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Música

Roubadas na Estrada: Soulzé, Dez Mil Quilômetros, 11 Caboclos e uma Prancha de Surfe

Você que fica putinho com o atraso de alguns minutos no aeroporto ou com o trânsito a caminho do trabalho. Pense bem, poderia ser pior.

Você que fica putinho com o atraso de alguns minutos no aeroporto ou com o trânsito a caminho do trabalho. Pense bem, poderia ser pior. Poderia ser mil vezes pior. Você poderia estar numa van rodando o Brasil com 11 caras, uma penca de instrumentos e uma prancha de surfe. Poderia ser pior: o motorista que está te guiando podia estar “tecando” no pó sem dormir e ter sérios problemas para controlar a raiva. Ele poderia também entrar no canteiro central de uma avenida movimentada, descer do carro e te chamar pra porrada. Ele poderia querer colar na fronteira com a Bolívia e investir uma grana em cocaína. Pense bem, poderia ser bem pior.

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E como os perrengues não são passados só por banda de rrrrrrrock, esta roubada rolou com a extinta banda cearense Soulzé. No palco eles misturavam música eletrônica, ritmos nordestinos e outras parafernálias, fora dele dormiram na van, viajaram mais de dez mil quilômetros e percorreram a tour mais torta do país passando por Fortaleza, São Paulo, Cuiabá, Brasília, São Paulo de novo, Maceió e novamente Fortaleza. “Foi que nem os 7X1 do Brasil e Alemanha”, conta Gil Duarte, o flautista do grupo.

Para ilustrar mais um episódio da série Roubadas na Estrada troquei uma ideia com Gil Duarte (flautista) e Marcos Maia (baterista) sobre o rolê maluco que envolvia uma prancha de surfe, cocaína, shows furados e muito cheiro de sovaco.

Noisey: Meus velhos, quais foram o maior perrengue que vocês já enfrentaram na estrada? Aquelas roubadas que só banda passa na vida.
Marcos Maia: Peu, dá pra escrever um livro, ou vários, só com as histórias das bandas, em especial a do Soulzé, que foi a banda que toquei que mais shows fez e mais rodou pelo Brasil. Na tour de 2003 foram 43 dias, 12 shows e quase dez mil quilômetros rodados dentro do Brasil a bordo de uma Sprinter com um motorista muito louco e seu ajudante mais louco ainda.

Gil Duarte: Essa foi a minha maior roubada, sem dúvida. Teve muita coisa massa, mas teve tanto perrengue que acredito que aqueles inferninhos com cerveja quente e som ruim fossem o paraíso.

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O Gil lembrou de uma viagem de Fortaleza à Brasília que rendeu, no mínimo, boas histórias. Como foi?
Gil Duarte:A gente foi sem parar de Fortaleza até São Paulo com dois motoristas, um mais louco que o outro, e nos perdemos várias vezes. Ainda tinha a prancha de surfe do motorista. Ele ficou todo animado porque iríamos dormir no Guarujá e falou: “Ou minha prancha vai ou então a van fica”. Quem ficou foi o nosso violão, porque não cabia mais. E tem mais um detalhe: a van estava com os documentos atrasados, nem sei como não fomos parados na estrada.

Marcos Maia: Na verdade essa viagem a que o Gil se refere não foi só a Brasília. Começamos em Fortaleza direto pra São Paulo, depois Cuiabá, Brasília, São Paulo de novo e voltando pra casa passamos em Maceió para o último show. Eram sete músicos, um roadie, um técnico de luz e dois motoristas. A Sprinter do cara era de banco inteiro, que não baixava nem meio grau, o ar condicionado não funcionava direito, estava entupida de equipamentos. A pior e mais divertida viagem da minha vida. Ainda tenho sonhos com ela…

