A castração química não é o melhor caminho para evitar estupros
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A castração química não é o melhor caminho para evitar estupros

Médicos e uma defensora pública explicam por que o PL proposto por Bolsonaro não é eficaz para prevenir crimes sexuais.

Diante da indignação compreensível sobre crimes sexuais, especialmente os praticados contra menores de idade, a castração química costuma ser um tema que vive ressurgindo no debate brasileiro como solução drástica e eficaz para por um fim nesses delitos.

Recentemente, durante o debate da candidata à presidência Manuela D’Ávila do PCdoB no programa Roda Viva, o coordenador de campanha de Jair Bolsonaro, pré-candidato à presidência pelo PSL, a questionou sobre ela se considerar feminista e preocupada com estupros no país, mas ser contra o projeto de lei de 2013 proposto pelo candidato que sugere a castração química como pena para criminosos sexuais. Infelizmente, o tema não foi levado adiante no programa, visto que seria a primeira vez que aliados de Bolsonaro teriam a oportunidade de explicar como isso seria aplicado no Brasil.

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Embora a castração química já ser prevista em alguns países como pena ou condicional para liberdade para indivíduos condenados pelo crime de estupro, a aplicação e eficácia dessa medida não são consenso entre profissionais médicos e juristas. No Brasil, houve casos de parlamentares que ofereceram projetos parecidos ao de Bolsonaro e nenhum deles explica direito o que é a castração química e como ela funcionaria no Brasil.

O que é a castração química?

Para ínicio de conversa, o termo “castração química” não pertence à seara médica ou está previsto em manuais de Medicina e muito menos consiste na remoção física dos órgãos sexuais do agressor, como alguns desavisados acreditam.

Segundo Danilo Baltieri, que é médico, professor e coordenador do ABSex (Ambulatório de Transtornos da Sexualidade) da Faculdade de Medicina do ABC, o termo correto para esse método é terapia antagonista da ação da testosterona. Ele é indolor e feito por meio da ingestão de medicações como o acetato de ciproterona e a finasterida, que inibem a produção do hormônio masculino apontado como um dos fatores do desejo sexual. No caso do acetato de ciproterona, como aponta o médico, é também usado para tratar pacientes com câncer de próstata.

Baltieri diz que, no campo da sexualidade, essa terapia hormonal não é aplicável a qualquer um. Quando é, se restringe a casos de transtornos psiquiátricos ou parafilias sexuais como a pedofilia ou o sadismo sexual. Ainda assim, depende do grau da doença do portador do transtorno e se foram esgotadas todas as alternativas médicas anteriores para tratar dos impulsos sexuais do paciente.

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“Quando se fala em tratamento e uso de medicação hormonal a esses tipos de pacientes que padecem de pedofilia ou mesmo de sadismo sexual, que não conseguem parar, cessar de agredir ou mesmo de pensar em agredir alguém sexualmente, esse tratamento hormonal é reservado clinicamente a menos de 5% do total dos agressores sexuais que possam ter algumas dessas doenças”, frisa Baltieri.

Além disso, o tratamento hormonal só poderá ser realizado caso seja da vontade própria e desejo do paciente querer cessar seus impulsos sexuais. Se for contra a vontade, ele dificilmente funcionará.

Essa terapia também não é permanente. Pode ser reversível caso o paciente pare de tomar o medicamento. Em alguns casos, como aponta Alex Meller, médico urologista e vice-chefe do grupo de Endourologia e Litíase da EPM/ Unifesp, dependendo da idade do paciente e se o tratamento for feito a longo prazo, os efeitos podem perdurar mesmo com a interrupção do medicamento.

Os homens também que passarem a usar essa medicação não virarão assexuados ou terão obrigatoriamente problemas de ereção, como esclarece Baltieri. “O objetivo médico não é que elas percam a ereção ou a libido, o objetivo é manter seus vínculos amorosos e sexuais com suas esposas porque mais de 50% deles são casados. Não é ser impotente, é para que eles tenham uma melhora na vida sexual e reduzir intensamente o impulso sexual desviado que aliás é muito difícil reduzir”, diz.

