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Identidade

Por dentro do grupo de estudo da Bíblia para góticos, punks e metaleiros

Provei por algumas semanas como é o clube que discute a religião de forma discretamente revolucionária.
Billie Sylvian and the author  by Ashton Hertz
Billie Sylvian (esquerda) com o autor. Foto: Ashton Hertz.

“Jesus, você é a pessoa alternativa definitiva. Você é um alienígena criativo que nos fez à sua imagem”, diz a inglesa Billie Sylvian, fundadora da irmandade Asylum. “Obrigada por se compartilhar conosco.”

Eu estava sentado numa mesa de uma sacristia do século 18 no centro de Londres, na Inglaterra, cercado por góticos, punks e metaleiros. Discutimos vida, morte e fé, comendo salgadinhos e biscoitos. Metal industrial cristão – da banda Circle of Dust – tocava ao fundo num volume baixo enquanto eu passava pela minha cópia da New Age Bible.

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A Asylum é uma organização cristã de caridade registrada especialmente formada para a comunidade alternativa de Londres. O cartaz promocional deles, colado na Denmark Street no Soho, diz: “Irmandade Asylum. Compartilhando o Amor de Cristo com Góticos, Metaleiros, Punks, etc”. Eles realizam um estudo da Bíblia dominical, uma festa noturna mensal (“The Crypt”) especializada em rock, metal e industrial cristão, e “festas mensais de louvor”, onde os membros são convidados a compartilhar itens ou músicas que os ajudam em sua adoração.

Billie Sylvian

Billie Sylvian. Foto: Ashton Hertz

“Comecei a Asylum porque, pra mim, parecia algo que Deus realmente queria que acontecesse”, Billie explicou depois da reunião da Asylum, enquanto tomava uma xícara de chá num café lotado. “Senti que Jesus estava me pedindo para alcançar essas pessoas.”

A Asylum começou como um pequeno grupo de góticos crentes entregando panfletos na frente de shows e clubes alternativos em Londres, e cresceu a partir disso. “Os panfletos tinham mensagens como 'Jesus Morreu Pelos Punks & Metaleiros Também' e 'Jesus Ama os Góticos'”, explica Billie. “A resposta das pessoas era se interessar e perguntar um pouco mais sobre a gente, ou completa hostilidade, com um pessoal rasgando os panfletos na nossa cara. Mas a maioria das pessoas se interessava.”

Em seu site, a Asylum diz: “Sabemos que muita gente em subculturas foi prejudicada por ações insensíveis e hipócritas de alguns cristãos. Estamos fazendo todo o possível para desfazer alguns desses danos (mesmo cometendo erros porque somos humanos!) e esperamos, com a sua ajuda, conseguir”. Quando pergunto a Billie o que eles querem dizer com isso, ela diz: “Deus não está interessado em roupas, ele está interessado no coração das pessoas”.

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No final dos anos 1990, Billie e amigos reuniram um grupo de pessoas com a mesma mentalidade, e a Asylum começou a realizar encontros semanais na The Intrepid Fox, um bar de rock agora fechado do Soho.

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O cartaz promocional da Irmandade Asylum. Foto pelo autor.

Alguns membros da irmandade pertenciam a grupos religiosos diferentes antes de encontrarem a Asylum. Craig, um condutor de trem originalmente da África do Sul, se abriu comigo sobre seu passado como satanista. “Foi um período muito sombrio da minha vida que já tentei bloquear”, ele explicou, enquanto esperávamos nossos pedidos num restaurante mexicano. “Foi uma parte muito horrível e assustadora da minha vida, mas agora minha vida é o oposto.”

Craig continuou explicando que fez um pacto de sangue – assinando um contrato com o próprio sangue – quando era adolescente. “A coisa foi ficando cada vez pior, até um ponto em que eu não conseguia mais dormir porque estava com muito medo.” O socorro veio na forma de uma fita cassete de death metal cristão que um amigo o enganou para ouvir. “Eu queria matar ele – 'Como você ousa me enganar assim?' – mas alguma coisa aconteceu… Eu precisava tomar uma decisão.”

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A mesa na sacristia. Foto pelo autor.

Depois de conhecer vários membros da Asylum, ficou claro que muitos têm crenças diferentes uns dos outros. Alguns são religiosos, outros não, o que – como vi pessoalmente – ajuda a gerar discussões muito ricas.

“Num período muito ruim da minha vida, meu associado, Adam – que conheci através do RPG – me apresentou a Asylum”, explicou Paul numa biblioteca em Borehamwood, Inglaterra. Paul já esteve no exército, trabalha para o sistema de saúde público e frequenta os encontros da Asylum há anos. Agora ele se identifica como um “gótico agnóstico”. Perguntei o que mantém o interesse dele no grupo vivo, se ele não estava lá para louvar a Deus. “As ideias e abertura deles”, ele respondeu.

