Nan Goldin, Cookie Muller, heroína e a vida em Provincetown
Bruce Weber e Philippe Marcade na praia, Truro, Massachusetts, 1975. Cortesia de Nan Goldin e Matthew Marks Gallery.

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mate-me por favor

Nan Goldin, Cookie Muller, heroína e a vida em Provincetown

Quando “fazer arte” não era um hobby. Era sua vida.

Da coluna de Mate-me Por Favor

Os EUA costumavam ter santuários pelo país onde fodidos, esquisitões e outras pessoas "marginalizadas" podiam se esconder e viver sem muito contato com a América "normal". Lugares como o centro de Nova York em East e West Village, Haight Ashbury em São Francisco e, claro, Provincetown, aquele grande posto artístico na ponta do Cape Cod. Esses lugares forneciam acomodações baratas e toleravam estilos de vida bizarros. Aleluia!

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Agora, a maioria desses santuários foi destruída por yuppies e gentrificação, ou no caso do centro de NY, estudantes imbecis que fizeram de East Village sua festa de fraternidade particular. E para sempre se foram aqueles lugares especiais onde você podia viver sua vida do jeito que queria, então achamos que era hora de relembrar a existência deles para todos os moleques que vivem dizendo pra gente que nasceram tarde demais — Quaaludes, discos 45 rpm, black beauties, filmes em 16 mm e quando "fazer arte" não era um hobby. Era sua vida.

Philippe Marcade é um grande amigo que viveu uma vida selvagem como vocalista do Senders, e andava com Johnny Thunders e Jerry Nolan, além de Richard Hell, Dee Dee Ramone, Debbie Harry e Chris Stein. Philippe é uma das vozes apresentadas no nosso livro Mate-me Por Favor: A História Sem Censura do Punk, que celebramos com uma edição especial de 20 anos. Recomendo.

Mas ele era mais que um punk rocker francês que frequentava o CBGB e o Max's Kansas City. Ele estava envolvido com um bando de descontentes que celebravam a ideia do "amadorismo inspirado", no solitário posto distante de Provincetown, Massachusetts, antes que o lance comercial fodesse com a cidade. Esse grupo incluía Channing Wilroy, um ator que aparece em vários filmes do John Water, o crítico de cinema Dennis Dermody, o falecido fotógrafo David Armstrong e outros artistas experimentais.

Philippe também era amigão da fotógrafa Nan Goldin e da escritora/atriz Cookie Mueller, duas mulheres que basicamente fundaram o estilo das garotas punk de hoje. Elas eram independentes, inteligentes, rebeldes, bissexuais e histericamente engraçadas. E elas fizeram tudo isso antes dessa coisinha chamada punk. Essa é a história de um verão dos anos 70 que eles passaram em Cape Cod.

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Philippe Marcade: Conheci Nan Goldin em Boston – ela e David Armstrong. Sabe quem ele é? Ele é um fotógrafo que ficou bem famoso, e também era de Boston. Nan e David eram amigos, e eram os melhores amigos do meu amigo Bruce. Nan era muito engraçada nessa época, ela me fazia rir toda hora, mas ela também tirava fotos das pessoas discretamente, sabe, para pegar coisas íntimas.

Nan era tipo alguém que tira as fotos quando você está de férias, sabe? Tipo fotos de verão.

Nan Goldin: Quando tinha 15 anos, fui para uma escola em Summer Hill, Inglaterra, que era uma escola gratuita que não tinha aulas. A maioria dos estudantes tinham sido expulsos das escolas normais, então a gente corria por lá pelados, transando, e eu fiquei obcecada por tirar fotos, então eu basicamente virei a fotógrafa da escola.

Philippe Marcade: Cara, eu não tinha ideia que as fotos da Nan iam ser tão famosas! Quer dizer, ela basicamente tirava fotos normais, sempre coloridas, que mandava revelar em qualquer lojinha. Mas não era como se ela estivesse fotografando só por diversão, sem pensar em nada. Ela adorava aquilo; ela esperava viver disso, e estava sempre com a câmera dela. Acho que essa era a paixão dela.

