Na semana passada, quando o Djonga revelou a capa d' O Menino que Queria Ser Deus, as reações foram diversas: vi até uma galera que achou muito foda (foi o meu caso), mas também li muitos comentários do pessoal dizendo que a capa era cafona ou estava mal diagramada (fora os que estavam reclamando por ele estar pisando em um cara branco. Mas né, desses a gente nem fala). Não que ela não fosse: o rapper e a modelo que posou com ele parecem flutuar pra fora da imagem e foram colocados como se estivessem descolados do homem abaixo deles, como se os dois tivessem sido recortados de fotos diferentes; o fundo de nuvens atrás é abertamente falso e uma fonte brega escreve o título do álbum acima de todos os elementos. E era pra ser assim, mesmo.A primeira coisa que eu pensei quando vi essa capa do Djonga foi a capa de Feel Me Before They Kill Me, do Tommy Wright III (acima). Talvez seja só pelo fundo de céu azul, mas acho que a disposição dos elementos vêm de inspirações parecidas. A fonte em relevo e curvada acima, as fotos copiadas e coladas sem qualquer preocupação com a diagramação. Não sei se a cara de mala também é uma inspiração, mas me parece provável.Um dos inúmeros trampos do Tommy Wright, rapper de Memphis, durante os anos 90 e 2000, Feel Me foi lançado em 1998, bem quando o rap do sul dos Estados Unidos estava prestes a estourar no mainstream. Mas a história até aí foi longa, e as capas de montagens aparentemente toscas e quase absurdas, como essa do Djonga, refletiu todo o processo de ascensão e a história desses rappers.Boa parte dessas capas foi feita pela Pen & Pixel, companhia fundada em 1992 por dois irmãos em Houston, no Texas, e que inicialmente consistia em uma mesa de jantar e um computador. Segundo uma matéria publicada no New York Times em 2016, Aaron e Shawn Brauch trabalhavam no selo Rap-A-Lot no início da década, mas, com o excesso de demanda de capas, tiveram que abrir sua própria empresa. E que demanda — o blog FFM713, que se ocupou de compilar essas capas por oito anos, acumula mais de 700 posts.Parece difícil imaginar num 2018 em que a estética do trap de Atlanta domina o mainstream, mas nesse começo da década de 90, o rap do sul dos Estados Unidos (principalmente de Memphis e Houston) corria no underground do underground, quando comparado aos grandes que conseguiam contratos com gravadoras em Los Angeles e Nova York. As capas da Pen & Pixel eram o reflexo visual estético mais claro disso e seguiam dois caminhos.O primeiro era o de retratar a violência cantada naqueles versos, como em Deadly Verses do Gangsta Pat (1995) e Volume 8: Gates of Hell do Juicy J (1993): as fontes de sangue escorrendo, fogo se alastrando e raios descendo capturavam o estado de violência, pobreza e morte em que aquela região dos Estados Unidos se encontrava durante aquelas décadas.O segundo era o de justamente tentar se imaginar pra além desse lado gangsta e violento com o assunto que os rappers mais curtem desde essa época: grana. Mansões, carros, jóias, mulheres; não eram raras montagens de taças e garrafas de champanhes. A única regra da Pen & Pixel, segundo essa matéria publicada no Noisey gringo em 2013, é que ninguém poderia ser crucificado numa capa; fora isso, suas preocupações eram mais políticas e menos de gosto. Os rappers podiam se colocar na situação que quisessem, seja ela com ursos milionários ou dentro de relógios de ouro.Por essas luxuosidades, a Pen & Pixel é creditada como uma das criadoras e disseminadoras do termo "bling" — que mais tarde batizou a bling era, a era da ostentação do hip hop, com 50 Cent, Lil Wayne e companhia. Um artigo de 2004 da Houston Press fala: "Mesmo antes que a palavra fosse de uso comum, as capas de Pen & Pixel definiam bling: letras quadradas que se assemelhavam a ouro cheio de diamantes; Rolls-Royces, Bentleys e Lexuses; mansões; dólares; e os rappers vestidos de jóias e sorrindo enquanto falavam no telefone. As capas Pen & Pixel criaram a necessidade de uma palavra para descrevê-las, e bling era ela."Com o passar dos anos, as gravadoras do sul foram surgindo e ficando cada vez maiores. A No Limit Records, de New Orleans, lançava discos de rappers como Master P e Mystikal já no meio da década; enquanto enquanto a Prophet Entertainment, de Atlanta, pode se orgulhar de carregar em seu catálogo os primeiros lançamentos de Three 6 Mafia e Gangsta Blac.A estética da Pen & Pixel deixou de ser uma afronta ao mainstream pra se tornar o próprio mainstream, fato que se consolidou simbolicamente em 1998, quanto um rapper grande de L.A. — ele mesmo, o primeiro e único Snoop Dogg — lançou Da Game Is to Be Sold, Not to Be Told pela No Limit. Daí pra frente, o resto sobre como o sul se tornou o principal ponto de referência para o rap mainstream é história.Me baseando puramente no que eu conheço de Djonga como artista e no que ouvi em O Menino que Queria Ser Deus, é possível que a capa do disco tenha se inspirado nos mesmos sentimentos da galera do rap do sul durante os anos 90 e 2000. Como ele mesmo explicou no post de Instagram que mostrou a capa ao mundo, "A verdade é que desde pequeno eu sabia onde eu queria chegar, na verdade, desde pequeno mesmo sem até hoje saber o que é isso, tudo que eu quis e tudo que eu quero é ser Deus."Se colocando flutuando no céu, ao lado de uma modelo vestida de branco, sendo coberto por uma fonte angelical e pisando num homem branco, Djonga nos passa o mesmo recado que os rappers de Atlanta, Memphis, New Orleans e Houston nos passaram durante décadas: eu ainda não cheguei onde quero, mas ai de vocês quando eu chegar.
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