Está na hora de perdoarmos o Eminem

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Está na hora de perdoarmos o Eminem

Já passou a época de “The Real Slim Shady”, mas o set de Eminem no Coachella nos fez lembrar de uma distopia ainda melhor.

Matéria originalmente publicada no Noisey US.

O antigo apresentador do Man Show está no palco principal do Coachella, por meio de vídeo, para defender Eminem de uma internet que ele não compreende. Há cerca de três minutos, Eminem anunciou às 100.000 pessoas que não mais se vestem como ele que havia finalmente recuperado seu Twitter. O provável é que você nem tenha percebido.

“Não sou muito bom nisso ainda”, comenta. Seus últimos quatro tuítes contam com duas selfies desfocadas irônicas, o anúncio de uma banquinha de macarrão “em frente ao palco Do-Lab” seguido da hashtag #MOMSPAGHETTI, referência a um meme envolvendo o rapper tempos atrás e um aplicativo de realidade aumentada seu, do qual certamente ele manja muito e poderá te explicar do que se trata.

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Agora, ele e seu hype-man, Mr. Porter, leem uma lista das “muitas coisas horríveis que já foram tuitadas sobre Eminem”.

“Fato: ninguém presta atenção em você desde 2003.”

O público boceja e vaia, ficando ao lado do homem que foi o centro gravitacional da cultura pop de 1999 a 2003. Eminem dispara: “Não fico puto com isso. Ele meio que tem um argumento aí”. Os homens no palco então resmungam algo sobre ser hackeado. Eminem quebra a quarta parede.

“Posso levar vocês de volta a uma época em que eu mandava bem pra caralho mesmo?”

Ele pode contar com a sua atenção? Esta pergunta pode ter sido redundante em algum momento da história, mas estamos em 2018. Pense no elenco de “The Real Slim Shady”, a máquina do tempo na qual Eminem nos coloca dentro pra lembrar da época em que “o mundo todo pirava com o bug do milênio”. Tom Green está fazendo seu stand-up no Harrah’s; seu último grande papel foi como “Cuphead” em um desenho do Cartoon Network sobre um coelho vampiro. Há rumores de que Will Smith converteu-se à Cientologia e hoje ele passa o tempo zoando o Instagram de seu filho. Britney Spears está de rolo com um Dothraki de 24 anos e tem seus bens administrados pelo pai. Christina Aguilera é jurada de um programa de calouros na TV. O ponto alto do milênio de Carson Daly foi contratar Roc Marciano. Fred Durst vende raspadinha no drive-in do Sonic em Pensacola, Flórida. Dr. Dre não está mais trancado no porão de Eminem.

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Eminem sobreviveu a todos. Mais ou menos. Revival, lançado em dezembro de 2017, foi seu oitavo disco consecutivo a ficar em primeiro lugar nas paradas da Billboard, ainda que tenha recebido péssimas críticas e não tenha um single de destaque. Dito isso: entre os rappers surgidos ao final dos anos 90, Eminem é o único com força o suficiente para ser headliner em um grande festival duas décadas depois. É noite de domingo, todos estão meio mortos, mas se prestar atenção no que rolava ali, eram legítimos clássicos do rap de antes do escândalo de Abu Ghraib.

É difícil reavaliar Eminem porque nossa capacidade de se chocar meio que foi pro saco. Se Slim Shady já foi o pesadelo de conservadores e defensores da moral e bons costumes, bem, o presidente norte americano é um mentiroso patológico que já foi casado três vezes e (supostamente) transou com uma atriz pornô sem usar camisinha em um quarto de hotel que custava 2.000 dólares a diária, muito provavelmente comprando o silêncio desta mesma atriz com grana de sua campanha. Monica Lewinsky até parece uma carola, pensando bem.

Tanto no campo social quanto online, a ironia quase séria e exagerada que Eminem empregara pra “ultrajar os moralistas” tornou-se o método comum de se comunicar. O rapper já trollava antes mesmo do termo fazer parte do nosso cotidiano, conscientemente provocativo, deliberadamente irresponsável e ocasionalmente sem um pingo de graça. Mas rolava um certo dissabor direcionado à tradição, um racismo porcamente escondido e uma falsidade tão descarada que lhe permitia criar uma conexão com adolescentes quase como um Holden Caulfied do rap, é o tipo de coisa que adolescentes fazem intuitivamente.