Nan Goldin: David Armstrong foi a primeira pessoa que fotografei e isso continuou até a morte dele. David parecia uma mulher e começou a se vestir em semi-drag. Através dele conheci toda uma comunidade de drag queens. Um ano depois que saí da "escola hippie gratuita", comecei a morar com essas drag queens em Beacon Hill, e eu achava que elas eram as pessoas mais lindas que conheci na vida.

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Isso foi no começo dos anos 70 em Boston, e nessa época as drags não podiam trabalhar, não podiam sair à luz do dia, então vivíamos uma existência noturna, e a gente ia todo dia para o mesmo bar, menos nas noites de quinta, quando elas iam para um bufê de frios.

Virei a fotógrafa do bar, mesmo com o lugar sendo comandado pela máfia, mas eles gostavam de mim, então me deixavam fotografar o tempo todo. E eu levava as fotos para a farmácia pra revelar — eu não tinha uma sala escura — e elas voltavam em formato pequeno, e as drags faziam uma pilha para ver quem tinha sido mais fotografada e rasgavam as fotos que não gostavam, o que eu aceitava completamente.

Philippe Marcade: Também conhecemos Cookie Mueller e seus amigos em Boston. Ela nos falou sobre Provincetown e disse que tinha uma casa lá. Cookie convidou a gente para visitar a cidade, para passar o final de semana com ela, e essa foi a primeira vez que fomos para Provincetown.

Channing Wilroy: As pessoas mais loucas vinham para Provincetown, gente que não se encaixava em Cleveland ou em qualquer lugar de onde fossem. Era meio que um lixão de perdedores. E nós todos nos dávamos muito bem.

Philippe Marcade: Todo mundo estava bêbado o tempo todo, então acho que todo mundo se dava bem.

Channing Wilroy: A cidade era muito permissiva nesse sentido. Todo mundo era bem-vindo lá; você podia ser o que quisesse.

Cookie e John fofocando na noite de estreia de Pink Flamingos , Provincetown, Massachusetts, 1976. Foto cortesia de Nan Goldin e Matthew Marks Gallery.

Nan Goldin: A Cookie era uma das minhas melhores amigas, éramos uma família, e não havia distinção entre gay e hétero. Eu e a Cookie éramos bissexuais, e realmente vivemos isso. Sabe, não só na teoria, de verdade.

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Philippe Marcade: A Cookie tinha um filho, o Max. Naquela época ele já tinha nascido.

Dennis Dermody: A Cookie tinha acabado de ter o Max. Fui para casa dela um dia e elas estava descascando batatas, com o Max chorando, gritando do lado dela.

Então eu perguntei "O que está acontecendo?"

E a Cookie disse "Bom, as batatas são amigas dele…"

E eu pensei "Meu deus!"

Mink Stole: A Cookie queria chamar o Max de "Noodles", mas o hospital se recusou a colocar esse nome na certidão de nascimento. Então ela teve que chamar ele de Max. E ele aparece como "Baby Noodles" no [filme de John Waters] Pink Flamingos.

Dennis Dermody: Fiquei feliz que o Max não ficou com o nome Noodles. Noodles Mueller?

Philippe Marcade: A Cookie deu o endereço dela e a gente foi até P-Town de carro, mas chegamos lá tarde da noite porque meio que nos perdemos. Não conseguimos achar a casa dela no começo, mas quando achamos todas as luzes estavam apagadas. Acho que eram três ou quatro da manhã, e a porta estava destrancada, então a gente simplesmente entrou.

Não queríamos acordar a Cookie, então não acendemos as luzes. Achamos um sofá que abria, como uma cama, e fomos dormir.

E eu acordei na manhã seguinte esperando ver a Cookie, mas não era a Cookie — era uma espingarda, a dois centímetros do meu nariz!

E esse carinha segurando a espingarda me disse "Quem é você, e que diabos você está fazendo aqui?"

O cara estava de pijama, com a arma apontada para mim, e o filho dele estava do lado, apontando outra arma para o Bruce.

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Então levantamos os braços, ainda na cama, e explicamos que estávamos procurando a casa da Cookie Mueller. Ele a conhecia, e disse que ela morava no final da rua. Ele entendeu a situação e se acalmou. Ele estava de pijama, mas depois voltou para a cozinha de uniforme, e foi quando eu percebi: "Caramba, o cara é policial!" Acontece que entramos na casa do xerife de Provincetown! Estávamos na casa de um policial. Mas ele era muito legal, sabe? Ele fez café da manhã pra gente, e não parava de rir. Ele até perguntou como a gente gostava dos nossos ovos, e eu disse "Frito, gema mole", há, há, há!

