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Música

Conversei com Paulo Araújo, o Compositor do 'Melhor Álbum de Rock Em Latim dos Últimos 2000 Anos'

A língua não morreu e o sonho não acabou

Quando eu era moleque, viajava todo ano com meus pais e meu irmão pra Ubatuba, litoral norte de São Paulo. Lá a gente se hospedava num camping muito familiar, onde todo mundo se conhecia, pela regularidade dos frequentadores. Com o passar do tempo, os laços foram se estreitando e até hoje considero algumas pessoas como membros da família.

Era um rolê meio bicho grilo, todo mundo de férias, de roupa de banho e fazendo churrasco. Foi assim que eu conheci o Paulo Araújo. De bermuda, chinelo, sem camisa, barbudão, tocando violão e gaita ao mesmo tempo, no melhor estilinho folk. Seu vasto repertório contava com o hype Bob Dylan, Zé Geraldo, Zé Ramalho, Belchior e outros hippies doidos que ficaram perdidos em suas épocas. A mulherada pirava e cantava junto “por onde for quero ser seu par…

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Bom, eu cresci, ele também. Cultivei minha barba pra entrar pro seu clubinho, enquanto a dele começava a esbranquiçar. Paulo virou um tiozão esperto e jovial, que não ficou travado naquele papo “e as namoradinha” que a gente não aguenta ouvir todo fim de ano.

Há uns dois anos, voltei pro camping junto com seu filho, Aidan. Foi ele que me mostrou o tão comentado Lapis Qui Volvitur. O grande Paulo Araújo tinha concretizado seu sonho e lançado o seu disco de rock em latim.

Aidan me entregou o disco e reparei logo na capa: “the best latin rock album of the last 2000 years!”. Fomos ouvindo no carro, de cabo a rabo. Não entendi porra nenhuma, porque estava dirigindo e não dava pra acompanhar o encarte. Mas o refrão de “Non Ducor Duco” ficou ecoando na minha cabeça por semanas. Até hoje, quando vejo o brasão de São Paulo, não penso em outra coisa a não ser o rock em latim de Paulo Araújo.

O nome do disco significa “pedras que rolam” e é bem sugestivo. Paulo chamou uma galera pra trampar junto com ele: a cantora lírica Débora Letícia e o guitarrista Roberto Gava, que já tinha ajudado em outros trabalhos. Também contou com a revisão de dois professores doutores da USP e da UNICAMP.

O resultado ficou único. Com letras fundamentadas e bem construídas, encarte com traduções em português e inglês, site oficial e até clipe, Paulo Araújo entrou pra história da música brasileira. E é claro que eu fui trocar uma ideia com ele sobre isso:

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Noisey: O que você fazia anteriormente? Você é engenheiro, certo?

Paulo Araújo: Ainda sou engenheiro agrônomo e trabalho no INCRA-SP com regularização fundiária de territórios quilombolas.

Qual a relação da sua vida profissional na sua música?

Apesar de serem atividades (a música e a minha atividade no Incra) diferentes, existe um link entre as duas. Sou a mesma pessoa e penso em música nas viagens de trabalho, no ônibus ou na bicicleta quando vou para o trabalho. Componho na bike, no carro, no ônibus, e em casa também. Em 2009 o Incra lançou um álbum chamado Uno e os Representantes da Natureza como uma ferramenta de educação ambiental em assentamentos rurais. Este trabalho com músicas de minha autoria e com participação de vários colaboradores, está disponível no site do Incra.

De onde veio a ideia de compor o Lapis Qui Volvitur?

A inspiração da primeira música que compus – “Vade Mecun Serafina” – veio quando eu passava por uma loja que chamava Serafina e que tinha uma placa com a foto de uma linda mulher. Ao ir para o trabalho vi a placa e veio na cabeça o trecho “Vade Mecum Serafina”, que significa "vem comigo Serafina". Cheguei em casa, terminei de compor a música e mostrei, o pessoal achou legal. Pensei: nossa! acho que não existe um álbum de rock em latim.

Você já conhecia a galera que te ajudou a produzir?