Como era na van?
Gil Duarte: Imagine. Eram 11 negos, instrumentos, roupas e uma prancha de surfe. Bicho, imagina tu ficar 42 dias em viagem com essa cambada de macho pra lá e pra cá? E ás vezes a gente fica dois dias dentro da van sem cama, apenas com os espaços do chão que chamávamos de sarcófagos. Tinha o presidencial, o classe-média e o navio negreiro, que só dava pra ficar de lado com os pés da galera em cima de você. Além disso, em 2003, não existia GPS, Waze, Google Maps. Na verdade nem celular de bater foto tinha, né? Nós ficamos ali perto do Sesc Pompeia um tempão. Passamos umas dez vezes pelo mesmo caminho. E confesso que até hoje tenho pesadelos com esse trajeto.

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Como era o motorista de vocês?
Marcos Maia:O cara cheirou pó 72 horas direto de Fortaleza a São Paulo. Chegamos no Sesc Pompeia para o primeiro show da banda 40 minutos antes da passagem de som. E isso foi só o começo. Em Brasília ele ficou puto com alguma coisa e invadiu o canteiro central de uma das avenidas da Asa Sul depois de trincar o para-brisa da Sprinter com um soco. Queria brigar com o guitarrista, se apresentava para as pessoas - enquanto estávamos no palco - como o empresário da banda, levou o próprio sogro como motorista reserva e fez o coroa fumar um baseado, entre outras coisas.

Gil Duarte: Coitado do velho. O motora era genro dele e aí fez o sogro fumar e tirou uma foto. Depois falou que se ele contasse as merdas que rolaram na viagem ele mostrava a foto pra sogra.

Como foi o show em Brasília?
Gil Duarte: Quando chegamos lá, antes de tocarmos no Festival de Música Candanga, um produtor amigo nosso levou umas cervejas e uma garrafa de Domecq. Tava todo mundo animado por conta das biritas, mas quando a gente foi ver o motorista tomou todo o conhaque. Mas não ficou por aí, né? Juntou birita com pó e sei lá mais o quê. Só sei que ele ficou "virado no Jiraya". No caminho para o show o cara foi ficando puto, resmungando e começando a bater no para-brisas do carro. Ele falava: ‘Eu destruo’ como se fosse um mantra. No fim das contas o bicho meteu dois murros no vidro e quebrou a parada. A galera pediu calma e ele começou a chamar o guitarrista pra briga. Quando a galera falou que ele tinha errado o caminho ele meteu o carro no canteiro central de uma avenida movimentada, daqueles com bastante plantas e bem grande e tals. Parou num posto, saiu do banco e chamou um de nós pra briga. O vocalista pegou o cara pelo pescoço e foi acalmando ele. Aí o bicho foi ficando manso e começou a chorar. Bicho, tava todo mundo tenso na hora sem saber o que ia fazer. Se segurava a onda ou se todo mundo se juntava e dava um cacete nele.

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Qual era o procedimento dele ao volante?
Marcos Maia:Tirando a loucura do cabra, seu caráter duvidoso e sua agressividade doentia, o cara era fera no volante. Teve uma situação, acho que estávamos cruzando a Bahia, numa estrada em linha reta, comprida, daquelas que dão sono, bem cedo da manhã. Devia ser umas cinco e meia. Eu era, além do motorista, o único acordado dentro da van. Eu estava lendo e não prestava atenção à estrada. De repente a van freia bruscamente, o motorista dá um grito (basicamente um “Puta que pariu!!!!”) e tira o carro da pista. Quando levantei a cabeça vi duas carretas no sentido oposto, a milhão. Uma delas estava na contramão. Os caras estavam fazendo um pega com duas carretas carregadas! Se o motora não tivesse experiência só teria visto bem em cima. Talvez tivesse acontecido o pior. Acho que ninguém viu essas carretas, só eu e ele, pois quando a galera acordou, no susto, tudo já tinha rolado.

E por que escolheram esse cara?
Marcos Maia:Acho que ele era amigo do vocalista da banda. Lembro que ele cobrou R$ 6 mil. Era muito barato pra uma viagem desse tamanho.