Susan Lowe: A Cookie e eu éramos garotas malvadas quando estávamos juntas, sabe, como Eddie Haskell e Eddie Haskell. Queríamos ver quão rebelde a gente conseguia ser e ainda se safar. A gente usava [a droga] black beauties e Old Crow, ou qualquer coisa assim — não lembro. A gente pegava carona de minissaia e usávamos esmalte preto. Era uma zona. Foi uma época incrível.

Cookie Mueller e Sharon Niesp dançando na Back Room, Provincetown, Massachusetts, 1976. Foto cortesia de Nan Goldin e Matthew Gallery.

Philippe Marcade: Acabamos ficando na casa da Cookie por um tempo. A gente curtiu tanto P-Town que decidimos alugar uma casa para o verão todo. Alugamos uma casa na Commercial Street, eu, Bruce, Nan Goldin e David Armstrong. Foi um verão muito divertido. Foi incrível mesmo.

Nan Goldin: A Cookie era a diva, a estrela em volta da qual nossa família gravitava, foi na casa dela que fizemos o jantar de Ação de Graças, onde ela serviu ópio e peru.

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Susan Lowe: Uma vez, Cookie, eu e Mink Stole fomos sequestradas por uns caipiras em P-Town. Entramos no carro deles porque eles tinham bebida. Aí percebemos que eles queriam fazer a gente se perder, aquele não era o caminho por onde a gente queria ir. Então começamos a escrever mensagens para o atendente do pedágio: "Socorro, nos ajude por favor".

Estávamos tentando passar os bilhetes, mas os caipiras nos pegaram e rasgaram os papéis. E o efeito do speed estava passando, sabe como é. Bom, talvez não saiba, mas é horrível.

Então a Mink Stole e eu pulamos do carro, e os caras aceleraram com a Cookie, e acabamos na casa desses outros caipiras. Sabe, gente dos Apalaches mesmo, então chamamos a polícia. Eu e a Mink fomos parar na delegacia. Eles encheram o saco da gente porque eu estava com um caderno. Eu era uma artista e tinha um caderno com rascunhos de nus, e eles queriam confiscar. E eu pensei "Que diabos vocês vão fazer com isso?" Provavelmente bater punheta na salinha dos fundos.

A Cookie conseguiu escapar [dos caipiras] de algum jeito e se escondeu na floresta, embaixo da bolsa dela. Mas não sei como ela tirou a bolsa dela do carro.

"Dava para sentir que algo novo estava surgindo. Tipo 'Chega desses hippies, mostre uma coisa diferente!' Então acho que essa é a influência de John Waters, e de seus filmes, claro." – Philippe Marcade

Philippe Marcade: A gente se divertiu muito com a Cookie em Provincetown naquele verão. Tinham muitas festas, e minha lembrança favorita, que mudou minha vida, foi que meu amigo Bruce trouxe uma mala velha cheia de discos de 45 rpm que tinham sido do irmão mais velho dele. A gente tinha um pequeno toca-discos, então colocávamos ele na varanda à noite, na frente da casa, e colocávamos todos aqueles discos pra tocar. Eram uns discos raros de rock and roll, rhythm and blues, rockabilly, surf, um monte de coisas dos anos 50 e começo dos 60. Aquela virou minha paixão durante aquele verão.

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Ouvi todos aqueles discos e descobri essas coisas mais velhas pela primeira vez. Tipo "Woman Love" do Gene Vincent, "The Swag" do Link Wray e "I Put a Spell on You" do Screaming Jay Hawkins, e clássicos como "Louie Louie" e "Wooly Bully", muito rhythm and blues, rockabilly, surf, além de Dick Dale, Ventures, Trashmen — esse tipo de coisa. Na época eu não conhecia nenhuma dessas músicas; foi uma revelação.

Provincetown era perfeita: ficar na frente de casa, aqueles carros antigos estacionados na rua, pisca-piscas pendurados na varanda. Simplesmente perfeito.

