"Mataram o presidente", estrada OIO - Bissau, Março, 2009. Todas as fotos pelo autor.
"Mataram o presidente", estrada OIO - Bissau, Março, 2009. Todas as fotos pelo autor.

FYI.

This story is over 5 years old.

Viagens

Guiné Bissau. Uma terra abençoada num estado amaldiçoado

Memórias, saudades e esperança, em imagens analógicas de África.

Nunca sabemos se captamos o essencial de uma viagem ou das especificidades de um país enquanto o vivemos. Olhamos, retratamos, absorvemos, escrevemos, refletimos, mas, anos mais tarde, desconfiamos que o recolhido poderá não ter captado tudo, ou o bocado que pode ser tudo. Que algo está em falta. Voltamos a recordar. Recolhemos, novamente. Encaixamos as peças no puzzle. O tempo ensinou-me que muitas vezes o olhar do viajante, próprio do imediatismo, pode deturpar mais e eis-me então, passados oito anos e depois de uma experiência de dois, entre idas e vindas ao Senegal e a Portugal, a retratar um pouco do muito que vivi neste pequeno país da África Ocidental.

Publicidade

Foi a 28 de junho de 2009 que comecei a compreender alguma da essência da Guiné Bissau. (Assim acredito, pelo menos.) Coincidiu ser no dia em que assistia à primeira tomada de posse de um presidente em África. O dia em que Malam Bacai Sanhá foi eleito, poucos meses depois do barbárico assassinato do ex-presidente Nino Vieira e do bombardeamento ao quartel general das forças armadas, que também levou a vida do chefe de Estado Maior das Forças Armadas, Tagmé Na Waié. Juntaram-se em Bissau - com mais de 30 graus -, fula’s, papeis, balanta’s, mandinga’s, manjacos, bijagós, e muitos outros oriundos das diferentes etnias do interior da Guiné. O ambiente ao contrário do que esperava, era bastante festivo.


Vê: "Terra sem homens: nesta aldeia do Quénia só há mulheres"


Na altura, já conhecia um pouco da extraordinária riqueza do interior do país e das ilhas dos bijagós, que viria a explorar de forma mais intensa ao longo de muitos e muitos fins-de-semana. Mas, foi em Quinhamel, a quinze quilómetros de Bissau, que nasceu um amor maior pelas ostras. Raramente voltei a encontrá-las tão boas noutros lugares. Das ostras para o olhar, deparei-me com uma pobreza crua e condições de saúde em muitos casos desumanos, mas longe da fome que, propriamente dita, não existe.

Aquele que é considerado o quinto país mais pobre do Mundo, poderia depender quase em exclusivo de um plano ordeiro para a agricultura e do seu vasto território marítimo, propicio às pescas. No lugar da fonte praticamente exclusiva que é o cajú, exportava-se de forma sustentada as caraíbas virgens que são as mais de 80 ilhas dos bijagós e apresentava-se toda uma amálgama de costumes e etnias, que faz deste pequeno país, um dos mais interessantes de África.

Publicidade

A realidade é que, no dia 28 de Junho de 2009, era difícil a um estranho aceitar este clima num país que tão recentemente tinha vivido acontecimentos trágicos e de pouca tolerância para quem quisesse acreditar nos seus políticos. Da enchente no estádio 24 de Setembro às ruas inundadas da Avenida 3º de Agosto e à Praça Central de Bissau, acenavam-se cachecóis do PAIGC e convivia o citadino de Bissau, o soba de Cachéu, Varela, Bafatá, e o bijagooense. Entre mais ou menos funcionários de organizações internacionais e ONGD’s, vivi sempre isso em toda a Guiné. Onde quer que fosse, nunca vislumbrei qualquer violência entre os cidadãos deste país e raramente vi revolta.

1548691637919-Cor-e-festa-Bafata-GB-2010-autor-Goncalo-RTelles

"Cor e festa", Bafatá, Guiné Bissau, 2010. Foto pelo autor

É, sem dúvida, outra das coisas que mais impressiona quando se está na Guiné. A violência dos últimos vinte anos foi quase sempre circunscrita aos jogos sujos entre políticos e militares. Num qualquer outro país, isto já teria dado uma guerra civil interminável e criado todo o tipo de milícias. O próprio estado de guerra em alguns dos países francófonos que a ladeiam é ignorado pelos guineenses.

Após o longo discurso do novo presidente, perguntei a um dos locais que parecia travado entre a emoção e a efusão, o que era que eles festejavam, afinal de contas? A resposta deixou-me desarmado entre a contradição de uma aparente inocência africana e a minha falta dela. Isso e uma crença na humanidade de quem todas as razões tinha para acreditar muito pouco nela. Numa mescla entre o crioulo e o português, lá me disse: “Se Sanhai vir que estamos com ele, se os políticos sentirem a nossa crença, também eles vão querer o bem da Guiné. Garandi kuma i ka un pe son ku pui kaminhu limpu”.

Publicidade

O guineense não perde a esperança. Basta escutar outros ditados neste crioulo, alguns que me foram ditos noutras circunstâncias e apercebemo-nos da raiz dessa força.