Depois de quase morrerem na estrada vocês continuaram com o motorista?
Marcos Maia: Chegamos a pensar em dispensá-lo no meio da viagem, mas era todo mundo muito fodido naquela época. Se o cara nos largasse em Brasília, pelo menos metade da banda estaria lá até hoje, tinha virado mendigo. Ficamos à mercê do demente e tivemos que ir até o fim.

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Ouvi dizer que ele ainda queria levar uma encomenda de volta ao Ceará. O que era?
Marcos Maia:Não sei se você tá falando da prancha de surfe ou da cocaína. No segundo caso não seria uma encomenda, mas sim um investimento e nesse caso a gente teria virado mendigo em Cuiabá, e não em Brasília.

Gil Duarte: O cara ficava fissurado nesses 2 quilos de farinha. Acho que era isso. Ele ficava direto falando que ia ser massa e tentava convencer o vocalista a deixar ele ir buscar a muamba. Dizia que tava perto da Bolívia, que era só pegar, colocar no pneu do carro e se não tivesse grana deixava o sogro como garantia.

Como foi o show na sequência, em Cuiabá?
Marcos Maia: Fizemos quatro shows em Cuiabá: um legal, um mais ou menos, um interessante e outro um desastre. Tocamos no Sesc Arsenal, numa festa na Universidade Federal do Mato Grosso, numa festa de professores dessa Universidade e num bar tipo Vila Madalena. Esse último foi terrível, pois o palco cabia apertado três pessoas. E o Soulzé eram sete. Foi foda. Eu toquei percussão praticamente sentado à mesa de uns clientes… O cachê era ridículo e não tinha nem água pra beber. Uma bosta.

Enquanto vocês tocavam o que fazia o motorista?
Marcos Maia:Como te falei, ele tentava fechar shows para a banda, pois se apresentava como empresário. Fora isso ele sempre arrumava uma mulher e, logicamente, cheirava muito pó.

Gil Duarte: Ele ficava falando que era produtor/empresário da banda pra meninas e tals. O cara era muito metido a galã, surfista e tals. Eu lembro que ele ficava usando aquele jargão do Fábio Junior: "brigadúúú." sempre que ele tentava convencer alguém.

Lembram o nome desse figura? Sabem o que ele faz da vida hoje?
Marcos Maia:Não sei se você deve divulgar o nome dele. Eu, particularmente, tenho medo, pois se ele vir a matéria e não gostar é capaz dele vir aqui em São Paulo pra matar a banda. Falando sério mesmo. Outra coisa: não sei se ele recebeu os seis contos integrais. Hoje não sei o paradeiro da figura…

E hoje, o que vocês estão fazendo da vida? Continuam tocando?
Marcos Maia: O Soulzé foi uma banda que veio para São Paulo, tocou bastante, se desgastou e acabou. Mas o interessante é que nenhum dos integrantes voltou a morar em Fortaleza. Todos continuam aqui, alguns continuam tocando, outros fazem outras atividades, mas todos estão por aqui ainda. Falando por mim, depois do Soulzé continuei tocando com outras bandas, inclusive com uma parte do povo que sobrou do SZ, no caso o Gil e o Demetrius. E tenho outros trabalhos musicais com outras galeras. Também foi aqui em São Paulo que lancei meus dois livros, e foi aqui que virei funcionário público, sou arquiteto na USP.

Gil Duarte: Eu estou estudando Produção Musical na Anhembi Morumbi, gravando o novo disco do meu projeto solo Gil Duarte e Sistema Asimov de Som, toco na banda Aláfia toco com outros projetos, gravo trilha sonora e por aí vai. O Demetrius e o Marcos tocam comigo em dois projetos e o Vital toca comigo em outra banda. Nos vemos bastante e tomamos umas cervejas sempre que possível. Os outros, sinceramente, não faço a mínima ideia do que fazem da vida.