Chegou a hora das mulheres no sertanejo universitário

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Chegou a hora das mulheres no sertanejo universitário

Naiara Azevedo, Maiara & Maraisa e Marília Mendonça cantam modas com fortes protagonistas femininas e de um ano para cá estão unidas no topo das paradas do gênero mais ouvido do país.
PN
ilustração por Pedro Nekoi

Se liga nessa situação desagradável: a mina colou em um motel e encontrou o marido mexendo o doce com outra mulher. Foi um trupé — ela quis dar umas pancadas, primeiro na amante, depois no safado do seu cônjuge, pois, não bastasse a humilhação do flagrante da traição, era justamente o mesmo motel em que ele havia lhe feito juras de amor durante a lua de mel do casal. Já pensou?

Mas ela resistiu e não desceu das tamancas. Pelo contrário, esnobou geral. Disse que não era para eles sequer vestirem a roupa, pois não queria atrapalhar a noite de prazer dos dois. E foi além, quis ajudar a "dama" que estava com o maluco: tratou de tirar R$ 50 e jogar na cama em cima deles.

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É bem provável que a essa altura da narrativa o leitor já saiba que os dois primeiros parágrafos não fazem parte de nenhuma história triste envolvendo alguma conhecida minha. Mas, se ainda não reconheceu essa trama, certamente não tem ouvido rádio, assistido à televisão e, nas ruas, deve estar sempre com aquele fone de ouvido do Neymar na orelha.

A música "50 Reais", da cantora do estilo sertanejo universitário Naiara Azevedo, foi a mais ouvida no Brasil no mês de setembro (em outubro, ocupou a terceira posição, sendo a primeira colocada, Marília Mendonça, com "Eu sei de cor"), de acordo com o monitoramento da Spybat Sound Tracker, que afirma avaliar 95% das emissoras do país. No YouTube, o vídeo do flagrante no quarto do motel já está na casa dos 159 milhões de visualizações.

Aliás, o mesmo ranking traz outra informação relevante: das dez músicas mais executadas em outubro, nove são do estilo sertanejo. Desses nove artistas, quatro são mulheres.

O fenômeno é nacional e se apresenta, com maior intensidade, há mais ou menos um ano. Mulheres como Naiara Azevedo, Maiara & Maraisa, Marília Mendonça, Simone & Simaria, Bruna Viola, entre outras, têm ocupado espaços em programas de TV e encabeçado casas sertanejas, festas regionais, feiras agropecuárias e rodeios por todo Brasil.

De acordo com pesquisa realizada pelo Ibope Media em 2013, 58% dos brasileiros ouvem sertanejo e, em 2015, o videoclipe mais assistido pelos brasileiros no YouTube também foi desse gênero — a música "Escreve Aí", de Luan Santanna.

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A nova fase das mulheres no sertanejo universitário marca, ainda, uma substituição na temática das letras das músicas. Até pouco tempo, com foco mais romântico, em nomes como Thaeme & Thiago e Maria Cecília & Rodolfo. Hoje, as canções falam de uma mulher mais independente e porreta.

"Olha, já adiantamos que não somos feministas, somos duas cantoras que merecem poder mostrar o seu trabalho, como tantas outras." — Maiara & Maraisa

É dessa mulher que trata a música "50 Reais", que também possui participação de Maiara & Maraísa e, como conta Naiara Azevedo tanto no palco quanto na entrevista ao Noisey, trata-se de uma cena que rolou com ela.

"É baseada em uma história verídica e tem, sim, muita verdade nessa música", afirma a cantora, que começou a carreira aos 20 anos (está hoje com 24), em palcos do Estado do Paraná. "A música não é só minha, somos em cinco compositores que eu convidei para me ajudar a escrever um fato que, para mim, era muito forte, que era essa traição", lembra.

Apesar de afirmar que há alguns detalhes "lúdicos" na letra, a música reproduz detalhes do ocorrido e, segundo a cantora, a canção foi "feita com muito carinho".

Clipe de "50 Reais", de Naiara Azevedo com a participação de Maiara & Maraisa

A fala irônica de Naiara no momento do flagrante adultério também não escapou do olhar afiado das redes sociais e foi elevada à categoria de meme, conforme podemos ver logo abaixo em situações diversas.

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De olho nos 10%

Maiara & Maraisa. Foto: Divulgação

Impossível abordar o momento feminino do sertanejo universitário sem citar as gêmeas Maiara & Maraisa. Na música desde criança, as irmãs chegaram a apostar numa fase pop rock, no início dos anos 2000, com a dupla Geminis. Em uma notícia de um jornal mato-grossense (elas nasceram no Mato Grosso, foram criadas no Tocantins, moraram um tempo a trabalho em São Paulo e hoje vivem em Goiás), publicada em 2004, Maiara explica: "Cantávamos sertanejo, pois era um estilo tradicional do Estado, mas quando conhecemos outros estilos e grupos, passamos a adotar o pop rock."

O sucesso nacional não foi o pop rock, mas o som de suas origens. Foi com a música "10%" que a dupla estourou. Lançada no DVD Ao Vivo em Goiânia (2015), o vídeo no YouTube da canção já acumula 229 milhões de views. A letra da música retrata um momento de fossa, com a garota na mesa, em plena desilusão amorosa, sofrendo com o clipe exibido na tela da TV do bar — e explica que, ouvindo um modão, ela bebe em dobro.

♫ "Garçom, troca o DVD,
essa canção me faz sofrer
e o coração não 'guenta'
desse jeito você me desmonta,
cada dose cai na conta
e os 10% aumenta." ♫

O difícil é explicar essa letra de música para um norte-americano, por exemplo, com o sistema de tipping (gorjetas), ou então àquele seu amigo que sempre fala no final da conta: "Ô, chefia, manda avisar o maître que eu não pago 10% nem por decreto".