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A eficácia do tratamento, como vimos, depende de vários fatores delicados, desde o grau do transtorno psiquiátrico do paciente, à ineficácia de tratamentos anteriores e a sua vontade de prosseguir com a terapia hormonal. Ou seja, ela não é 100% conclusiva se irá ou não inibir a vontade de cometer um crime sexual. Até porque, como apontam Baltieri e Meller, o desejo sexual não é só restrito à produção de testosterona, ela também é vinculada à questões psicológicas.

Aí que começa a complicar.

Estupro não é só sobre sexo, estupro é sobre poder

Desde 2009, o crime de estupro deixou de ser limitado à penetração do pênis na vagina. Pode parecer algo óbvio hoje em dia dizer que não se estupra só usando um pênis, mas antes da modificação do Código Penal brasileiro, se a vítima fosse obrigada a fazer todo tipo de ato sexual exceto o da penetração do pênis na vagina, seu agressor não responderia criminalmente por estupro e sim por atentado violento ao pudor. Além de ser um descaso com o sofrimento da vítima, também excluía gays e lésbicas de denunciarem que foram estupradas.

Resumidamente, um estupro não é só a penetração feita pelo pênis. Então, mesmo se o criminoso ter problemas de disfunção erétil por causa da terapia hormonal que impede a produção de testosterona, ele ainda pode estuprar caso deseje. E suas motivações para cometer uma violência sexual podem ser diversas, não só resumida ao impulso natural de fazer sexo. “Não basta restringir um problema comportamental tão sério como é o comportamento sexualmente ofensivo a um único aspecto hormonal. Existem vários outros fatores como a personalidade, o prazer, auto estima, não é tão simples como apresentam,” critica Baltieri.

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“Precisamos questionar as relações de poder e os estereótipo de gênero, além de trazer o debate de que o estupro é uma violência e não uma resposta de alguém que não consegue lidar com seus hormônios”, critica Paula Sant’anna Machado de Souza, defensora pública e coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo. “Porque a castração química acaba resumindo a discussão de que é como se homem tivesse o instinto para fazer isso. A violência sempre vai existir, junto com a questão do poder e de achar que a mulher está lá pra servir, isso vai existir com ou sem a castração qúmica. O problema vai continuar.”

Vale dizer também que a ideia de que crimes sexuais acontecem apenas com mulheres que andam em lugares ermos, na calada da noite e que são abordadas por desconhecidos é equivocada. O estupro majoritariamente acontece com mulheres, meninas e idosas dentro de casa ou dentro do círculo social, como aponta o Atlas da Violência. Falar de estupro é falar de educar a sociedade a não enxergar o corpo feminino como patrimônio público.

O crime de estupro, portanto, também diz a respeito da desigualdade nas relações entre homens e mulheres sustentada pela sociedade patriarcal. Uma pílula ou uma injeção não são capazes de tratar desse problema que parte como algo social e muito mais complexa do que aplicar penas mais duras como solução.


Assista ao nosso documentário "O Mito de Bolsonaro".

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A castração química pode ser aplicada como pena para criminosos sexuais?

No PL nº 5398/13 do deputado Jair Bolsonaro, propõe-se o aumento de penas nos crimes de estupro e estupro de incapaz e também que a castração química seria usada como condição para o condenado por estupro voltar à vida em sociedade, caso quisesse. Segundo a justificativa apresentada no projeto do parlamentar, ela também ajudaria a inibir a incidência de crimes sexuais no país. Os especialistas discordam dessa afirmação do parlamentar.

“Hoje o Brasil é o quarto país que mais prende pessoas no mundo e por outro lado ainda temos um alto índice de criminalidade como um todo. Então, vemos que essa conta de prender para reprimir e aumentar penas para diminuir crimes não está fechando”, explica a defensora pública. “E se esse é o único mecanismo para coibir esses crimes, nós devemos ter um aparato no nosso sistema de justiça para acolher dignamente essas mulheres vítimas de violência sexual.”