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Conversamos por duas horas e Paul se abriu sobre suas lutas com a depressão, solidão e discriminação que ele encara na área onde mora. Enquanto ele me acompanhava até a estação de trem, fiquei chocado em testemunhar pessoas locais o xingando na rua pelo jeito como ele estava vestido – e não eram roupas góticas particularmente estranhas. Paul ficou em silêncio e continuou andando. Perguntei como ele se sentia. Depois de uma pausa, ele respondeu: “Triste e desconfortável”.

The Big Man himself, Paul

Paul. Foto: Ashton Hertz

Outros, como Paul, participam do estudo bíblico semanal apesar de não se identificarem como cristãos. “Vejo isso mais como uma coisa social”, disse Julian, um membro regular do Asylum que geralmente usa uma bandana e cavanhaque. “Me vejo como uma pessoa que tem valores muito cristãos sem ser um cristão.” Quando criança, ele foi coroinha, mas agora – chegando aos 60 – ele se identifica mais como pagão.

Jon Horne é outro membro original da Asylum. Depois de chegar em Londres em 1992 para estudar teologia, no tempo livre ele publicava um fanzine sobre death metal, grindcore e industrial cristão. Quando conheceu Billie, eles juntaram forças. “Já estávamos queimados pela igreja mainstream de um jeito ou de outro”, Jon me explicou tomando uma cerveja numa tarde de sábado. “É basicamente farisaísmo, onde as coisas são distorcidas ao ponto do moralismo.” Ele continuou explicando que não frequenta a igreja fora as reuniões da Asylum, comentando que o estilo de música lá “não faz muito meu estilo”.

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Esquerda: Jon Horne na 'Kerrang' em 1994. Direita: Jon agora. Foto: Ashton Hertz.

Como os outros membros, Jon foi extremamente direto, explicando que ele e a esposa perderam os três filhos em 2015. O primeiro, Daniel, contraiu meningite B aos 15 meses de idade e faleceu em menos de 12 horas depois dos primeiros sintomas. Mais tarde no mesmo ano, depois que a esposa dele engravidou de novo, a bolsa de água dela se rompeu aos 5 meses, e os gêmeos que ela estava esperando nasceram mortos. Perguntei como essas tragédias se encaixavam na fé e visão de mundo dele.

“Obviamente, depois disso tínhamos muita coisa pra dizer a Deus… Mas a fé cristã tem um lugar para isso. Um lugar para lamentar e lutar com Deus. Não é só uma questão de piedade e fazer a coisa certa; isso permite uma… uma coisa mais terrena”, ele explicou, olhando pela janela. “Afinal de contas, todas essas bandas chocantes de metal perdem o efeito porque não são nada comparadas com o horror real.”

Archangel De La Valette

Archangel De La Vallette. Foto: Ashton Hertz

Archangel De La Vallette – um dentista que faz dentes para a “comunidade vampira” de Londres, além de seu trabalho normal – frequenta a irmandade desde o começo dos anos 2000, e personificou a natureza receptiva da Asylum quando me convidou para seu apartamento uma noite de inverno, para comer pizza e tomar champanhe.

“Fiquei muito feliz em me afastar do Papa porque sinto que ele está sequestrando o cristianismo”, ele disse sobre sua juventude como católico. “Eu não conhecia nenhum cristão na cena alternativa até encontrar a Asylum. Quando cheguei lá, tínhamos muitos pontos de vista em comum e compartilhávamos nossa fé, o que foi muito legal.”

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Uma das músicas tocadas nas “festas de louvor” mensais da Asylum.

Para veteranos como Jon e Billie, a Asylum reafirma sua fé e os ajuda em sua adoração, já que eles podem explorar sua espiritualidade com pessoas com a mesma mentalidade. Para outros, como Paul e Julian, a irmandade parece proporcionar um espaço seguro e amigável. Um lugar onde eles podem discutir a vida num nível mais profundo sem medo de julgamento ou ridículo. Com tanta incerteza e caos no mundo ateu, faz sentido que as pessoas se sintam atraídas por grupos assim, procurando respostas que não podem ser encontradas em outro lugar. Sei porque a mesma compulsão foi o que me levou a bater na porta da Asylum.

“A Asylum está aberta para toda a comunidade alternativa e diz 'Se você acredita em Deus, Alá ou se é uma bruxa, ou mesmo se não acredita em nada, não importa'”, explicou Paul. “Estamos aqui para discutir e ouvir, e é isso que torna a Asylum única.”

Durante meu tempo com a irmandade, senti que eu era parte de algo discretamente revolucionário. Um grupo representando conexão e abertura que parecia místico e ainda muito humano. Talvez eu me sinta assim porque experimentei a religião de dentro em vez de observar curiosamente de longe. O grupo Asylum reenquadra a religião e a espiritualidade, tornando isso mais acessível e inclusivo que qualquer igreja que já vi antes.

Matéria originalmente publicada pela VICE Reino Unido.

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