O fim de Bacantes
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Sexo

O fim de Bacantes

A montagem de Bacantes do Zé Celso completa 20 anos em 2016 e encerra temporada nesse próximo dia 23 de dezembro.

Eu não poderia deixar de começar esse texto sem citar Godard em Je Vous Salue Sarajevo: "(…) há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E a arte é a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, televisão, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção, ela não é dita, é escrita, é composta, é pintada, é filmada, encenada ou vivida, se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo (…) ". Podia ser Eldorado dos Carajás, ou os Guarani-Kaiowá, ou todos os negros periféricos condenados a mesma sentença: Je vous salue Brésil!

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Para nós, aqui no Brasil, esse ano se tornou mais claro o que é a regra, e o que é a exceção.

"meu amor, meu divino amor, meu diretor querido, Dyonisyus, o Deus do tyato!"

Bakxai, bacantes!

Bacantes completa 20 anos nesse ano de 2016. Texto de Eurípedes, montada pelo Zé Celso pela primeira vez em 96. Bacantes são as guerreiras seguidoras do deus do teatro, das vinhas e do prazer, Dyonysius, e que possuem como opositor o governante da cidade de Tebas, Penteu, filho de Agave. O inimigo duvida da divindade de seu deus, acha que os seguidores de Dionísio que se reúnem em bacanais no alto do morro do Citerrão apenas cometem imoralidades. Considera que Dionísio não existe, que não é filho de Zeus. O clássico conflito do pensamento conservador com a figura do anti-herói. Se traça um paralelo natural com as dicotomias políticas que desde (sempre?) 2013 assolam as ruas brasileiras. Há uma onda "penteica" no ar, que na verdade sempre existiu enquanto regra, e esse foi um dos motivos pelo qual o Teatro Oficina resolveu fazer Bacantes agora, uma espécie de vodu, na esperança de conjurar uma resposta dionisíaca para o nosso tempo. Podia ser só isso, daria conta de certa análise conjuntural superficial. Mas…

"(…) Dyonizyus é caçador e eu ouvi ele assobiar (…)".

No Origem da Tragédia, Nietzsche nos fala:

"Teremos ganho muito para a ciência estética ao chegarmos não só à compreensão lógica, mas também à imediata segurança da opinião de que o progresso da arte está ligado à duplicidade do Apolínio e do Dionisíaco."

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A experiência do corpo em Bacantes é o verdadeiro personagem principal da peça. Dyonisyus é o vinho, a uva, é Tebas e somos todos nós orquestrando essa macumba na rua-passarela-anfiteatro-grego Lina Bardi. É o espírito da rua, que se faz gueto, mas se quer universal. A peça nutre esse desejo de uma reformulação do que se entende por corpo nos espaços das cidades, virar do avesso os nossos automatismos e construir uma "liga" energética e coesa. O reconhecimento do outro como legítimo outro, na antropologia, tem um nome bonito: alteridade. no teatro: orgya. E assim começa a tragicomédia-orgia.

Os situacionistas nos anos 60 falam da intermediação das relações numa sociedade capitalista, onde a experiência é um grande acúmulo de relações intermediadas por imagens (…) "O espetáculo em geral, como uma concreta inversão da vida, é um movimento autônomo do não vivente… o mentiroso mentiu pra si mesmo." Para além dos conflitos das políticas partidárias conservadoras, o estraçalhamento de Penteu, na tragédia, é o estraçalhamento de nós mesmos, é a partir da vivência forjada dentro da experiência artística que conseguiremos expurgar todos esses Penteus internalizados em nós por esse tecnicismo e travas concebidas na nossa sociedade.

As ruas de Paris em maio de 68, as escolas e universidades dos Brazys das ruas dos sub-humanos são a(s) força(s) Dionisíaca(s) que tentam virar a mesa da história através dos ritos e da cultura (exceção), junto com as mulheres de Rojava, os zapatistas, as mulheres do mundo, todos pretos, todas figuras subalternas, os secundaristas e suas escolas ocupadas, todos os guetos e favelas, porque o morro vai virar asfalto e o asfalto vai virar morro.

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E a maior revolução brasileyra foi o desbunde!

Nós nascemos nus, sem posses, e toda essa construção branca, europeia. Os movimentos anti-globalização, indiretamente, visavam retomar essx homem/mulher que possuem outra subjetividade e pensamento. O rito não são as transações monetárias, nem o consumo. E o deus não é o capital. Mas enquanto houver morro, haverá as Bacantes, Dyonysius e todos os outros de baixo, que não tem vez, nem lugar nesse projeto de sociedade do andar de cima. Bacantes encerra temporada nesse próximo dia 23 de dezembro, e em tempos de exército nas ruas, suicídio sendo transmitido ao vivo pelo Facebook ou a política se resumindo ao #FORATEMER, a orgya é necessária.

"(…) Ó deus, onde estás que não vês tuas guerreiras? (…)"

Ió, meu tyazo!

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