1548692121913-Sobas-de-sabedoria-Bissau-GB-2010-autor-Goncalo-RTelles

"Sobas' de sabedoria", Bissau, Guiné Bissau, 2010. Foto pelo autor

Os bijagós dividem-se entre ilhas de todo o tipo de dimensões e ao gosto de qualquer viajante. São um refúgio único e de pesca abundante e rara. Rubane representa a ilha sagrada, de segredos, mitos e tradições seculares. Não se pode derramar sangue ou enterrar um corpo, muito menos os de animais. Não é permitido que se façam construções, nem que alguém se envolva numa luta de qualquer tipo. Quem violar uma destas regras terá que se submeter ao ritual, fazer oferendas e pedir desculpa às entidades superiores. Caso contrário, e segundo a crença bijagoeense, o prevaricador será punido pelo poder divino. Classificada pela UNESCO como Reserva da Biosfera e Património da Humanidade, a Ilha de Rubane é considerada a reserva agrícola dos bijagós, uma vez que é lá que se produz parte dos alimentos do país – arroz, milho, melancia, abóbora, inhame – e que serve para o ano todo.

Bubaque é a mais “comercial” das ilhas e a primeira com que nos deparamos quando saímos do barco vindos de Bissau. Para encontrarmos o deserto que encontramos noutras ilhas, é preciso percorrer cerca de dezoito quilómetros para chegar à praia de Bruce. Há quem venha em avioneta directamente de Dakar sem passar por qualquer outro lugar da Guiné. As más línguas diziam (segundo percebi, ainda se diz) que o tráfico de droga (outro dos flagelos do país é o narcotráfico) é realizado tanto por avioneta como de barco, longe de qualquer controlo marítimo ou aéreo, e ajudado pelo labirinto geográfico que também define este lugar. Assim chegaram a Orango, um dos poucos lugares no mundo onde ainda se encontram hipopótamos marinhos.

Publicidade

Depois de deixar Bissau, mantive sempre um olhar de saudade na terra e outro na política do país. A violência estadual deixou de ser a de outrora, mas a iminência de qualquer conflito é constante. Continua a ser o lugar em que nenhum presidente chegou ao final do mandato, mas onde ainda se dança a vida. Por mais cruel que ela seja. Num país de contrastes sagrados e de cor, de musicalidade sem som, de paisagens deslumbrantes e outras chocantes, o maior deles todos está por resolver: o de uma terra abençoada que se mantém refém de um estado amaldiçoado.

Vê abaixo mais fotos das viagens do autor pela Guiné Bissau, Angola e Senegal.

1548692554506-Olhares-Varela-GB-2009-autor-Goncalo-RTelles

"Olhares", Varela, Guiné Bissau, 2009. Foto pelo autor.

1548692643856-Pela-Savana-Fora-2009-Angola-autor-Goncao-RTelles

"Pela Savana Fora", Angola, 2009. Foto pelo autor

1548692775977-Ritimo-e-isto-2010-Bissau-GB-autor-Goncalo-RTelles

"Ritmo é isto", Guiné Bissau, 2010. Foto pelo autor

1548692949653-Peladinha-sem-descanso-Namibe-Angola-2009-autor-Goncalo-RTelles

"Peladinha sem descanso", Namibe, Angola, 2009. Foto pelo autor

1548693014171-Savana-Africana-Estrada-Cacheu-GB-2009-autor-Goncalo-RTelles

"Savana Africana", Estrada Cache, Guiné Bissau, 2009. Foto pelo autor

1548693120746-Sob-Controle-Varela-GB-Maio-2010-autor-Goncalo-RTelles

"Sob controlo", Varela, Guiné Bissau, Maio, 2010. Foto pelo autor

1548693203567-Todo-e-qualquer-dia-2011-Angola-autor-Goncalo-RTelles

"Todo e qualquer dia", Angola, 2011. Foto pelo autor

1548693350995-Um-entre-varios-Luanda-Angola-2008-autor-Goncalo-RTelles

"Um entre vários", Luanda, Angola, 2008. Foto pelo autor

1548693431929-Yes-we-can-Bissau-GB-2010-autor-Goncalo-RTelles

"Yes we can", Bissau, Guiné Bissau, 2010. Foto pelo autor

1548693538626-A-caminho-de-Bissau-GB-2009-autor-Goncalo-RTelles

"A caminho de Bissau", Guiné Bissau, 2009. Foto pelo autor

1548693616467-Africanismo-Bafata-Guine-Bissau-autor-Goncalo-RTelles

"Africanismo", Bafata, Guiné Bissau. Foto pelo autor

1548694419034-Bissau-sem-filtro-Bissau-GB-2010-autor-Goncalo-RTelles

"Bissau sem Filtro", Bissau, Guiné Bissau, 2010. Foto pelo autor

1548694546902-Caminho-da-manha-Guine-Bissau-2010-autor-Goncalo-RTelles

"Caminho da manhã", Guiné Bissau, 2010. Foto pelo autor

1548694610589-Carnaval-sem-igual-Bissau-2009-autor-Goncalo-RTelles

"Carnaval sem igual", Bissau, Guiné Bissau, 2009. Foto pelo autor

1548694712070-Desconfia-de-quem-espreita-Bissau-Guine-Bissau-2010-autor-Goncalo-RTelles

"Desconfia de quem espreita", Bissau, Guiné Bissau, 2010. Foto pelo autor

1548694775065-Diarios-de-Motocicleta-Guinieenses-2010-GB-autor-Goncalo-RTelles

"Diários de Motocicleta", Guiné Bissau, 2010. Foto pelo autor

1548694832141-Felicidade-combativa-2008-Luanda-Angola

"Felicidade combativa", Luanda, Angola, 2008. Foto pelo autor

1548694876499-Amanhece-em-Africa-2009-Senegal-autor-Goncalo-RTelles

"Amanhece em África, Senegal, 2009. Foto pelo autor


Segue o Gonçalo R. Telles no Instagram.

Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.