"Quase parece que existe uma reação contra qualquer tipo de pensamento progressista", disse uma vez a um entrevistador a guitarrista/vocalista do Sleater-Kinney, Corin Tucker. "Quando você olha para o sexismo no mundo do rock, é uma coisa que as pessoas fazem dum jeito tão deliberado, e os homens tentam pegar para si qualquer fragmento de poder que consigam encontrar, de um jeito muito feio". A data dessa declaração? Ano 2000 – embora seja compreensível atribuí-la a alguma discussão mais recente sobre o estado do rock. Quase 15 anos depois, o sexismo continua a ser uma questão vital (e problemática) – quer seja porque as mulheres da música participam pouco de festivais, ou não são levadas a sério como musicistas, ou então por causa de homens subindo nos palcos e beijando mulheres contra suas vontades e de violentos ataques online.O Sleater-Kinney – formado por Tucker, a vocalista/guitarrista Carrie Brownstein e a baterista/vocalista Janet Weiss – confrontou diretamente todas essas questões, sem medo e sem papas na língua. Isso é motivo para comemorar mais ainda o fato de que a banda está voltando com tudo de sua pausa por tempo indeterminado: um novo disco, No Cities To Love, no dia 20 de janeiro; um monte de datas da nova turnê; e uma nova música, corrosiva e repleta de energia, "Bury Our Friends". É também o momento perfeito para Start Together, uma caixa contendo os sete discos de estúdio da banda, remasterizados a partir das fitas analógicas originais, que chega às lojas americanas esta semana.O cuidado e a minuciosidade dedicados à restauração de cada disco são evidentes. A versão renovada de One Beat, de 2002, torna mais intensa a urgência do LP – desde a bateria de Weiss na faixa título até como os sintetizadores tremelicantes e coro preciso de "Prisstina" saltam das caixas de som – ao passo que a distorção suja e o ruído uivante salpicados pelo último disco da banda, The Woods, de 2005, com seus matizes de rock clássico, ficam ainda mais sujos e selvagens do que antes. Para quem tenha considerado este último disco muito desviante quando foi lançado, há uma década, a versão remasterizada salienta novas nuances e camadas, que fazem o disco parecer novo; a guitarra de Brownstein, especialmente, soa como uma revelação catártica.A turbulência do áspero disco de estreia do Sleater-Kinney (batizado com o nome da banda) também borbulha até a superfície com uma recém-descoberta clareza – desde a maneira com que Tucker ridiculariza um amante que quer alguém que cuide dele, em "Be Yr Mama", até a fúria cega de "The Last Song": "I don't owe you anything/I'm not part of you/You can't take away everything/I'm not part of you" ("Não te devo nada/Não sou parte de você/Você não pode levar tudo embora/Não sou parte de você."). Os elementos inspirados no Sonic Youth de Call The Doctor, disco de 1996, estão sucintos e estridentes, assim como os farpados riffs punk e a afiadíssima articulação vocal de Dig Me Out, de 1997; The Hot Rock, de 1999, inspirado no indie e no emo, apresenta texturas de guitarra mais ressoantes e nuançadas, e melodias suavizadas. Chamar esses discos de manifestos punk-feministas – embora tecnicamente seja verdade – é algo que limita sua influência; eles continuaram o que o movimento riot grrrl começou, e introduziram nuances culturais enfocando a experiência mais universal de ser mulher e ter de lutar contra os conceitos errôneos e a marginalização.Mas os componentes do Sleater-Kinney não são e jamais foram caricaturas estridentes; na verdade, fizeram com que sua revolta fosse acompanhada por momentos inspiradores de auto-empoderamento. Para começar, há o tônico de confiança que é "Burn, Don't Freeze" ("You're the truest light I've known/But someday I'll learn I don't need your fuel to burn" – "Nunca conheci luz mais verdadeira que você/Mas algum dia vou aprender que não preciso do seu combustível para entrar em chamas"), a carta de amor rock 'n' roll "Words and Guitar" e "Taking Me Home", que assevera que a mulher não é posse de um homem. "How To Play Dead" vira o jogo e deseja a morte para um cara que foi