O Roberto Gava já é meu parceiro nos outros dois CDs anteriores. Todos os arranjos foram feitos em conjunto com ele e os solos de guitarras e violão sempre são dele. A Débora Letícia é amiga da faculdade. Fazia um tempão que não tinha contato com ela, mas adoro sua voz e sempre tive o sonho de fazer algum trabalho com ela. Sem contar que ela é uma pessoa muito legal e ajudou muito na produção. Outras pessoas que ajudaram são amigos, como o Luca Bruder que fez os desenhos, a Patrícia que fez a produção do encarte e a Eleonora que fez a tradução das letras para o inglês.

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Foi muito difícil aprender latim? Você já tinha algum conhecimento ou domínio?

Na verdade aprendi muito pouco de latim. No passado, cantei algumas músicas em latim no coral da USP e achei muito legal. Todas as músicas foram criadas utilizando informações da internet. Construí um banco de frases, boa parte coletadas do site http://www.hkocher.info. Com as letras das canções prontas pedi para o professor José Rodrigues Seabra Filho (USP) e professora Isabella Tardim Cardoso (UNICAMP) fazerem uma revisão para ver se não havia nada "tipo franksteiniano". Após a revisão eles me solicitaram apenas que incluísse uma nota no encarte dizendo que a tradução não é literal.

Você chamou uma cantora lírica pra ajudar nos vocais. se tratando de rock em latim, como você acha que isso contribuiu pra estética do som?

A Débora Letícia é minha amiga de faculdade. Procurei ela pela internet. Na verdade tinha imaginado ela fazer apenas alguns trechos, mas com o envolvimento no processo ela canta em quase todas as músicas como intérprete. Sua participação foi ótima, tipo a melhor parte do bolo. Sem ela o álbum teria ficado chocho. Quando eu fiz contato, ela estava fazendo um trabalho misturando o rock com música clássica no seu grupo Ternamente Eclético de Piracicaba - Rock Rhapsody. O curioso é que ela tem um grande conhecimento de latim, inclusive já estudou. Desta forma ela cantou a parte dela com toda perfeição e fez a revisão da pronúncia da minha voz.

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"Non ducor duco, non ducor duco, non ducor duco…"

Apesar do idioma, as letras são bem atuais. Como foi o processo de composição?

As primeiras músicas foram feitas buscando frases em latim na internet que expressavam o que eu buscava. Depois de um tempo tive que criar um banco de frases em latim e utilizar várias técnicas conjugadas para conseguir chegar ao produto final. Às vezes tinha a melodia e precisava adaptar a letra a sua métrica e outras vezes era o contrário, tudo isso sem deixar de lado a questão do sentido da letra e a estética.

“Habeas Corpus” é a minha faixa preferida do disco. É legal porque se refere à autonomia e liberdade, e não ao sentido criminal, que é onde normalmente ouvimos essa expressão. Dar este nome à música foi proposital?

A expressão realmente é utilizada no meio jurídico mais ou menos para expressar o direito de estar livre. Assim ampliei este conceito de sair da prisão, trazendo outros elementos que compõem a liberdade. O trecho "irrepreensibilis est" provêm de um trecho da música sacra "Locus Iste", que foi parafraseada na música.

Algum artista ou banda te serviu de inspiração para os arranjos e até mesmo para as letras?

Não em especial. Creio que tudo o que escutei na vida. Busquei compor as músicas e fazer os arranjos em vários gêneros dentro do universo do rock.

E Por que a decisão de traduzir as letras (para o português e para o inglês) no encarte?

Acho interessante o público ter acesso às letras e o objetivo é alcançar público do mundo inteiro. A maior parte dos acessos ao site é de fora do Brasil. O fato das letras estarem traduzidas para o inglês ajuda bastante na divulgação. Por outro lado acho o latim um território sem dono! Diferente do inglês…

Parece que os frutos do latim vingaram. Paulo ainda planeja produzir um novo trabalho de rock em latim usando as letras de Carmina Burana, que foram compostas por monges errantes do século X. "As letras foram musicadas por Carl Orff na primeira metade do século XX e fizeram o marior sucesso. Já temos quatro músicas trabalhadas…". Aí é vanguarda!