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O Black Lives Matter Pode Ter Sucesso Onde Líderes como Farrakhan Falharam

Muitos comentários sobre o comício de sábado se focaram nas declarações Farrakhan, lembrando a todos os desafios de um movimento liderado por apenas um indivíduo. Ao rejeitar líderes, o BLM se protegeu desse tipo de problemas.
Touré
Por Touré

A necessidade extrema de ativismo negro se fez clara nos EUA no domingo, quando foi divulgado que duas investigações oficiais consideraram a polícia inocente na morte de um garoto desarmado de 12 anos. Tamir Rice foi baleado em novembro passado por um policial de Cleveland, quando brincava sozinho num parque com um brinquedo que lembrava uma arma. Em vez de um garoto vivo, Rice se tornou outro símbolo poderoso da luta contra a brutalidade policial.

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Os relatórios das duas investigações são um ataque ao bom senso. O fato de o policial ter acreditado que Rice tinha 18 anos e era perigoso quando chegou à cena, nos lembra da percepção de que todo garoto negro é perigoso e deve ser tratado com força. A velocidade com que ele foi baleado, apenas dois segundos depois que o policial estacionou, mal dando tempo de abrir a porta do carro, destaca como a polícia geralmente não protege a comunidade negra. Muito frequentemente, a polícia ocupa bairros negros sob a ideia de que cidadãos negros devem ser tratados como inimigos do estado. E o modo como o estado julgou publicamente o caso como justificado mostra quão pouco vidas negras importam nos EUA.

O Departamento de Justiça já colocou o Departamento de Polícia de Cleveland sob um acordo de consentimento, o que significa que isso foi considerado profundamente problemático e que necessita de reforma em todos os níveis. Eles vão passar os próximos anos sendo monitorados federalmente enquanto essas reformas acontecem. Ainda assim, apesar da resposta do governo federal, está claro que este governo não é capaz de proteger pessoas negras e pardas do próprio estado.

Precisamos de organizações e líderes que vão falar por uma comunidade que se sente sem voz. Quando digo nós, quero dizer os EUA, não apenas pessoas não-brancas. O país inteiro precisa de organizações pressionando por direitos e dignidade para pessoas negras. Ativismo negro, de Harriet Tubman e Sojourner Truth a Malcolm e Martin, exigiram historicamente que o país vivesse conforme seus ideais. E fazendo isso, tornaram este um país melhor. Quem poderia argumentar que emancipação, a queda da segregação e os avanços dos anos 60 não tornaram o país melhor? Está claro que precisamos de outra pressão por progresso agora, para tornar o país melhor para todos. O comício Justice or Else do sábado passado, uma comemoração dos 20 anos de aniversário da Million Man March, foi uma tentativa disso, ainda que atolado em alguns dos problemas das organizações old school.

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O comício foi organizado e liderado pelo controverso Pastor Louis Farrakhan, que lembra um teste de Rorschach humano. Alguns o consideram inspirador, outros o veem como problemático apesar de carismático, e alguns o acham antissemita, sexista e homofóbico. Apesar do nome conhecido, é impossível para Farrakhan se mover em círculos educados da mídia e o motivo é óbvio. Ele se desqualifica. Poucos negros norte-americanos poderiam desencadear os protestos enormes e históricos que Farrakhan organizou, mas ele também é seu pior inimigo.

Muitos comentários sobre o comício de sábado se focaram nas declarações misóginas e homofóbicas de Farrakhan. Ele deixa muito claro os desafios de um movimento liderado por um indivíduo. Se esse indivíduo diz ou faz algo deplorável, o movimento todo é descreditado? E é perigoso ter apenas um líder profético, mesmo que esse líder viva uma vida além de reprovações. Dr. King e Malcolm X estavam além de reprovações – o FBI e a CIA seguiram os dois, fazendo de tudo para desenterrar declarações ou ações embaraçosas que os desqualificassem. E eles fracassaram. Mas ainda assim, os movimentos deles estavam tão enraizados em suas figuras e em seu carisma que seus assassinatos prejudicaram o futuro do movimento. Apesar de uma liderança forte ser fundamental para construir um movimento, é problemático ter apenas uma pessoa à frente. O Black Lives Matter sabe disso.

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O BLM é propositalmente sem liderança e isso tem ajudado o grupo a se tornar vanguarda do ativismo negro moderno. Não há um indivíduo que seja o rosto do BLM, o que significa que não há uma pessoa para matar ou envergonhar numa tentativa de silenciar o BLM. Claro, há pessoas no centro da organização. Uma delas é Patrisse Cullors, que consta como cofundadora do BLM junto com Alicia Garza e Opal Tometi. Entrevistei Patrisse e outros membros do BLM no sábado no palco do Politicon, uma nova convenção política que acontece em Los Angeles.