Aí que vem outro problema: as leis penais são boas, mas não há a correta aplicação delas pela polícia, o Ministério Público, Defensoria e Magistratura. As mulheres não recorrem à Justiça para denunciar seus estupradores porque ainda são culpabilizadas dentro desse sistema por meio de pequenas violências, perguntas sobre a roupa que estava usando, se consumiu bebidas alcoólicas ou se de alguma forma foi culpa dela ter sido estuprada.

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“Temos um alto índice de quase 90% das mulheres esse sofrem tipo de violência e elas não procuram o sistema de justiça. Então, entendo que o debate não é sobre a questão de aumentar a penas, ele vem muito antes disso que é como atender dignamente, de uma forma não discriminatória, não culpabilizando a vítima e não praticando uma violência institucional. A problemática é muito mais sobre trabalhar em cima das normas que já temos e como atender essas mulheres dignamente”, diz Sant’anna.

Constitucionalmente, o PL de Bolsonaro também é inviável. Embora exista pessoas que defendem a extinção de direitos e garantias fundamentais da dignidade da pessoa humana às pessoas que estão presas ou respondendo processos, o artigo 5º da Constituição Federal e outros dispositivos vedam a aplicação de penas cruéis para criminosos. Ou seja, o projeto de lei certamente seria barrado no STF por não estar alinhado à Constituição Federal de 1988.

O texto também é vago. Não fala quem seria competente para ministrar a medicação aos criminosos. Não menciona se haverá médicos responsáveis em fiscalizar se o tratamento está sendo feito pelo criminoso. Sequer cita se o tratamento será custeado pelo Sistema Único de Saúde. Ainda que apresente uma preocupação em discutir sobre crimes sexuais no país, o PL acaba apenas parecendo mais uma demonstração do cunho político punitivista e sensacionalista do deputado.

“É um projeto que tem uma ausência tão grande de embasamento que, quando você traz para o concreto, não consegue pautar isso no dia a dia de como será feito”, analisa Sant’anna.

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O uso do exemplo da Polônia no PL de Bolsonaro como uma forma de diminuição de crimes sexuais também é questionável, segundo Baltieri. De novo, a castração química é a última alternativa para menos de 5% de portadores de transtornos psiquiátricos sexuais que desejam inibir seus impulsos. Não há qualquer garantia de que todos os criminosos sexuais que toparem fazer o tratamento estão fazendo porque querem genuinamente se ressocializar.

Nos países que a castração química é prevista como pena, há vários questionamentos sobre a eficácia do tratamento. Um deles é conseguir fiscalizar se o paciente está tomando a medicação de fato ou se está vendendo os hormônios no mercado ilegal. Há também a possibilidade de uma escalada de violência. Se ele não consegue fazer sexo usando seu pênis, o que impede dele ser mais violento com a vítima para satisfazer seus desejos?

Como prevenir então os crimes sexuais?

A resposta é complexa, pois, como vimos com os especialistas, não somos capazes de conseguir acolher as mulheres vítimas de estupro com dignidade e o crime de estupro não tem motivações só fundadas do desejo sexual. Nós também não discutimos o estupro como um problema enraizado na sociedade brasileira e mais como um problema de falta de iluminação nas ruas ou de roupas curtas.

Muitas vezes, o agressor sequer entende que forçar sua esposa, filha ou mulher próxima a fazer sexo é um crime. Não há nele a percepção de que as mulheres são donas do próprio corpo e que são elas que decidem se querem ou não fazer sexo. “O que a gente pressupõe que deve ser trabalhado é na educação, incentivando esses debates sobre questão de gênero e desconstruir essas relações de poder”, diz a defensora pública. “A gente não trabalha isso na educação, a gente não debate isso como deveria e, quando essa mulher sofre esse tipo de agressão, a gente não consegue acolhê-la no sistema de justiça sem reproduzir todos esses preconceitos e estereótipos de gênero.”

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