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Música

Primavera Sound: Segundo e terceiro dias para a posteridade

As guitarras venceram o segundo round, a chuva levou o terceiro.

SEGUNDO DIA O segundo dia do Primavera Sound em números e trivialidades: miúdas com a aparência de alunas da Faculdade Courtney Love: três. Melhor t-shirt do dia: a amarela com o logótipo da Pez (aqueles bonecos com rebuçados lá dentro). Quantidade de vezes em que fui abordado como alegado dealer de droga: duas (o primeiro bife era mais específico e coçou o nariz, o segundo pediu desculpa pela pergunta estranha, mas queria mesmo comprar fosse o que fosse). Prémio INEM: o gajo todo gregoriado a arrochar em frente ao Palco Primavera durante duas horas. Invasores do palco dos Black Lips: cinco, vá lá. Aniversariante em palco: Cole Alexander, o guitarrista dos Black Lips, que faz anos no mesmo dia que eu. Estimativa de fãs perdidos pelos Beach House: cinquenta. Estimativa de fãs ganhos pelos Oh Sees: cem. Por tudo isto e muito mais, o segundo dia de Primavera Sound ganhou um lugar muito especial entre os dias de festival para recordarmos mais tarde, quando estivermos com o soro ligado ao braço e a contar histórias aos netos. O ambiente estava mais quente e o cartaz era de uma qualidade rara de se ver por cá num só dia. Como é que se pode falhar um festival que recebe concertos dos Yo La Tengo, Black Lips e Thee Oh Sees separados por apenas algumas horas? Todas estas são bandas que passam a vida a tocar e sabem muito bem como entreter multidões com canções carregadas de guitarra. Isto pode até parecer uma ideia típica de quem cresceu nos anos 90, agarrado aos discos da Sub Pop, mas diria que as guitarras venceram o segundo round do Primavera Sound. Uma guitarra nas mãos de Ira Kaplan, dos Yo La Tengo, é um objecto sagrado, como a Torre dos Clérigos, e quase sempre capaz de abrir a cabeça de cada um e atirar lá para dentro o melhor do rock das últimas décadas. Quando subiram ao Palco Primavera, os Yo La Tengo encararam o desafio de um recinto completamente aberto e encontraram a melhor solução para criar a intimidade possível: optaram por um alinhamento de canções perfeitas para receber uma tardinha de Primavera e aproveitá-la com alguém querido. Houve “Little Eyes”, “Autumn Sweater”, “Mr. Tough” e uma conclusão fofinha com “My Little Corner of the World”. Logo depois, no palco mesmo ali ao lado, o Rufus Wainwright apresentava-se com uns óculos ridículos e a habitual variedade de canções ora agradáveis, ora aborrecidas. Entre um e outro bitaite, o gajo confessou que adorava conhecer os surfistas giríssimos da Praia de Matosinhos. Cantou depois umas malhas de gospel que me purificaram de todos os pecados acumulados desde o ano de 2009. Obrigado, Rufus.  Nos dois palcos principais e ainda antes dos artistas internacionais, houve tempo para assistir a dois representantes da prata da casa: os Linda Martini só sabem dar óptimos concertos e continuam a ser a melhor banda com refrões em forma de frase para pintar na parede do quintal da ex-namorada (“Foder é perto de te amar, se eu não ficar perto”); os We Trust, de André Tentugal, mostram boa vontade e estabeleceram alguma empatia com o público, mas faltam ainda algumas canções memoráveis para isto avançar e a secção de sopro soa demasiadas vezes a Expensive Soul. Depois de uma baguete de atum comida com uma fome de Sasha Grey, o relógio marca as dez horas da noite e os Black Lips — da nossa querida VICE Records — dão início a uma grande festa, no Palco Club, com “Family Tree”. Serão muitas as qualidades que colocam os Black Lips entre as mais eficazes bandas rock da actualidade, mas a noite do Primavera salienta duas delas: não há cá merdas a separar os artistas do público — todos fazem parte da mesma celebração — e cada um dos quatro membros compõe as suas canções e isso resulta em maravilhas para a dinâmica da hora bem passada com os rapazes. Para quem nunca viu o filme, diríamos que o auge, num concerto dos Black Lips, é mais ou menos isto: rolos de papel higiénico a voar pelo ar, dois corpos à deriva no crowdsurf, um segurança careca a perseguir um puto em palco e uma grande coboiada de som a acompanhar tudo isso. “Noc-a-Homa”, “Time” e “Bad Kids” foram enormes. A lenda dos Black Lips cresceu assim no Porto, depois daquela noite em que eles andaram à porrada no barco.  