"Olha, já adiantamos que não somos feministas, somos duas cantoras que merecem poder mostrar o seu trabalho, como tantas outras", ressalta Maiara, hoje com 28 anos, que aposta nesse momento das artistas em geral como uma oportunidade de mudança. "Espero que seja uma renovação do mercado musical", diz.

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As modas sertanejas que unem o sofrimento amoroso ao álcool e aos estabelecimentos que comercializam bebidas alcoólicas sempre existiram, porém, em sua maioria com personagens masculinas. Seria a letra de "10%", bem como as outras composições da dupla, a vez de colocar a mulher vivenciando essas situações? "O intuito é passar a mesma mensagem, nada de distinção", alerta Maiara. "Tanto homem quanto mulher sofrem igual e bebem, choram, extravasam e expressam da sua maneira", explica a sertaneja.

No entanto, ela também acredita que uma mensagem pode estar sendo transmitida com essas canções. "Acho que o público pode interpretar que seja a hora das mulheres."

Maiara e Maraisa cantando os seus "10%" no DVD gravado em Goiânia

Com as malas jogadas na porta

Marília Mendonça em Jaguariúna. Foto: Divulgação

Dividindo o topo das paradas está, também, a jovem goiana Marília Mendonça que, aos 21 anos, já ultrapassou os 222 milhões de visualizações no YouTube com seu hit "Infiel". No entanto, se o rosto e a voz da cantora fazem muito sucesso atualmente, o trabalho da artista como compositora já havia alcançado proporções gigantescas antes de ela gravar o seu primeiro DVD, em 2015.

É de sua autoria a música "É com Ela que Eu Estou", gravada por Cristiano Araújo, jovem cantor sertanejo morto em um acidente de carro, aos 29 anos, no ano passado, com enorme repercussão em todo o Brasil. Sob sua assinatura estão, ainda, sucessos de João Neto e Frederico e Henrique e Juliano.

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"Eu não pensava que a aceitação fosse ser tão grande", afirmou a cantora e compositora, que buscava o sucesso como meta na carreira. "Era um sonho sim, um sonho de menina e eu não imaginava que seria tão rápida minha projeção nacional. Sou muito realizada", diz.

A canção "Infiel" foge um pouco da batida e da cadência do que comumente se aplica ao sertanejo universitário, uma pegada que Marília define ser mais "puxada para a sofrência". Com narrativa também baseada em uma história real, vivenciada pela tia da artista, a letra reproduz a fala de uma mulher que está literalmente botando o marido traíra para fora de casa e o entregando para a pivô da traição:

♫ "O seu prêmio que não vale nada estou te entregando,
pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando
Essa competição por amor só serviu pra me machucar
Tá na sua mão, você agora vai cuidar, de um traidor." ♫

Marilia Mendonça cantando seu hit "Infiel".

A benção, Madrinha!

Todas as cantoras são unânimes em dizer que, apesar de reconhecerem que hoje atravessam um momento especial na divulgação de seus trabalhos, sempre existiram mulheres cantando na música sertaneja ou caipira.

Se cada época teve suas característica para essas intérpretes, é interessante rebobinar essa fita até os anos 1950, quando a cantora e eterna apresentadora do programa da TV Cultura, Viola Minha Viola, Inezita Barroso, lançou um disco de 78 rotações com o samba "Ronda" e um dos hinos da música caipira a "Moda da Pinga".

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Ignez Madalena Aranha de Lima nos deixou em 2015, aos 90 anos de idade e, em depoimento a Valdemar Jorge, no biografia Inezita Barroso: Com a espada e a viola na mão narra uma passagem que possui características das diferenças vividas pelas mulheres da época.

"Quando comecei a cantar eu senti muito preconceito, por ser mulher, por ser gordinha, por cantar respostas […]. Foi muito maior a rejeição do próprio meio do que a do público." — Naiara Azevedo

"A letra da música ["Ronda"] mudou um verso daquela que eu cantei em 1953. Eu dizia mesas dos bares agora é só bares. Naquela época mulher não entrava em bar, as mesas eram na calçada. Os homens ficavam nas mesas de bares, como o Pinguim, ali na São João [Em São Paulo], bebendo e fumando, e as mulheres ficavam rondando, circulando pra lá e pra cá, paquerando os homens nas mesas. Geralmente não eram mulheres muito distintas e não tinham direito de entrar em bares sozinhas, era muito feio. São pequenos detalhes, que só quem conheceu, sabe", descreve Inezita.

Quase sete décadas se passaram, mas a cantora Naiara Azevedo também fala sobre as dificuldades enfrentadas até conseguir um espaço no show business do sertanejo. "Quando comecei a cantar eu senti muito preconceito, por ser mulher, por ser gordinha, por cantar respostas (versões de letras, no caso dela, femininas, para rebater sucessos masculinizados), toda forma de preconceito, não do público, mas sim das próprias pessoas do meio. Em nível de rejeição, foi muito maior a do próprio meio do que a do público", diz.

Em meio às dificuldades elas permaneceram fortes e unidas e, no momento, são os destaques do momento nessa cena musical. Agora, pelo amor de Deus, Naiara, tomara que essa parte da música "50 Reais" não seja biográfica, mas lúdica, pois, levar a noiva para a lua de mel em um motel?! Ninguém merece. Vê alguma pousada no Litoral Sul de São Paulo, sei lá, um pacote parcelado em dez parcelas para Porto Seguro (BA).

Assim fica difícil.

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