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O 17 de Junho em BH

Formada por jovens "virgens de protestos", a multidão de BH estava em êxtase.   ...

Na tarde de 17 de junho, saí de casa preocupado. Existiam duas grandes manifestações acontecendo na capital mineira. Uma dos grevistas da Polícia Civil de Minas Gerais e dos Professores da rede estadual. Eles sairiam da Igrejinha da Pampulha, cartão postal de Belo Horizonte e iriam até o Mineirão, que fica relativamente próximo. A outra era aquela para a qual eu me dirigia, que marcava um Ato do Comitê Popular dos Atingidos pela Copa - COPAC/BH e era a segunda grande passeata a acontecer em BH desde a violenta repressão dos protesto do MPL em SP. A ideia era percorrer a pé os nove quilômetros que separam o centro de BH do maior estádio de Minas Gerais - que no dia sediava a partida entre Tahiti e Nigéria, válida pela Copa das Confederações -, e se juntar à manifestação dos professores e policiais civis.

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Cheguei à Praça Sete, marco central de Belo Horizonte, às 13h45, e descobri que a população já havia tomado o cruzamento das Avenidas Afonso Pena com Amazonas, dois dos corredores mais movimentados da cidade. Logo que avistei a multidão, constatei que o protesto já tinha mais gente do que as oito mil que compareceram à "reunião" convocada no sábado anterior para a mesma região central de BH. Na ocasião, caminhamos sem sermos incomodados pela PM. Era final de semana e a massa pacífica não ofereceu perigo ao estado. Dessa vez, a marcha tinha um objetivo mais arrojado: chegar até o Mineirão e protestar contra a Copa do Mundo diante da imprensa internacional. A obsessão do Senador Aécio Neves em ser presidente utilizando Minas Gerais como sua vitrine e o histórico de violência da PMMG na repressão aos movimentos sociais e grevistas não saíam da minha cabeça. Estava tenso.

Por volta das 14h, o imenso contingente de pessoas começou a caminhar. Era emocionante ver o apoio popular que a multidão recebia, com muitos moradores acenando lençóis brancos, bandeiras do Brasil e papéis picados. "Vem, vem, vem pra rua, vem", cantavam felizes os manifestantes e eram atendidos, pois o grupo ficava maior a cada passo que dava. A multidão era formada em sua maioria por jovens "virgens de protestos" que estavam em êxtase.

Manifestantes alcançam primeira barreira rumo ao estádio.

Subimos o viaduto (em SP chamam de elevado) que liga o Centro de BH à Avenida Antônio Carlos, via de acesso ao estádio Mineirão. Na noite anterior, fui dormir pensando que aquele era um ponto onde poderíamos sofrer uma emboscada da PMMG. Contudo, a polícia seguiu fazendo bem o trabalho dela e os manifestantes puderem continuar a espalhar suas mensagens à população que acompanhava de outras pistas do chamado Complexo da Lagoinha e seus muitos viadutos e vias expressas. "Ô motorista, ô trocador, me diz aí se seu salário aumentou." Passou a tensão, eu estava feliz.

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Chegamos à Avenida Antônio Carlos por volta das 15h30. Era muita gente. Tanto que a manifestação ocupou todas as pistas sentido estádio, mais as faixas de ônibus. Ninguém imaginava que tantas pessoas iriam às ruas em um protesto marcado para 13h de uma segunda-feira. "Você tá vendo isso, Marcela, nós duas aqui fizemos a diferença", gritava uma adolescente de cerca de 15 anos para a amiga que a acompanhava. Todos estavam orgulhosos.

Coronel Cláudia ao telefone.

Quando chegamos em frente ao Hospital Belo Horizonte, um fato me chamou a atenção. A Coronel Cláudia, comandante do policiamento da capital mineira, estava em meio aos manifestantes. Logo ela foi cercada e aplaudida. A multidão que vaiava insistentemente qualquer bandeira política aplaudia a chefe da PM em BH. "Isso é que é polícia! Isso é que é polícia!" gritavam os muitos que a cercavam para tirar fotos ao lado da "Coronel amiga dos manifestantes". "Podem protestar à vontade. Só não me peçam para ser deputada, porque eu odeio política", dizia com um sorriso no rosto entre uma foto e outra. Muitos ouviam isso e iam ao delírio. Enquanto isso, um major registrava todos os depoimentos com o celular. Eu estava desconfiado.

PMMG ataca manifestantes na região do estádio Mineirão.

