A Evolução do Four Tet

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Música

A Evolução do Four Tet

Criado por um pai aficionado em jazz e treinado desde cedo para chafurdar em vinis, Kieran Hebden segue seu caminho sem que possamos prever qual será o novo gênero que irá abraçar.

No dia 5 de abril de 2015, num porão sujo de uma balada em Camden, em Londres, o Four Tet – apaixonado por jazz, aficionado por seus botõezinhos e usuário militante das camisetas mais exóticas que você já viu – dividiu o palco com o Skrillex. Tendo anunciado o show casualmente com apenas uma semana de antecedência, a dupla de eletrônica formada pelo showman mais bombástico e o nerd mais despretensioso do rolê deixou muitos fãs boquiabertos (em sua maioria fãs do Skrillex, na real). No entanto, a real aqui é que qualquer pessoa que acompanhou a trajetória do Four Tet até hoje pôde prever que ele acabaria numa dessas.

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Ouça o Remix que o Four Tet Fez de "Opus", do Eric Prydz.

Se você se lembra do Four Tet (de batismo Kieran Hebden) por seus primeiros discos, dificilmente o associaria a um autor de músicas cheias de swag. Seu disco de estreia, Dialogue (1999), era um nevoeiro lamacento de post-rock misturado com um metal gritante; uma viagem atmosférica, e às vezes deliberadamente desconfortável. Em 2001, ele lançou o Pause – ou o Four Tet das antigas/novo – que viu o deslizamento constante de melodia e feeling em sua música. Tirando o refrão do mal e irritante de "No More Mosquitoes", aquele era um disco de desvios cinematográficos suaves e batidas bem de boa, repleto de camadas sutis, doces e densas.

Vi o Four Tet pela primeira vez em 2004 no The Corner, em Melbourne, na Austrália, logo depois do lançamento do seu terceiro disco. O Rounds surgiu logo no início da era do IDM, Aphex Twin, Autechre, Squarepusher e do Boards of Canada. Havia uma cena muito bem estabelecida em torno da música eletrônica abstrata – e ela não envolvia dança. Muitas cabeças balançando e aquela pegada hippy às vezes dava o ar da graça, mas as batidas eram irregulares demais para de fato conseguirem fazer a plateia vibrar. Era uma cena interessante, porém restrita. Curvado sobre dois laptops e olhando fixamente para suas telas, Hebden estava mais interessado em brincar com seu som do que mostrar à plateia a que veio.

Pensando naquela época, o Hebden diz que foi mal interpretado. Ele desprezava o rótulo "folktronica" que era usualmente associado à sua música – uma tentativa bem intencionada da mídia em descrever sua estética morna e digital. Hebden se queixa que o contexto, no entanto, foi ignorado. Tendo sido criado por um pai que vivia ouvindo jazz e o fez barafundar nos discos desde pequeno, os primeiros álbuns do Hebden foram inspirados principalmente no hip-hop e em free jazz. Às vezes soft e outras vezes cerebral, os trabalhos foram feitos inteiramente a partir de samples de vinil. Hebden citou o produtor de R&B Rodney Jerkins como sua maior influência no Rounds, assim como a Joni Mitchell, mas a amplitude do seu vocabulário musical, de alguma forma, se perdeu.

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A reação do Hebden ao ser classificado como um artista eletrônico twee (aka bobo-alegre) foi abraçar beats mais pesados. A primeira faixa do Everything Ecstatic (2005) é uma iteração maníaca da banda Propellerheards, com um baixo pesado que vai e volta em uma percussão escorregadia. Apesar das batidas por minuto ainda serem um pouco espaçadas, havia uma padronagem rítmica promissora em "Smile Around the Face", uma repetição boba-alegre fantasiada de bips eletrônicos e pratos retumbantes. Já nas outras faixas do disco, samples de baterias ao vivo criavam ritmos que flertavam com o dubstep e os contratempos vibravam o mais puro funk. Ainda não era dance music, mas estava quase lá.

Mas… não era dance music. O Four Tet voltou à Melbourne para tocar no Spanish Club em 2006, dessa vez para uma plateia muito maior. Ainda assim, eles esperavam mais por uma performance do que por uma rave propriamente dita, e foi exatamente isso que o Hebden os proporcionou. Focado na improvisação do jazz, ele prolongou e provocou faixas do disco até uma distração épica, por meio de ambient fuzz e da colisão de múltiplos ritmos. Foi um show lindo, rico e arrebatador. Artístico de forma ligeiramente combativa.

Entre 2006 e 2008, o Hebden não saiu da cola do Steve Reid. Ele conheceu o lendário baterista de jazz em Paris numa loja de discos e os dois acabaram gravando quatro álbuns juntos, incluindo o Tongues (2007) e o NYC (2008). Nessa época, a agenda da turnê do Hebden praticamente se resumia a performances improvisadas ao vivo com o seu novo chapa, algo que não teve seu valor reconhecido por quase ninguém, exceto pelos próprios artistas. Na melhor das hipóteses, sua música caótica e muitas vezes completamente inaudível foi de encontro àquele reino sombrio do free jazz hardcore que chega a parecer uma piada para os ouvidos destreinados.

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"Para oHebden, 'pop' era sinônimo de uma estrutura mais restrita, batidas firmes eloops repetitivos, mas ainda havia uma doçura e luz na sua música que nãopermitia que ela fosse dançante".

