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Apu pode deixar "Os Simpsons" devido a acusações de racismo e o Mundo está todo lixado

Uma grande perda para a série e uma perda ainda maior para a liberdade de expressão.
Homer Simpson, Marge Simpson e Apu
Foto por FOX via Getty Images.

Nos últimos dias, a comunicação social foi inundada pela triste notícia de que, ao que tudo indica, os autores da série The Simpsons estão a preparar-se para retirar Apu do elenco. Para sempre. O indiano-americano dono da mercearia, que integra a série da família mais cómica da televisão desde 1990. Ainda não foi oficialmente confirmado, mas, segundo o produtor de televisão Adi Shankar, várias fontes ligadas aos Simpsons ter-lhe-ão dito que o personagem iria abandonar de vez o ecrã para cortar a controvérsia pela raiz. A razão para isto é aquela que, no século XXI, já conhecemos de ginjeira: pessoas que se ofendem e que pretendem calar quem as ofende, reclamando a omnipresença do politicamente correcto em todo e qualquer recanto da comunicação - até na comédia.

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As acusações de que Apu representava um estereótipo ofensivo, “com um pingo do veneno que é o racismo”, surgiram em 2017 num documentário feito pelo comediante norte-americano Hari Kondabolu, intitulado “The Problem with Apu”. Desde então, a questão tem sido falada e debatida por todos, quer pelos espectadores, quer pelos escritores e actores da série, dentro e fora do ecrã. Num episódio lançado em Abril, Lisa Simpson comenta com a mãe Marge, enquanto olha para uma fotografia de Apu, “Uma coisa inofensiva que começou há anos e foi aplaudida, hoje é politicamente incorrecta. O que é que se pode fazer?”.

Não me interpretem mal – apoio o politicamente correcto, tanto como apoio a ideia de que todos nos devemos esforçar para não ofender ninguém, muito menos em questões de raça, orientação sexual e identidade de género. Mas, também sou fã absoluta da liberdade de expressão e que, especialmente na comédia, esta não deve ter limites. Neste caso específico, que alguém se sinta ofendido parece-me parvo, mas respeito, porque não vivo na mesma pele que um indiano-americano e porque todos nós temos o direito de nos sentirmos ofendidos. Mas, também todos temos o direito de dizer o que queremos - a liberdade de expressão assim o permite e é uma via de dois sentidos, não dá para vir mandar calar os outros, só porque a ti te convém.

Uma coisa é, como mulher, ver décadas e décadas de filmes em que todas as actrizes são bonitas, porque as feias não aparecem na televisão, ou que, de repente, num anúncio sobre carros esteja uma mulher tipo prémio de concurso de televisão matinal sentada no lugar do passageiro porque, ao que parece, se tiveres um bom carro sacas uma boa gaja. Isso pode ofender-me (não ofende porque não sou de me ofender, acho só publicidade enganosa), mas, ainda assim, não peço que esses anúncios sejam retirados do ar – peço apenas que se eduque as mulheres a saberem identificar o estigma por detrás dos mesmos.

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Outra coisa completamente diferente é a comédia. Não é por ser loira que levo a peito as piadas sobre loiras, porque elas são feitas unicamente para fazer rir. A maior parte das pessoas que as conta, acredito, não acha verdadeiramente que ao seres loira és, automaticamente, mais estúpida. A comédia usa o exagero, a ironia, brinca com estereótipos e preconceitos e, quando é boa – como é o caso de Os Simpsons – usa-os não para os validar, mas sim para te abrir os olhos. O riso é uma óptima forma de ensino, de introduzir questões pesadas de forma mais simples e facilitar a sua compreensão.


Vê: "Werner Herzog explica-nos a Internet"


Mas, vivemos na era da ofensa. Em qualquer post nas redes sociais, não importa sobre o quê, há alguém que se ofende. Ofendemo-nos com manchetes de jornais, com opiniões alheias, com dados estatísticos, com a ciência, com memes, com uma deputada a pintar as unhas e, porque neste mundo de ofendidos nada escapa, também com Os Simpsons. Uma série de animação, que existe deste 1989 e cujas personagens são, todas elas, uma caricatura exagerada – Homer, um estereótipo do homem branco americano da classe operária, Marge das donas de casa que se sentem invisíveis à luz do comportamento macho man do marido, Bart dos adolescentes que acham que tudo lhes é devido sem que tenham de dar o que quer que seja em troca, Lisa que é a derradeira millennial, arrogante ao ponto de pensar que sozinha, com o seu intelecto apurado, os seus estudos avançados e o seu poder feminista vai mudar não só a sua família como o Mundo inteiro e Mr. Burns como a personificação do mal corporativo.

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E assim podíamos seguir, personagem a personagem, sendo que o mais triste de tudo é que estou convencida de que qualquer influencer ou plataforma viral tem nas mãos o poder de retirar da televisão qualquer uma delas, com o simples motivo de se sentir ofendido. Com mais um grito estridente pelo politicamente correcto onde ele, simplesmente, não pertence, porque a comédia não tem que ser escrita de certa maneira – tem apenas que te fazer rir, ou de te fazer pensar enquanto te ris.

Sim, há muito material ofensivo por este mundo fora (por exemplo em todo e qualquer discurso de Trump ou Bolsonaro), mas a liberdade de expressão é mesmo assim. Na comédia não há espaço para limites nem para politicamente correctos, são piadas e as piadas não querem ofender-te. Relaxa. Vivemos num Planeta repleto de horrores, de rotinas merdosas, de desigualdades e de gente profundamente marada da cabeça – o problema não é, nem nunca foi, a comédia. Ela é, aliás, a cola capaz de nos unir a todos, de nos fazer ver outra perspectiva através de analogias e de, num dia especialmente triste, nos fazer rir. Mandar calar a comédia não é pro-igualdade, é anti-democrático. Pena que - embora por vias jurídicas mandar calar uma série seja ilegal - o peso da Internet e da ofensa generalizada possa tantas vezes ser usado como arma de censura.


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