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Música

Uma Jornada Mística com o Arcade Fire

Como o show dos canadenses no Lollapalooza pode ajudar o jovem a sacar uma religião de boa, bixo.

Existem alguns conceitos que são essenciais pra se entender das coisas. “Mas de que coisas?”. Das coisas, joe.

Esses conceitos são ferramentas necessárias pra se buscar o entendimento delas (as coisas), sem eles não é possível levar adiante esse trabalho de forma séria, assim como não dá pra apertar direito um parafuso sem usar uma chave de fenda. Você acaba lá improvisando com uma faca, estraga a faca, empena o parafuso, fica nervoso, zoa todo o seu controle de Mega Drive e o resultado final fica altamente escroto.

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E quando você não compreende esses conceitos-chave ou os têm de forma confusa, e ainda assim quer aplicá-los ou até mesmo julgá-los, é isso que você acaba fazendo: tentando consertar seu videoga usando uma faca de serrinha.

Um dos conceitos que se enquadram nessa categoria é o de religião. Tenho visto reações das mais loucas, por parte de jovens por aí, só de ouvir tal palavra citada: xingamentos a Marco Feliciano, acusações a padres pedófilos, lembranças de tias beatas que encanavam muito com quem tirasse a roupa da boneca, histórias de pregadores bravíssimos contra o homossexualismo ou a promiscuidade, “o carniceiro Hitley era religioso e o piadeiro Chaplin não era”, e por aí vai.

"E AGOORA JOEE??"

Estão viajando? Às vezes sim, outras não, seja como for não é isso o que importa pra gente aqui, o que importa é que em nenhum desses casos estão falando sobre o conceito de religião, mas apenas expondo uma quantidade grande de confusão sobre o que ele é. Seria algo como atacar a música pelo fato de existir o cantor Dinho Ouro Preto.

"Vou falar um negócio aqui hein gente, assim não dá não"

E o que é religião então?

Os mais ligeiros já devem estar pensando que este artigo não vai ser capaz de responder de forma completa a essa que é uma das perguntas mais da pesada que podem ser feitas por um ser humano, e estão cobertos de razão, na verdade têm tanta razão que periga não saberem o que fazer com ela. O que posso fazer aqui é, do alto das minhas limitações, lançar uma luz de farolete sobre o tema.

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Começemos com o sempre perigoso processo da etimologia (Para mais detalhes sobre o perigo de se usar a etimologia indiscriminadamente favor consultar o lingüista do seu bairro): religião vem do latim religare, que, essa é mole, significa religar-se. Religar-se ao que então?

Vamos usar aqui a resposta mais simples e resumida possível a essa pergunta:

Se você não estiver doidones o suficiente pra duvidar de que você mesmo exista, você terá que convir com a gente que, se você existe, é necessário que você tenha sido criado por alguém ou algo. Logo, se você foi criado por algo, então você não é completo, então existe algo maior, mais completo que você. E se esse algo que te criou não for, por sua vez, completo, ele precisará ter sido criado por algo ainda maior do que ele. Seguindo esse esqueminha até onde der, você chegará à necessária conclusão de que é preciso existir algo que é absolutamente completo, logo eterno e infinito. O nome que você vai dar a isso pouco importa aqui se é Deus, Jeová, Alá, Jah, Clóvis, Adauto, Robson, Dr. James Jeans ou Renato Russo. Você pode, e em geral eu acho aconselhável, chamar simplesmente de O Todo. Pode ser “O Toodo, bróder”, não tem erro.