Quando descobri esses discos, eu não conseguia parar de ouvi-los. Passei o verão inteiro fazendo isso — bom, nas noites em que não tinha alguma festa doida rolando, há, há, há!

Então foi isso que realmente me fez curtir rock and roll antigo.

John Waters: Divine e eu costumávamos ouvir Ike e Tina Turner quando estávamos roubando lojas, e fomos assistir Ike e Tina Turner Review quando estávamos no colegial. Não ligo para o que todo mundo diz, a Tina era melhor quando estava com o Ike. Quer dizer, não a culpo por ter largado o cara, mas…

Philippe Marcade: A primeira vez que vi um cara de cabelo azul foi em Provincetown.

Earl Devreis: Eles eram um bando de gente muito, muito estranha de cabelo pintado. As roupas e a maquiagem corporal e facial deles eram muito à frente de seu tempo.

Philippe Marcade: Dava pra sentir que algo novo estava surgindo. Tipo "Chega desses hippies, mostre uma coisa diferente!" Então acho que essa é a influência de John Waters, e de seus filmes, claro. E o John Waters ainda tinha cabelo comprido na época, mas com uma atitude muito punk. E qualquer um que se levasse muito a sério ou fosse esnobe recebia um "Foda-se" imediatamente. E eu curtia muito isso.

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Dennis Dermody: A Cookie era uma grande personagem, e toda vez que ela saía pela porta, a vida dela era uma história. Quer dizer, ela dizia "Vou buscar leite", e alguma coisa lunática acontecia com ela. A vida dela era assim o tempo todo!

Sharon Niesp, a namorada da Cookie, tinha um dinheiro que precisava levar para o banco, e elas acabaram derrubando a grana numa poça, então trouxeram de volta para casa e colocaram no forno para secar, e o dinheiro pegou fogo! Esse tipo de coisa acontecia o tempo inteiro. Ela contava pra gente o que tinha acontecido naquele dia com ela e eu pensava "Jesus, isso é bom demais!"

Philippe Marcade: O grupo de pessoas com quem a gente andava em P-Town era formado por umas 25, 30 pessoas, e toda noite a gente ia para o mesmo clube chamado A-House.

Mary Vivian Pearce: O A-House era o bar que a gente gostava de frequentar.

Dennies Dermody: Conheci Cookie em Provincetown. Me mudei para lá no começo dos anos 70 e o lugar era incrível naquela época. Tinha uma garota chamada Black Beverly que tinha tomado ácido demais e ficou um ano inteiro andando de costas; ela tinha dores de cabeça e dizia que andar assim aliviava. E, como era Provincetown, ninguém achou nada de estranho nisso, então você via ela andando de costas pela cidade. Uma vez eu e a Cookie espiamos pela janela dela e ela estava andando de costas dentro de casa, então não era piada. Mas esse era o tipo de pessoa típica que morava lá.

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Conheci a Cookie e fizemos amizade, começamos a andar juntos, e a gente ia ao cinema também.

Philippe Marcade: Tinha esse cinema pequeno que o John Waters meio que se apropriou, e ele exibiu Pink Flamingos lá, e foi muito louco porque eu estava assistindo o filme com todos os atores que estavam nele! Todo mundo se esgoelava quando alguém conhecido aparecia na tela!

John Waters: Originalmente, as estreias em P-Town eram num cinema de arte, mas aluguei um cinema próprio, e tinha que pagar do meu bolso a porcentagem dos assentos vazio. Então a gente saía pelas ruas distribuindo panfletos. Não eram grandes eventos, só estreias locais, mas a gente sempre lotava a casa.

Philippe Marcade: Foi incrível assistir Pink Flamingos dentro de uma nuvem de fumaça de maconha naquele cineminha, há, há, há! O público era mais engraçado que o filme; todo mundo gritando e fazendo zona. E também lembro de sair do cinema e ver todo mundo que estava no filme lá fora. Foi muito legal.

"Vivi 15 anos na escuridão. Eu nunca saía durante o dia, e do nada eu estava vivendo naquela luz toda." – Nan Goldin

Dennis Dermody: A Cookie dizia "Vou me vestir e ir para Hyannis pegar meu cheque do seguro social…"

E eu via ela pegar carona na estrada com um casaco de pelo de macaco, tipo "Cookie Mueller!" Quer dizer, ela era lindíssima, e eu pensava "Ela acha que isso é normal? Ela não tem a menor ideia do que é normal!"