agressivo sexualmente ("I won't suck your big ego and swallow all my pride/I'm spitting out your memory and stains you left inside of me" – "Não vou chupar teu egozão e nem engolir meu orgulho/Vou cuspir a sua memória e as manchas que você deixou dentro de mim"), enquanto que outras músicas atacam a feiura da fama, e confessam o desconforto de estar na própria pele. Há até um verso em "End of You" que resume a recente onda de ataques violentos contra escritoras, gamers e palestrantes feministas: "There's no bigger spotlight/Than shown on the ones brave enough to live." ("Não há nenhum holofote que brilhe mais/Do que aquele que ilumina quem tem a coragem de viver."). E embora as músicas da banda com certeza tenham surgido de uma frustração com o patriarcado, a perspectiva delas não era necessariamente vinculada ao binarismo de gênero; na verdade, qualquer um se sentindo diminuído poderia se identificar com essas músicas, e reagir rugindo.Mais do que tudo, os relançamentos evidenciam a presciência lírica da discografia do Sleater-Kinney. O disco All Hands On The Bad One, de 2002 – uma miscelânea de punk agoniado, indie-pop trêmulo e power-pop lamuriento –, em especial, fala sobre as questões urgentes da atualidade. A angustiante "Was It A Lie?" aborda o voyeurismo online relacionado à violência ("Looped her death on the internet/And a woman's life got cheaper that day" – "Mostrou a morte dela na internet/E a vida de uma mulher foi diminuída naquele dia"); desordens alimentares são mencionadas indiretamente em "Youth Decay"; e "#1 Must Have" lamenta a cooptação dos princípios do movimento riot grrrl pela mídia ("They took our ideas to their marketing stars/And now I'm spending all my days at girlpower.com/Trying to buy back a little piece of me" – "Levaram as nossas ideias pras estrelas do marketing/E agora passo todos os meus dias no girlpower.com/Tentando comprar de volta um pedacinho de mim"), enquanto proliferam os ambientes perigosos para mulheres ("Will there always be concerts where women are raped?" – "Vão sempre existir os shows em que mulheres são estupradas?"). Esta relevância é uma faca de dois gumes: embora demonstre a qualidade atemporal das letras da banda, é bem desconcertante ver que a misoginia, a exploração e a violência contra mulheres são problemas tão atuais em 2014.Que a sociedade, a cultura e a política sejam, de várias maneiras, desiguais para as mulheres – e, ao que parece, o desequilíbrio aumenta a cada dia – faz com que a volta do Sleater-Kinney seja um alívio ainda maior. Mesmo que de maneiras sutis, a banda aumentou a consciência da discriminação, e encorajou a botar a mão na massa e a boca no trombone para combater a injustiça. Acima de tudo, elas foram uma força musical e ideológica eletrizante – uma combinação rara. Talvez seja por isso que nenhuma banda chegou perto de replicar o som do Sleater-Kinney na última década, ainda que existam alguns ecos sônicos de sua influência em bandas como White Lung, Screaming Females e War On Women.Ainda assim, o espírito de franqueza do Sleater-Kinney sobrevive, por meio de feministas sem papas na língua, como Meredith Graves, do Perfect Pussy, Lauren Maybarry, do Chvrches, e Alanna McArdle, do Joanna Gruesome, e em quaisquer entrevistas em que artistas condenem a misoginia no rock. Até mesmo os intermináveis debates sobre o feminismo provavelmente não teriam acontecido sem que antes o Sleater-Kinney abrisse caminho. Não há melhor época do que esta para que a banda dê início ao seu segundo ato; na verdade, elas já têm uma faixa de reintrodução em "Male Model", de 2000: "It's time for a new rock 'n' roll age/History will have to find a different face/And if you're ready for me/I just might be what you're looking for." ("É tempo para uma nova era do rock 'n' roll/A História terá de encontrar um outro rosto/E se vocês estão prontos para mim/Eu talvez seja aquilo que procuram.")._Annie Zaleski é riot grrrl para sempre e fodona do início ao fim. Ela está no Twitter _-__ @anniezaleski.Tradução: Marcio Stockler
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