Sendo ‘O Todo’ eterno e infinito é claro que não dá pra desenhar ou tirar uma foto dele, por isso ao longo da história foram criados símbolos para representá-lo. Por exemplo o diagrama tei-gi, que eu por muito tempo conheci como o símbolo da marca de surf Town & Country. (Os caras nos cantos são surfistas de alma)

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Pois bem. Está lá então você, ser humano, incompleto, magro, contando as moedas pra comprar um kibe e um refri. Você quer uma coisa que te engrandeça, quer escutar um som que te coloque em contato com algo maior que você, um não-sei-o-quê que te religue a pelo menos uma parte do Todo que você não possui (ou ao menos não domina), que te coloque em contato com algo transcendente, a Beleza por exemplo. Em suma, você quer viver uma experiência que te deixe melhor, menos zuado. É justamente essa a idéia por trás de qualquer ritual religioso que se pretenda de fato religioso e não pilantrão. E é isso que se propõem fazer estes tipos como o Arcade Fire.

A turma de canadenses tocou no Brasil no domingo retrasado e neste último no Coachella. Eu vi pela internet muita gente achincalhando eles como se eles fossem altos bundas, como se fossem algo próximo de uma turma daqueles jovens, tão típicos no Brasil, que nadam na bufunfa e saem estudando arte pra depois encharcar nossa vizinhança de bobagens auto-indulgentes. Não são isso. Você pode achar eles ruins por um monte de motivos seus, mas por esses será vacilo. Não importa aliás o quanto de grana eles arrumaram, fico feliz que tenham conseguido o suficiente pra fazer umas aulinhas de piano, violão e sei lá o que mais, que os possibilitaram fazer um som.

Video-aula com Mozart Mello. “É uma fusão (fusion) de ideias”.

Não se pode negar que esses magrões estão em uma busca espiritual. Em cada detalhe de sua arte eles transparecem o fato de serem algo que a gente muitas vezes estranha (e chama de zé bunda, como descrito acima), por se tratar de coisa com a qual não estamos muito acostumados por aqui: uma garotada de coração bom. É isso que eles são. Até quando eles xingam os próprios pais dá pra ver que foi com coração bom. São muitos os sintomas disso, por exemplo a ligação, nem sempre tranquila, que eles fazem questão de mostrar com o lugar onde nasceram e cresceram. É coisa de quem tem o coração bom. Eu mesmo gostaria de ter um coração tão bom quanto esses chapas. E não se trata daqueles tipos de candura bocós, candura bocó não tem nada a ver com coração bom, tem a ver com coração bocó mesmo, e muitas vezes sacana.

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Outra coisa que eles não são é infanto-juvenis. Olhar pra própria infância e adolescência é algo muito diferente de ser infanto-juvenil. Olhar honestamente pro que a gente mesmo foi enquanto jovenzitchos é na verdade uma grande arma pra se viver uma maturidade da hora. Se for reparar, todo pensamento cumpre essas fases: a ingenuidade pura e infinitamente aberta da infância, a enxurrada de equívocos arrogantes horríveis da adolescência e, se tudo der certo (ou seja, se as duas outras etapas forem encaradas aberta e honestamente), a solidez alegre e alta da maturidade.

A deles é essa, eles estão o tempo todo tratando com essa jornada espiritual, e parecem estar plenamente conscientes disso, por exemplo quando cantam aquele verso, da música "Wake Up", que costuma fechar os shows:

"If the children don’t grow up,
our bodies get bigger but our hearts get torn up.
We’re just a million little god’s causin rain storms
Turnin’ every good thing to rust"

("Se as crianças não crescerem/ nossos corpos ficam maiores, mas nossos corações se despedaçam/ Somos apenas um milhão de pequenos deuses causando tempestades/ Transformado cada boa coisa em ferrugem")

É pouco peso quando sai aquela cambada toda esgüelando esse tipo de frase com aquele estilão coração de ouro deles?

É, joe, o que esta gente faz são ritos de contato com a transcendência, são ritos de religião. E o que sinceramente desejo é que cada jovem que estava ali no show, ou assistiu pela TV, tenha se deixado levar pelo bonito ritual religioso do Arcade Fire.

O Stan é o Cláudio Chapéu no Twitter: @cloudchapel

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