O BLM está numa encruzilhada. Ele pode crescer para uma versão moderna do Movimento pelos Direitos Civis e ter um impacto durador e considerável nos EUA. Ou pode queimar toda sua energia e se tornar uma nota de rodapé como o Occupy. Eles já mudaram o diálogo nos EUA para focar em violência policial contra negros e pardos, e conseguiram levar isso para o centro da corrida eleitoral. Mas isso ainda não é, atualmente, uma mudança duradoura. O Occupy também mudou o discurso, mas a insustentabilidade da distribuição desigual de riqueza continua.

Patrisse sabe que muitos veem o BLM nesse ponto crítico, e é cuidadosa quando falam sobre seguir em frente estrategicamente. Depois de uma hora com ela, percebi que ela é mais guiada pela cabeça que pelo coração, sempre pensando em termos de longo prazo e na imagem maior. Ela não está interessada em fama, mas é carismática, apaixonada e inteligente o suficiente para conseguir o que quer. Ela é uma mulher de grande energia e espírito arrojado, profundamente comprometida com mudanças duradouras. Ela está aberta a conselhos das gerações anteriores de liderança e mencionou ter mentores do Movimento Pelos Direitos Civis.

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Mas apesar de o MDC ter alcançado tanto se ligando ao Partido Democrata, Patrisse não está interessada em aliar o BLM com o partido. Ela diz que o BLM não vai apoiar nenhum candidato. A pressionei nessa questão: endossar o candidato vencedor poderia levar o BLM a ter alguma influência com a autoridade eleita. Essa é a maneira tradicional como interesses especiais lutam pelo que precisam: entregamos nossos votos ao candidato e ele nos entrega as mudanças quando estiver no mandato. Patrisse disse que o BLM não vai jogar esse jogo. "Isso não funcionou com Barack Obama", ela disse.

Patrisse está mais interessada em se aliar a colegas no exterior para construir um movimento de resistência global. Ela veio para o Politicon com um grupo de ingleses usando camisetas que diziam "1518 pessoas mortas sob custódia na Inglaterra e País de Gales desde 1990. 0 condenações". Patrisse também falou de uma visita recente a Palestina e como isso a fez considerar a luta das pessoas não-brancas em termos globais. Apontei que no fim de suas vidas, Malcolm e Martin falaram sobre globalizar seus movimentos. Se foi isso que levou a morte deles é outra história, mas tive que perguntar a Patrisse se ela temia por sua vida. Ela disse que sim. Ela disse que a polícia invadiu e revistou sua casa em várias ocasiões, que acredita que seu telefone esteja grampeado e que suas mensagens eletrônicas são monitoradas.

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Foto via Instagram.

A nova tática do BLM para empoderar as pessoas é um aplicativo, o Mobile Justice App (atualmente disponível na Califórnia como Mobile Justice California), que permite que vídeos de interação com a polícia sejam transmitidos diretamente de celulares para a ACLU (União Americana Pelas Liberdades Civis). No segundo em que a gravação para, o vídeo é automaticamente enviado para a ACLU, significando que os policiais não podem obrigar a pessoa a apagar o vídeo, o que muitos dizem já ter acontecido. Essa é uma maneira poderosa de empoderar cidadãos e criar mais vídeos, uma das principais razões para a brutalidade policial ter se tornado um assunto tão grande atualmente. Esse tipo de crime acontece desde sempre, mas sem vídeos, sem provas, era impossível fazer as pessoas confiarem na palavra das vítimas negras. A onipresença de celulares com câmera transformou a relação entre os negros norte-americanos e a polícia. Mas encorajar mais pessoas a policiar a polícia significa encorajar as pessoas a colocar a cabeça na boca do leão. Filmar uma interação tensa com a polícia pode ser uma documentação valiosa do estado em ação e pode ser mostrar uma prova crucial no final das contas, mas também coloca a pessoa segurando o celular sob risco de ser presa ou tratada com violência pela polícia.

As pessoas que querem filmar a polícia precisam estar preparadas: elas podem acabar se tornando o tema do próximo protesto. O representante da ACLU no painel, Hector Villagra sugeriu que aqueles que queiram filmar a polícia fiquem a pelo menos 6 metros de distância da cena. Na maioria dos estados norte-americanos, as pessoas têm o direito de filmar a polícia dessa distância. No entanto, os policiais podem definir o que consideram uma conduta desordeira e geralmente, quando se sentem ameaçados, agem com pouca consideração às leis.

Patrisse disse que cofundou o BLM em parte por causa da morte de seu irmão sob custódia da polícia. Ela disse que sentiu a necessidade de fazer alguma coisa e não encontrou uma organização política fazendo o trabalho que precisava ser feito. Patrisse viu o vácuo de uma liderança polícia decorrente dos assassinatos dos anos 60 e, como uma verdadeira millennial, se levantou para construir uma organização para preencher esse espaço. O BLM não está tentando ressuscitar aquela antiga infraestrutura de liderança. Em vez disso, ele tem se adaptado aos tempos e construído algo novo, que está pressionando os EUA a levar vidas negras a sério. Se o grupo vai realmente conseguir uma mudança duradoura, é preciso esperar para ver.

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Tradução: Marina Schnoor

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