A caminhada de mais de sete quilômetros seguia e ia sendo engrossada pelas pessoas que estavam no caminho. Algumas manifestantes decidiram escrever com canetinha nos ônibus parados e alguns arriscaram pixar mensagens contra a repressão policial e a FIFA nas paredes dos viadutos. Isso era acompanhado de muitas vaias do grupo central. Nessas horas, surgia o famoso grito "Sem violência, sem vi-o-lência". Ninguém sabia ainda, mas a violência verdadeira nos aguardava logo a frente. No limite entre os bairros Ermelinda e São Francisco, a manifestação encontrou a tropa de choque da PM, com cerca de 50 homens. Eram 16h40 e estávamos parados.

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Aqui, um parêntese em meu relato cronológico. Uma coisa que tem me chamado a atenção nos protestos que tenho acompanhado é que a juventude não tem paciência para ficar parada ouvindo discursos inflamados. Todos querem caminhar, correr, andar de bike e skate pelas ruas da cidade espalhando seu(s) pensamento(s). Transporte é uma pauta importante por causa desse desejo. As metrópoles brasileiras pararam e estão impedindo os encontros. Os jovens querem se movimentar. "Mobilidade pelo mundo", como canta a banda mineira Graveola e o Lixo Polifônico.

Tropa de Choque gastando munição.

Aguardamos parados que a PMMG recuperasse o bom senso. Meia hora depois, conseguimos avançar. Mas nossa liberdade durou pouco. Na entrada da UFMG, um novo pelotão de policiais nos aguardava. Agora eram muito mais. Uma primeira fileira era composta por policiais sem nenhum equipamento de repressão, apenas caras fechadas. Por trás deles, um pouco atrás, uma grande fileira do choque, com muitos homens armados com bombas e balas de borracha seguidos de um batalhão da cavalaria. Era um sinal de que eles estavam preparados para reprimir quem tentasse continuar caminhando.

Encontrei novamente a Coronel Cláudia. Ela me disse: "Se eu fosse vocês, ficaria parada aqui. Aproveitando o batuque que vocês estão fazendo, dançando e gritando o que vocês quiserem". Naquela altura, não tínhamos mais população nos testemunhando. Estávamos no meio do nada, com a mata da UFMG à esquerda e algumas lojas fechadas à direita. De que adiantaria ficarmos parados ali? "Sinto muito, mas dali para frente é a área FIFA. Vocês podem manifestar aqui, mas não lá", reforçou a coronel.

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PMMG usa helicóptero sobre manifestantes.

Fora a Coronel, ninguém da PMMG falava com a gente. Não havia um alto-falante que pudesse orientar a horda de mais de 40 mil pessoas que estava sendo impedida de caminhar pelo estado de Minas Gerais em nome dos interesses da FIFA, como me disse a própria comandante do policiamento de BH. Independente disso, o clima era de calma. Ninguém imaginava que a Polícia iria agir violentamente contra uma massa tão grande e pacífica. O batuque seguia e algumas pessoas buscavam ambulantes para tomar uma cerveja. Alguns decidiram passar pela primeira barreira de policiais, já que ela não ameaçava ninguém. Era uma armadilha. Sem nenhum aviso ou orientação, a PMMG e o Choque instauraram o caos.

Muitas bombas e balas de borracha foram atiradas a esmo na manifestação. Um helicóptero fazia manobras arrojadas e rasantes para espalhar o gás por todos os manifestantes. Jovens pacíficos com cartazes na mão viraram alvo da estupidez policial e eram agredidos a esmo. Manifestantes corriam desesperados enquanto outros tentavam organizar a multidão temendo que a correria gerasse mais feridos e que aqueles deixados para trás fossem massacrados. Eu estava puto.

Manifestantes suplicam por não-violência da PMMG.

No meio da confusão, encontrei a Coronel Cláudia novamente. Ela estava assustada. No primeiro momento, temi pela segurança dela. Mas logo percebi que ela estava cercada por pessoas que formaram um cordão de isolamento em volta dela (alguns deles, especialmente os fortes de cabelo cortado e barba feita pareciam policiais infiltrados). Eu e outros manifestantes tentávamos fazê-la caminhar conosco, de braços dados, em direção ao Choque para fazê-los parar. Estranhamente, o grupo que a cercava era radicalmente contra essa ideia e começaram a levá-la para o fundo da manifestação. Perguntei a ela porque a polícia comandada por ela estava jogando bombas na gente. "Eu não dei a ordem. Eu estava aqui e me machuquei com as bombas. Foi o Choque."

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Eu perguntei então quem havia dado a ordem e se aquilo era um ato de insubordinação do Choque ao seu comando. Ela olhou no meu olho, assustada, mas não respondeu. Seguiu com seu cordão de isolamento até o CPOR, que fica próximo à Avenida Antônio Carlos, e foi entregue ao exército. A grande imprensa acompanhou esse final. Gilmar Santos, assessor de imprensa da PMMG disse ao Jornal Hoje em Dia que a polícia teve que jogar bombar para proteger a comandante. Isso não é verdade. Ela estava em segurança e, visivelmente, assustada com a violência da corporação que ela comanda em Belo Horizonte e temendo que os manifestantes se comportassem como alguns policiais. Para a sorte dela, isso não ocorreu.

