste artigo parecerem bem limpinhas.

*Alguns nomes apresentados aqui constam apenas como iniciais para proteger a privacidade de cada artista.

Luís Pires é redator freelancer e físico, você pode encontrá-lo (às vezes) pelo Twitter.

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