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Entretenimento

O que aprendemos sobre racismo com Mallu Magalhães e o vídeo de “Você Não Presta”

A internet denunciou o preconceito subtil do último vídeo da artista. O grito foi ouvido, mas isto é só o começo.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Noisey Brasil.

A 19 de maio, Mallu Magalhães divulgou o videoclip de "Você Não Presta", single que faz parte do álbum Vem, que deve sair em Junho. No vídeo, gravado em Lisboa e realizado por Bruno Ferreira, Mallu aparece rodeada por bailarinos negros, com performances de danças repletas de influências do ballet, hip hop, um pouco de funk e danças africanas como o kuduro e o afro-house.

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Nos dias que sucederam o lançamento porém, a Internet "agarrou" no vídeo atirou-o para aquele campo de batalha de likes, dislikes, textos longos e argumentos diversos. Muitos e muitos internautas apontaram que o clip da artista paulista (que vive em Portugal) era racista, infeliz e cheio de reproduções de estereótipos preconceituosos. Ainda que alguns acreditassem que havia uma boa intenção por detrás de tudo isto, foi geral a ideia de que boas intenções não anulam a necessidade de rever as "bolas ao lado" em termos estéticos.

Na última quarta-feira, 24, Mallu usou a sua página oficial no Facebook para falar sobre como escolheu o tema e, principalmente, para se desculpar por tudo o que gerou.

Pergunta retórica: afinal de contas, qual é o real problema que a população entendeu ser motivo suficiente para gerar todo este alvoroço? O reforço de estereótipos! O famoso "racismo-nosso-de-cada-dia", que nos sussurra ao ouvido, passa subtilmente diante dos nossos olhos, entra e se acomoda.

Logo de caras, é bem notório o contraste entre o figurino de Mallu e o dos bailarinos. Os corpos negros estão ali descobertos e embebidos em óleo - talvez para dar uma impressão de suor? -, além de serem usados muitos close-ups de abdomens, rabos e seios. Tudo isso sugere um reforço de estereótipos em que o negro é algo exótico, animalesco, sensual e sempre associado à forma e à força física. Historicamente, é muito comum que pessoas negras sejam retratadas desta forma na arte. Essa expressão subtil do racismo, esse tipo de perspectiva sobre o negro do mundo moderno devia ter ficado nos anos 20, com Rugendas e Debret.

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Outro detalhe do vídeo que deixou o pessoal revoltado foi a t-shirt que Mallu usou em algumas cenas, com a estampa "Oscar 2002", que foi o primeiro e único ano em que uma dupla de negros, Denzel Washington e Halle Berry, ganhou o aclamado e prestigioso prémio para Melhor Actor e Actriz, respectivamente. A utilização da t.-shirt passou a impressão de que Mallu estaria a prestar uma homenagem às pessoas negras, ao colocá-las como protagonistas no seu trabalho.

Entretanto, a discrepância entre os figurinos e a falta de interação e sincronia da artista com os bailarinos, acaba por passar uma sensação de que eles estão ali como adorno e instrumento para destacar a estética cool do vídeo, muito longe da intenção de os colocar no papel real de protagonistas.

"A escolha dessa música como primeiro single foi por uma necessidade e vontade de quebrar o vidro, do meu trabalho, da minha carreira e da minha imagem… colocar pra fora uma energia de atitude, uma onda tão urbana quanto selvagem. E, até um aspecto rock, que eu sempre tive, desde o início do meu trabalho", disse Mallu no press release do vídeo. A declaração confirma que a intenção era uma, mas o resultado acabou por ser completamente outro.

Os adjetivos "urbana e selvagem" reforçam mais um problemático estereótipo em torno das pessoas negras. Faz lembrar quando o britânico Idris Elba foi recusado para o papel de James Bond por ser "demasiado urbano". Mallu e a sua equipa provavelmente não pensaram em todos estes pontos quando decidiram fazer a produção e isso é só mais uma evidência do racismo que, subtilmente, nos perpassa todos os dias. E assim continua, até que alguém dê um grito.

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"Li cada uma das críticas, dos posts e comentários, e o debate me fez reflectir muito sobre o tema" - Mallu Magalhães

No pedido de desculpas, Mallu garante que leu todas as críticas e as usou para reflectir: "Li cada uma das críticas, dos posts e comentários, e o debate me fez reflectir muito sobre o tema". A hiperssexualização e a colocação do negro como figura exótica, implicam uma sistemática desumanização do ser. Na arte em geral existe um bloqueio no que diz respeito à inserção de pessoas negras como protagonistas, tanto da parte de produtores, como da parte do público. Isso foi nítido, por exemplo, quando foi noticiada a "Hermione negra" que seria interpretada por Noma Dumezweni, na peça Harry Potter and the Cursed Child, e que gerou uma série de comentários racistas pela Internet.

Esse é um dos maiores problemas que podemos ver no clip: em espaços onde pessoas negras quase não são inseridas, quando o são, acabam por ser utilizadas para compor cenários, reforçar estereótipos de um ser forte, físico, exótico e sexual e nunca de forma a dar a entender a subjetividade de cada pessoa negra em si. Afinal, negros não são só negros e é necessário que isso seja percebido.

O facto é que, tanto os descuidos não intencionais, como as idiotices racistas descaradas têm vindo a ser cobradas publicamente à medida que vão acontecendo e isto é só o começo. Há alguns anos, este "grito" contra os resquícios de uma sociedade "escravocrata" não seria tão estridente, nem teria sido tão bem notado, ou recebido a devida atenção. Hoje, pode reparar-se que pessoas negras têm tido mais voz quando falam, ou reivindicam algo sobre os seus próprios assuntos, em torno destas violências simbólicas e conseguem ser ouvidas ao invés de reduzidas a "mimimi".

A prova disso é a retractação por parte de Mallu.