A lenda dos outros Lips (os Flaming Lips) cresceu também em proporção com o estrilho que fazem ao entrar em palco. O nosso fotógrafo Mauro estava lá à frente e viu balões pelo ar, uma bola de espelhos lá bem no alto, cheerleaders a dançar como se o Primavera fosse o Super Bowl e um monte de merdas difíceis de explicar. Viu também o Wayne Coyne a rolar por cima das pessoas, dentro de uma bola insuflável e isso foi certamente muito mais divertido do que escutar qualquer um dos últimos discos da banda. O Mauro quando chegou a casa tinha confettis até dentro das cuecas. Os Oh Sees não traziam consigo o Circo Cardinali e a torcida do Flamengo, mas ganham o Primavera Sound com um concertão de uma intensidade anormal e canções de dois minutos e pouco (“Block of Ice”) transformadas em bisontes de dez minutos. Bisontes que o John Dwyer (figurão dos Oh Sees) monta como se estivesse num rodeo e a guitarra desse coices sem parar. O pessoal no mosh pit responde aos riffs de “Enemy Destruct” ou “I Was Denied” com muitos saltos e uma das bolas a sair na Lotaria de Pessoas a Cair no Fosso teve o nome de Joaquim Durães (ou Fua), que foi depois carinhosamente agarrado por dois ou três seguranças. Os Oh Sees começaram a tocar para 250 pessoas e acabaram a tocar para esse número mutiplicado por cinco. Acordaram-me do soninho que os Beach House me deram uma hora e meia antes. Vai buscá-la. TERCEIRO DIA Um dos meus passatempos favoritos é rapinar as excelentes letras de Pega Monstro e adaptá-las à minha vontade, independentemente dos resultados desastrosos. Os primeiros minutos do terceiro dia do Primavera Sound lembraram-me do dilúvio vivido há uns anos no Paredes de Coura e isso foi o suficiente para pegar numa canção das Pega Monstro e transformá-la nisto: “Eu fui a um festival / choveu muito, ficou lamaçal / e detesto o Cachorrão / por não ter sandes de salmão / (refrão) Matosinhos é só noveeelas, Matosinhos é só noveeelas”. O terceiro dia do Primavera Sound foi mais ou menos isto. A chuva apareceu e trouxe consigo as habituais galochas e impermeáveis. Era divertido estar à porta do recinto e ver os espanhóis a saírem dos táxis de braços abertos, como quem pergunta ao céu: “porque me obrigas a ir ver Los Reyes de la Convenienzia debajo de tanta lluvia?”. Por perto estava também um velho, com toda a pinta de guerreiro do Braveheart, que apontava as mãos para o Parque da Cidade e gritava que “isto hoje é um Woodstock!”. Todo o festival que junta relva e chuva ganha sempre um charme de Woodstock. O pessoal resistiu como um guerreiro do Braveheart (dois dias de rock acabam com o meu jeito para as metáforas), mas a verdadeira surpresa do terceiro dia foi a simpatia dos seguranças. Fazem-se grandes amigos com os senhores de casaco com um desenho de animal ameaçador nas costas (um lobo ou um dragão, não percebi bem). Aqui fica um grande abraço para a rapaziada do portão do Palco Club. Temos um gosto bastante semelhante por vestuário feminino. Suponho que o Abel Tesfaye (o gajo de Weeknd) também goste bastante de determinado vestuário feminino, ou da falta dele. Todos os textos de antecipação sobre The Weeknd mencionavam a tónica sexual e nocturna do projecto que precisou apenas das capacidades virais da internet para chegar a todo o mundo. Abel Tesfaye espalhou quilos de swag pelo Palco Club e cantou mil rimas em registo de r&b ultra-sentimental, mas fiquei com a sensação de que repetiu constantemente uma só frase: “quero a tua bufa porque tenho um grande apartamento com jacuzzi”. The Weeknd surpreendeu-me bastante, por acaso: passava-me completamente ao lado em casa; bateu-me forte com todas aquelas luzes da cidade na cara e algumas italianas a dançar por perto. Foi muito cosmopolita e sensual, principalmente para mim que passo muitas noites a ver filmes como aquele do Mel Gibson com um castor na mão. Algum tempo depois, os Wavves apareceram no mesmo palco. Depois de, no dia anterior, ter convivido com os Black Lips e os Oh Sees, ver um concerto dos Wavves é quase a mesma coisa que assistir a um compacto dos Teletubbies com guitarras nas mãos. O concerto foi bastante divertido, mas o gajo é completamente picuinhas com o som do monitor e as canções por vezes são chatas. Os Wavves ainda tocaram uma pequena versão de Sublime (“Santeria”) e uma completa dos Sonic Youth (“100%”). Não fazia sentido nenhum tocar a “100%” e deixá-la nos 60 ou 70 porcento. Depois fui comer barritas de cereais e dormir para o carro em vez de ver os XX. Suponho que me aconteceria a mesma coisa se tivesse optado por ir ao concerto e nem sequer comia barritas. Fotografia por Mauro Mota
_ MAIS PRIMAVERA SOUND
Muita gente, alguma música, poucos calções de ganga