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Enquanto instinto natural e arma comercial, Eminem tinha um entendimento brilhante de como afetar seus inimigos e forçá-los ao constrangimento. Cabe lembrar a crítica de Sartre aos antisemitas: “eles sabem que seus comentários de nada valem e estão abertos à contestação… Mas eles estão se divertindo… Eles adoram agir de má-fé, visto que não buscam persuadir através de argumentos racionais, mas sim intimidar e desconcertar”. Estas são as mesmas táticas utilizadas pela alt-right atualmente. Mas no caso de Eminem, havia uma certa retidão que acabava por equilibrar o que era obviamente repugnante.

Após cerca de dez minutos de seu set de quase duas horas, englobando toda a sua carreira, Eminem começou a rimar sobre estuprar sua mãe e é claro que nossos reflexos atuais acabam por entrar em ação: felizmente, a linguagem usada soa datada na melhor das hipóteses, assustadora na pior delas. Mas no próximo verso de “Kill You” Eminem volta com tudo pra assumir outro personagem, o de crítico, comentando “Ah, agora ele estupra a mãe, abusa de uma prostituta, cheira pó e o colocamos na capa da Rolling Stone”.

Em 2018 tudo soa desprezível. Já em 2000, uma época mais pacífica, por assim dizer, era um ataque ao conservadorismo com um quê cartunesco; hoje em dia é complicado lidar levando em conta o número alarmante de estrelas do rap em ascensão às voltas com acusações de estupro, assédio e violência contra a mulher. A música ainda nos deixa desconfortáveis, mas de outra forma. As prioridades mudam quando nos vemos às voltas com uma cobra na Casa Branca, o niilismo tomando conta da política e uma esperada reação aos séculos de abusos sexuais. É difícil ouvir Eminem porque não há como deixarmos de nos questionar o custo que isso tem.

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“White America” explode nos falantes. Ao fundo, uma bandeira americana que nos remete a uma arte agourenta de Jasper Johns. Um dos grandes dons de Eminem era ter noção de si e da responsabilidade para com a cultura que o havia aceitado como era. Ser branco no mundo do hip-hop é aceitar o fato de que não importa o quão descolado você seja, o quanto tenha aprendido, isso é cultura negra e você nunca passará de um mero convidado. Há momentos em que você é bem-vindo e em outros vai parecer Lil Dicky chegando de penetra no meio do rolê. Para Lil Dicky era tudo piada, mas pra Eminem, era sua vida.

Não havia parado pra ouvir “White America” nesta década, mas dentro de um novo contexto, ela parece atrelada a forças centrífugas semelhantes, mesmo que um pouco diferentes. Se o racismo tem sido uma mancha persistente no sonho americano desde a criação do país, as coisas parecem ter melhorado muito ao longo da última década.

A subversão de Eminem foi de tudo menos sutil, o que no final acabou por torná-la mais impactante. Ele não estava só engajando o mundo do rap e sim atuando como um cavalo de troia que mirava os subúrbios, as hordas da MTV e suas boybands, Britney e Eminem ali, perseguido por um governo que parecia querer esmagá-lo como uma mosca oxigenada.

“White America!
Erica loves my shit I go to T-R-L, look how many hugs I get”

Desde lá o TRL morreu, renasceu e foi completamente ignorado. O clipe musical pereceu e retornou nas telinhas, mas a premissa básica de Eminem permanece a mesma. Rappers brancos nunca ganharam tanto destaque quanto em 2018, mas nenhum deles chegou perto das habilidades de Eminem, sua capacidade de mitigar críticas de apropriação cultural ou fluência em ambos os spectros. Eminem era uma ponte, que parece ter sido encoberta por uma década de babaquice, argumento que se repete aos montes na mitologia de 8 Mile, que serviu como uma espécie de Rocky versão rapper e uma penitência por seus pecados do passado.

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Diante de público em grande parte branco e endinheirado com camisas da Queensbridge e cocares (pois é), Eminem rimava sobre como ele teria vendido só metade dos ingressos quase fosse negro. Ele se valeu do racismo estrutural que o permitiu crescer e então mirou contra ele. Não foi uma questão de cinismo de sua parte, mas sim de sorte que o levou a Dr. Dre, o que lhe conferiu certa invulnerabilidade, a qual o rapper lutaria sem medir esforços para obter, fosse outra sua situação.