Felizmente, outra coisa estava tomando forma durante este período, e bem fora do escopo das plateias australianas. O primeiro rolê do Hebden como DJ foi em 2003, mas DJ sets se tornaram um componente frequente na sua agenda de shows lá pelo final de 2006. Naquele ano, ele lançou seu primeiro remix com aura de balada de verdade, uma contribuição do Four Tet para a série do site DJ Kicks. Apesar de muitos trechos da música ainda serem mais de boa – com uma pegada hip-hop, krautrock e beats de world music – foi aí que o Hebden começou a falar publicamente sobre como fazer dance music estava de fato em seus planos.

Hebden fez uma turnê australiana com o Caribou em 2009 que deu o que falar e no ano seguinte lançou o disco There Is Love In You, absolutamente fantástico e que por pouco poderia ser considerado pop. Para o Hebden, 'pop' era sinônimo de uma estrutura mais restrita, batidas firmes e loops repetitivos, mas ainda havia uma doçura e luz na sua música que não permitia que ela fosse dançante. Claro, as faixas estavam sempre presentes na sua agenda de shows superatribulada como DJ, mas sem dúvida eram tímidas demais para empolgar uma plateia durante as poucas e suadas horas de uma noite na balada.

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Ele ainda não era um produtor de dance, mas parecia estar se preparando para isso. Hebden estava discotecando, fazendo networking e colecionando discos. Fez diversas aparições no clube icônico londrino Plastic People e depois se referiu a elas como uma 'influência formativa'. O clube, que já havia sediado a primeira gig do Daft Punk em Londres, se tornou um porto seguro para o Four Tet e os outros DJs progressivos da sua era, incluindo Floating Points, Daphne, SBTRKT e Theo Parrish. Dubstep, grime, jungle, house e garage britânico estavam todos na mistura deste venerado clube e eles eventualmente foram de encontro ao som do Four Tet. A pegada dance estava presente do início ao fim no seu disco Pink (2012).

E no dia 1º de fevereiro de 2014, o Four Tet finalmente deu o ar da graça como DJ na minha cidade. Anunciado às pressas por trás da sua participação no Laneway Festival, o show foi um b2b com o Jamie XX — a galera lotou o pequeno e delicioso andar de cima da Boney pra ver os dois tocarem. Naquela época estava completamente apaixonado pela obra-prima de 2013 do Hebden, o Beautiful Rewind, que sem dúvida nenhuma era a mais pura bass music. A primeira faixa do disco, "Gong", era dotada de uma vibe jungle intensa que deslizava até a maravilhosa pancada subsônica da "Parallel Jalebi", passando pela batida garage da faixa "Kool FM", até a pegada house de "Your Body Feels". Este era um disco que definitivamente te fazia requebrar. E ainda assim, não foi o suficiente para me preparar para os beats pesadões de trance que rolariam no DJ set do Four Tet.

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Naquele mesmo dia, no palco principal do Red Bull no Laneway Festival, o Hebden estava mandando ver. Uma sombra solitária contra as luzes do palco, ele brincou com a plateia assim como fez com o som. Os vocais familiares do seu álbum foram acompanhados por graves monstruosos que foram capazes de criar uma vibe arrebatadora no seu set. Foi mágico. Em comparação ao set na Boney, este foi um ninho irregular de barulhos. Hipnótico, mas incolor. Foi exatamente o que você costuma lembrar da madrugada anterior – um mar de beats sombrio e sem forma.

Eu vi o Four Tet tocar outras oito vezes naquele ano, fazendo a minha própria turnê mundial paralelamente à dele. A cada set, a minha percepção de quem ele era e o que ele tocava foi se modificando. Ele fez uma participação no Boiler Room no SXSW em Austin que abriu com o cantor de playback hindu Lata Mangeshkar e contava com o seu remix de Burn da Ellie Goulding e com o rock com uma fusão africana da Owiny Sigoma Band. No Sonar Barcelona, ele tocou house, dub, reggae, Afrobeat e uma faixa de free jazz num set para esquentar a rapeize, um set que parecia ter sido criado especialmente para deixar todo mundo muito chapado. Ele redefiniu a unidade de tempo a cada faixa, criando mixes impossíveis a partir de compassos de contraponto, mas sempre nos estimulando a dançar.

As performances ao vivo do Four Tet foram ficando cada vez maiores, culminando na sua abertura no The Park Stage, no Glastonbury de 2014. Como sempre, os olhos do Hebden estavam vidrados em seus laptops, apesar de parecer vislumbrar a plateia com mais frequência, tentando sacar a vibe da galera. Ele formava uma leve figura em contraste com as luzes estroboscópicas do palco e seu rosto estava cuidadosamente neutro. Mas o simples peso desses beats elegantes, a grande quantidade de feeling e a poderosa escala do som – essas coisas o transformaram num DJ superstar. Ele estava tocando pra uma porrada de fãs delirantes que estavam na palma da sua mão.

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Naquela mesma noite, o Four Tet tuitou para o Skrillex, que estava tocando num palco muito maior no festival em

Glastonbury

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— Four Tet (@FourTet)June 27, 2014

Revirei os olhos quando li aquilo, mas era de se esperar. É claro que o Four Tet iria atrás do Skrillex, eu pensei. Onde será que ele vai parar?

Tradução: Stefania Cannone