Tropa de Choque cede segunda barreira contra manifestantes.

Nessa altura, a manifestação havia se dividido. Temendo as bombas e as balas, parte do grupo decidiu ir embora e iniciar uma nova passeata na Praça Sete. Enquanto isso, um grupo com cerca de cinco mil pessoas continuava caminhando em direção ao Mineirão. Os gritos deixaram de ser contra a FIFA, a corrupção e se viraram contra a violência do estado de Minas Gerais: "Chega de chacina, eu digo: foda-se, PM assassina", "Você ai fardado também é explorado", "Covardes, covardes, covardes" cantava a multidão que seguia pacífica, apesar da revolta.

Ao passar pelo ponto em que o bloqueio estava montado anteriormente, era impossível não ficar com medo. O Choque havia ido para o passeio e "aberto o caminho" eram centenas de viaturas, muitos ônibus parados e milhares de policiais. Escutei um policial do choque falando ao telefone "A gente está sozinho. É muita gente e eles começaram a quebrar ônibus". Não sei com quem ele estava falando, nem ao que se referia. Mas na Pampulha naquele momento, não havia nenhum ato de vandalismo, a PMMG estava em número maior do que os manifestantes e com a situação sob controle dos policiais.

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Tropa de Choque encurrala manifestantes.

Seguimos como gado em direção ao matadouro para encontrar nossos amigos que haviam passado pelo bloqueio enquanto acompanhávamos a confusão com a Coronel. Saímos da Antônio Carlos e chegamos à Avenida Abrãao Caran. Seus 2 km levam diretamente ao Mineirão, que finalmente podia ser visto. Cerca de 1 km do estádio, outro destacamento do Choque bloqueava o caminho e não parecia haver disposição de ninguém tentar furá-lo. Eram 18h40 e o jogo já havia acabado. Apesar do medo, não havia motivos para a PMMG usar mais violência. Os manifestantes estavam cansados e já começavam a se dissipar naturalmente. Eu mesmo estava exausto.

Tropa de Choque descontrolada.

Sentamos no asfalto e começamos a ligar para os amigos para recolher notícias. O 3G parecia bloqueado e até ligações eram difíceis de serem feitas. SMS era a maneira mais eficiente de conseguir organizar alguma coisa. De repente, vimos que o Choque, que estava a uns 300 metros da gente há cerca de 15 minutos, tinha descido e estava agora quase sobre nós. Levantamos e começamos a buscar algum ponto de fuga, em uma reação natural pelo contexto do dia, mas que parecia até desproporcional para o momento, já que tudo estava tranquilo.

Na descida, me deparei com uma cena incrível. O comandante do Choque em Minas Gerais, Coronel Carvalho, estava em meio aos manifestantes concedendo uma espécie de "entrevista coletiva" para as muitas câmeras portáteis que o filmavam. Depois de terem tido armas apontadas para as suas caras, aqueles jovens agora apontavam celulares, filmadoras e outros dispositivos de registro audiovisual exigindo respostas do Coronel. "Eu acompanhei a marcha no sábado. Teve algum problema? Eu acompanhei a marcha aqui, teve algum problema?" Nessa hora, todos se revoltaram e começaram a mostrar os "problemas" ao Coronel: balas de borracha, ferimentos e cápsulas de gás vencidas em 2010 começaram a aparecer aos montes. Enquanto tentava se explicar, bombas começaram a ser atiradas pela polícia na Avenida Antônio Carlos. Incrédulo, o Coronel disse: "Ali não tem policial". Mas havia muitos e, obviamente, eram eles que estavam atirando. Eu estava revoltado.

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Junto com um grupo de outros jovens acompanhamos o Coronel até a avenida. Fomos com ele até o meio do furacão, onde bombas de gás e balas de borracha eram atiradas para todos os lados. A todo o momento, gritávamos para o Coronel: "Quem deu essa ordem, comandante? Quem manda no seu batalhão? Onde está o comando da PMMG? ME PROTEGE, CORONEL!" Os policiais se assustaram quando viram o chefe deles no meio dos tiros disparados por eles. Todos estávamos com as mãos para o alto demonstrando que ele não era o nosso refém, mas nossa esperança de que a violência acabasse. "Sem violência, sem violência", implorávamos. Depois de muitas bombas ele conseguiu uma pequena trégua, suficiente para que um oficial dele fosse até lá tirá-lo do meio da confusão. Estávamos perdidos.