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Ela era única. Ela era incrível.

Nan Goldin: Admiro muito pessoas que conseguem se recriar, e que manifestam suas fantasias em público. Acho isso muito corajoso.

Philippe Marcade: Sabe, é engraçado isso, a Nan nunca tirava fotos olhando pelo visor da câmera. Por isso ela tem essas fotos incríveis de um ângulo tão estranho. As pessoas não estavam vendo a câmera ali; elas não estavam posando, porque não sabiam que ela estava fotografando. A câmera ficava pendurada no pescoço dela, e aí você ouvia um "clique", mas ela não estava olhando pelo visor. Então a Nan me fotografou pelado quando eu não estava vendo. Ela simplesmente tirava foto das pessoas sem elas se darem conta — era isso que ela fazia.

Nan Goldin: Eu sabia desde cedo que o que eu via na cultura popular não tinha nada a ver com a vida real, então eu queria registrar a vida real. Aquela necessidade psicológica incluía andar sempre com a minha câmera e registrar todo aspecto da minha vida e da vida dos meus amigos, então a câmera funcionava parcialmente como a minha memória. E quando comecei a beber e usar drogas, eu queria lembrar tudo que tinha acontecido na noite anterior. Minha câmera me permitia estar fora de controle e sob controle ao mesmo tempo.

Philippe Marcade: Nosso último verão em Provincetown foi insano. O quartinho que alugamos em cima do A-House era muito barato, já que a música era superalta até as quatro da manhã. Toda noite!

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E estávamos bem em cima [do bar], e não tinha como dormir naquele quarto até as quatro da manhã, então a gente tinha que sair! Mas em 1976, a cena de P-Town estava ficando cada vez mais gay, e mesmo não tendo problema com isso, a coisa estava ficando meio entediante pra mim.

Então perdi o interesse — muito gay, muito caro — e pra mim, muito junkie. E quando me mudei para Nova York, comecei a ver a Nan cada vez menos porque entrei de cabeça na cena punk, e ela não. Ela começou a curtir mais a cena de arte, então meio que perdi contato com ela nessa época. Às vezes a gente se encontrava, mas não muito.

Nan Goldin: Quando a Cookie começou a transar com homens, a namorada dela, Sharon, entrou em crise, e eu era a confidente das duas. Mas no meio dos anos 80, muitos de nós se viciaram em drogas, principalmente heroína e cocaína, então a linha entre uso e abuso foi cruzada. Cheguei num ponto do meu vício onde eu não voltava para casa por seis meses. Eu estava usando muito cocaína e de cinco a dez papelotes de heroína por dia.

Philippe Marcade: Fui junkie por um ano, mas flertei com a heroína por anos antes disso. Primeiro eu usava uma vez por mês, depois, uma vez por um ano, uma vez por semana, e aí, no último ano, todo os dias, há, há, há!

Por muito tempo eu dizia para mim mesmo "Eu não, sou mais esperto que os outros, posso me divertir, posso usar de vez em quando. Não vou ficar viciado. Nunca!"

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OK! Há, há, há!

Então finalmente parei com tudo. Chamei um amigo para me acompanhar, para ficar comigo, me impedir se eu tentasse passar pela porta. Eu sabia que era isso que eu precisava, alguém para ficar de olho em mim, porque eu não podia mais confiar em mim mesmo, sabe?

O que me fez fazer isso é que tive uma overdose sozinho em casa e acordei 12 horas depois com uma agulha enfiada no braço. Isso me assustou pra caralho, então achei que era melhor parar antes que algo desse muito errado.

Então parei. Mas dois meses depois, fodi tudo e fui comprar heroína, mas fui assaltado por um cara armado. O cara que me assaltou salvou minha vida, porque ele não só me roubou, mas quando tirou minha heroína, ele olhou pra mim e disse "Veado!"

Ele não só me roubou como me xingou, há, há há!

Fiquei com tanto nojo de mim que voltei para casa e tive um acesso de loucura. Quebrei tudo no meu apartamento, fiquei muito puto comigo mesmo!