O Slim Shady de “Just Don’t Give A Fuck” foi quem anunciou o estouro de Eminem. Metade do público presente nem havia nascido quando o rapper lançou seu EP pré-Dre em 1997. A outra metade parecia saber as letras inteirinhas, pirando geral. No Coachella, Eminem não mandou um salve pro The Outsidaz, mas gostaria de acreditar que nem precisaria, pois estava implícito.

Se os Beastie Boys surgiram como o arquétipo do branco entusiasta do hip-hop, fato é que eles sempre existiram nos dois mundos: eram do rolê artístico de Nova York com um passado hardcoreano e uma quedinha por passar trotes. O 3rd Bass deixava aquela impressão de que queriam MUITO ser lembrados como os raros “caras bons”. Já no caso de Eminem, foi natural: nenhum outro meio tinha como abrigar sua acidez e raiva, ele era parte do hip-hop porque não teria como ser diferente. O cara apareceu ali no Grammy com uma touca típica dos rappers negros e ninguém falou porra nenhuma.

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Claro que ele tocou outros sons dos quais nem precisamos falar, todos aqueles crossovers pop de fim de carreira que a internet usou como lenha por mais de uma década. Ele cantou junto de Skylar Grey e você pode ver o setlist aqui. A galera saía correndo dos banheiros pra ouvir “Love the Way You Lie”. Durante certa noite de 2010 que fiquei andando numa limusine branca velha, entornando uma garrafa de Jack Daniels com uma aspirante a estrela pop que referia-se à si mesma como Meg Ryan; ela dublou duas baladas diante de pós-adolescentes de cabelo verde, cobertos em couro em uma loja de departamentos podre de Hollywood que havia sido transformada num inferninho estilo Wild Style. Tinha um coelho correndo solto o tempo inteiro.

De alguma forma acabei indo parar numa festa de Solstício de Verão Sueco em Beachwood Canyon, onde prontamente desmaiei em uma das camas. Acordei às 6h30, vestido, e “Love the Way You Lie” tocava no repeat há três horas. Cocaína por toda parte. Pouco depois, uma das garotas suecas presentes saiu do país, parou com tudo e virou professora de ioga numa cidadezinha ao norte da Escandinávia; a última vez que ouvi falar dela foi alguém comentando que a coitada não conseguiu ingressos para o Burning Man em Israel. Não tenho provas concretas, mas é certeza que ela também curte “Not Afraid”, o problema é que já não sei se o próprio Eminem curte.

Ao longo da última década, Eminem parece pender para um modelo antigo que não mais existe. Ele poderia rimar por cima de loops velhos de Black Moon e seu público-alvo ainda piraria. Em vez disso, ele persegue o fantasma da MTV passada em meio à buraqueiras e tretas que teve com estrelas pop de outrora. Tudo bem, o cara já fez o suficiente para merecer o respeito e dignidade que muitas vezes esquecemos diante das falhas de hoje, aquelas mesmas que criticamos pra ganhar uns pontinhos nas redes sociais; em sua melhor forma, Eminem ainda tem o brilhantismo técnico impressionante de tempos atrás, o mesmo que te faz pensar que o cara ainda tem uma chance. O que ele precisa fazer mesmo é virar pro Alchemist e falar o que já deveria ter falado uma década antes: vamos fazer um disco.

Claro que nada disso importava na noite de domingo. Não foi uma coroação muito menos uma confirmação, mas um lembrete de tempos melhores que já não cabem na distopia atual. 50 Cent participou em “Patiently Waiting”, “I Get Money” e “In Da Club”. Ele parecia cansado e meio rouco, mas rolava uma alegria palpável no ar. Músicas como estas viraram hinos de casamentos e festividades em geral. Pra completar, Dre apareceu pra cantar “Still D.R.E.,” “Forgot About Dre”, “Nuthin But a G Thing” e “California Love”.

Canções como estas são quase que sagradas para a Costa Oeste, já fazem parte do cenário como suas famosas palmeiras. O bis ficou por conta de “Lose Yourself”, unindo o novo e o antigo. A mitologia de Eminem nunca evoluiu muito depoios dali, o que de certa forma lhe confere uma espécie de charme encapsulado no tempo, datado, mas atemporal. Eminem integra a tradição, um traço anacrônico de tempos mais simples. É uma pena que tenhamos aprendidos as lições erradas.

Jeff Weiss é um escritor residente em Los Angeles e você pode seguí-lo no Twitter.

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