Choque contra manifestantes.

Assim que perdemos o escudo do comandante fomos fuzilados por bombas e balas de borracha. Surgiu pela lateral um novo agrupamento do choque que também começou a atirar. Os policiais, em ampla maioria, se comportavam como loucos atirando de cima do viaduto na população que não tinha para onde correr por estar cercada. A barbárie imperou. Pessoas foram atingidas covardemente. A estudante Sabrina Valente, de 23 anos, se ajoelhou gritando "sem violência" recebeu um cassetete na cabeça em resposta. O jovem Gustavo Justino, de apenas 18 anos, caiu do viaduto José de Alencar fugindo das bombas que eram atiradas contra ele há poucos metros de distância. Os relatos de abuso são muitos e estão para todo lado no Youtube e outras redes sociais. Estávamos sendo massacrados.

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Alguns grupos começaram a montar barricadas, queimando tudo o que estava ao alcance deles. Essa atitude desesperada é tratada como vandalismo na grande imprensa. Ali, ao vivo, ela não passa de uma tentativa vã de um grupo pacífico, desarmado e despreparado se proteger das forças de repressão do estado em número muito maior, muito bem treinadas e equipadas. Um manifestante revoltado arremessou uma pedra contra a vidraça de uma concessionária enquanto a maioria corria para um posto contando com o bom senso da polícia de não atirar bombas em uma estação de combustível. Estávamos encurralados.

Não houve quebra-quebra no posto, não teve vandalismo, teve apenas desespero. As pessoas estavam ali temendo por suas vidas diante da retumbante violência da PM. Como o bom-senso já havia sido abandonado por eles há muito tempo, logo vieram as bombas e as balas de borracha. Cerca de 500 pessoas deitadas no chão implorando para poderem ir embora se transformaram em alvo da corporação que deveria protegê-las.

Caos na Avenida Antônio Carlos.

Saímos desesperados do lugar temendo que ele explodisse e voltamos a ficar sem proteção no meio da Avenida Antônio Carlos. Nosso grupo de amigos se reuniu. Éramos sete, sendo quatro mulheres. Levantamos às mãos e pedimos pelo amor de deus que parassem. "Vai embora!", ordenou o policial. "Pra onde?" gritávamos desesperados. "Não sei! Atravessa a rua e vai embora"! Fizemos isso e caminhamos cerca de 2 km com as mãos levantadas, morrendo de medo. A área FIFA virou Zona de Guerra. Eu estava apavorado.

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Quando deixamos o território brasileiro entregue à produção da Copa das Confederações e seus patrocinadores, encontramos outros grupos que presenciaram o massacre. Eles revelaram que algumas pessoas haviam fugido para o campus da UFMG e que estavam sendo perseguidas lá. A velha tática se repetia. A PM foi, ao longo do dia, dividindo a manifestação até deixar um grupo pequeno o bastante para poder ser punido "exemplarmente" sem o constrangimento das milhares de câmeras que estavam no começo do protesto.

Manifestação na Av. Antônio Carlos.

Conseguimos parar um ônibus para voltarmos à Praça Sete. A maioria absoluta dos manifestantes pagou a passagem.  Dois meninos pularam a catraca. Diante do protesto do trocador "Estão filmando tudo. Eu vou perder meu emprego", a multidão se prontificou a contribuir com uma vaquinha para pagar as duas passagens e seguir seu caminho.  Mesmo depois de serem massacrados pelo Estado, esses jovens comprovaram não serem "baderneiros".

Na Praça Sete, muitas pessoas cantavam e celebravam o dia de luta histórica. Ficamos sabendo das passeatas por 11 capitais, das manifestações nas cidades médias, da ocupação do Congresso e de mais relatos de violência da Polícia Militar contra a população do estado mineiro. Estava cansado e não conseguia mais acompanhar aquilo. Subi a Rua Rio de Janeiro com meus amigos e sentamos em um bar na esquina com Avenida Augusto de Lima. Contamos nossos relatos, comemos e bebemos cerveja da AmBev, parceira da FIFA e uma das empresas que mais lucra com a Copa. Fui para casa com minha namorada. Tomamos um banho quente e fomos dormir em nosso silencioso apartamento da zona Sul de BH (que assim como no Rio e ao contrário de SP, é refúgio das classes mais ricas da cidade). Minha cabeça estava a mil, mas entre as muitas coisas que tinha para pensar, uma não saía da minha cabeça: pobre e sofrido povo brasileiro que, nas periferias da cidade, precisa lidar com a violência da PM diariamente. É para acabar com esse desrespeito à constituição e afronta aos direitos humanos que eu voltarei na próxima manifestação.

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