E foi a última vez que tentei comprar heroína. Acho que se tivesse usado naquele dia, eu teria voltado a ser junkie. Mas aquele assalto finalmente resolveu essa história, porque milhares de pessoas tinham me chamado de veado antes, e eu não dei a mínima, mas aquele cara, naquele dia, realmente fez alguma coisa. Pensei "Estou de saco cheio disso". E nunca mais voltei a usar.

Nan Goldin: Fiquei numa clínica de reabilitação por dois meses em 1988, e depois três meses numa casa de passagem. Comecei a me fotografar e fotografar meu rosto, para descobrir como eu parecia sem drogas, e me encaixar de novo na minha própria pele. Foi um período de muito medo, e meio que uma crise de identidade.

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Nada era familiar; eu tinha vivido 15 anos na escuridão. Eu nunca saía à luz do dia, então do nada, eu estava vivendo naquela luz toda.

E, um ano e meio depois, eu estava forte o suficiente para mudar de volta para Nova York.

"Eu achava que não podia perder uma pessoa se a fotografasse o suficiente. Quando a Cookie morreu, percebi que não era assim que funcionava." – Nan Goldin

Philippe Marcade: Só fiquei com a Cookie em Nova York uma vez, quando terminei com a minha esposa. Ela me aceitou porque eu não tinha onde ficar. Na verdade, eu estava muito triste na época, e a Cookie basicamente me colocou de volta nos trilhos.

Sabe, de todas as garotas que conheci em Nova York, eu diria que a Cookie era a mais fantástica, de longe. Nunca saí com ela nem nada assim, mas ela era muito legal. Eu curtia muito ela. E ela era uma escritora incrível também.

Nan Goldin: A Cookie foi para a Itália e conheceu um artista italiano, Vittorio Scarpati. Alguns anos depois ela voltou para Nova York, e eles estavam casados, e os dois eram HIV positivo. Quando Vittorio morreu em setembro de 1989, a Cookie já tinha perdido a voz e não conseguia mais falar, não conseguia andar sem uma bengala… ela meio que desistiu.

Philippe Marcade: Sabe o que me chocou? Não quero falar mal da Nan Goldin, mas fui ver uma exposição dela no Guggenheim porque tinha uma foto minha, e eu queria ver. Mas tinha uma foto enorme da Cookie no caixão, e aquilo me deixou mal. Não consegui segurar as lágrimas. Não consegui, fiquei chocado. Então saí do museu, e fiquei um pouco puto com a Nan por mostrar aquela foto assim. Pensei "Bom, se eu estivesse morto, não ia querer que as pessoas me vissem assim!"

Nan Goldin: Eu achava que não podia perder uma pessoa se a fotografasse o suficiente. Quando a Cookie morreu, eu vi que não era assim que funcionava.

Philippe Marcade: Foi muito triste, todas as pessoas que morreram de AIDS, o marido dela tinha, e eles morreram um depois do outro, a Cookie e ele, sabe?

Cookie Mueller: Infelizmente, não sou a primeira pessoa que vai te dizer que você nunca morre. Você simplesmente perde seu corpo. Você vai ser o mesmo, só não vai ter que se preocupar em pagar o aluguel, a hipoteca ou com roupas da moda. Você vai se libertar das suas obsessões sexuais. Não vai mais ter vícios. Não vai mais precisar de álcool. Não vai ter que se preocupar com celulite, cigarros, câncer, AIDS ou doenças venéreas.

Philippe Marcade lançou um livro pela Three Rooms Press chamado Punk Avenue . É ótimo! (Até escrevi a introdução!) E se você ainda não leu o livro de Cookie Mueller Walking Through Clear Water in a Pool Painted Black , da Semiotext(e), pare o que estiver fazendo e compre agora. Prometo que você não vai se arrepender.

E, claro, se você não tem o da Nan Goldin, você é um babaca.

Leia mais sobre Cookie Muller na incrível história oral da vida dela A Picture of Cookie Mueller de Chloe Griffin, publicado em 2014 pela Bbooks Verlag. Algumas citações que usei neste texto são de Edgewise , então se você gostou desta história, vai adorar o livro!

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