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Música

Por Que as Pessoas Odeiam Tanto “i”, do Kendrick Lamar?

Mesmo sendo uma ode ao amor próprio, essa música causa estranhas reações aversivas. Por que será?

Kendrick Lamar lançou o clipe de seu último single, “i”, na última terça (4). Assim que a música saiu, muitos de seus fãs deram de ombro ou simplesmente ficaram putos. Superficialmente, parece ser uma música bem difícil de se odiar. A sua mensagem, de que o amor próprio é algo bom, é algo que nenhuma pessoa racional discordaria. Sua melodia, retirada de “That Lady”, dos Isley Brothers, e então dissecada e brutalizada por músicos de estúdio fodões como o virtuose do baixo Thundercat, vindo direto da Mothership, a nave espacial musical de onde todo o funkeado vem. Seu clipe conta com o rapper fazendo uma dancinha atrapalhada que provavelmente aprendeu com seu avô, o cara que em good kid, m.A.A.d city nunca recebeu a porra da pizza da Domino’s que pediu.

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Então por que parece que odeiam tanto essa música?

Bom, é um lance complicado. Kendrick Lamar tem diferentes significados para muitas pessoas. Ao longo dos últimos anos, Lamar adquiriu o status de jovem rapper mais promissor do hip-hop não só por suas habilidades ao microfone, mas também por incutir em seus fãs um quê de otimismo, como se estivessem ouvindo o próximo Maior Rapper de Todos os Tempos. Ele tinha a capacidade de capturar a ambiguidade moral do gueto com um olho novelesco para detalhes. Suas canções eram tão complexas quanto contagiantes. Ele sabia como criar tensão, manter uma narrativa, cultivar drama e então dar fim a tudo com uma boa piada. Apesar de um boladíssimo endosso por parte do Dr. Dre, ele fez tudo isso sem comprometer sua lealdade ao underground da Costa Oeste de onde veio, explorando o que havia de mais melancólico na sonoridade do hip-hop de uma forma tão foda que as pessoas simplesmente não tinham como não perceber. Em suma, Kendrick era visto por muitos como um Jesus do rap. Ou talvez, de forma mais precisa, o Luke Skywalker do rap, aquele que poderia trazer equilíbrio à Força, estreitando os lanços entre underground e pop como poucos antes dele.

Cada música em que ele aparecia depois daquele disco só fazia aumentar a ansiedade em torno de qual seria seu próximo movimento. “Fuckin’ Problems”, de A$AP Rocky, deixou claro que Kendrick poderia encarnar um rap de festinha numa boa – mesmo que Drake estivesse ali rimando sobre os Beatles, as pessoas lembram mesmo é da ostentação desimpedida de Kendrick (“mina, aqui é Kendrick Lamar / vulgo Benz-pra-mim-é-só-um-carro”) [Girl, I’m Kendrick Lamar / a.k.a. Benz-Is-to-Me-Just-a-Car]. Já “Jealous” de Fredo Santana mostrava Lamar no papel de um bluesman encarquilhado de Chicago, atrevido e rítmico e deprimente e inspirador e arrogante.

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E aí temos “Control”, que contava com O Verso – quase três minutos de veneno ininterrupto em direção a seus colegas rappers, em que ele deu uma de Kurupt e começou citar nomes, a ponto de zoar Big Sean e Jay Electronica, que participam da desgraça da música com ele. Desde a treta T.I. vs. Ludacris que um rapper não mostrava tanta ousadia. Passar duzentos segundos inserindo a si mesmo no cânone dos grandes enquanto desce o pau nos seus contemporâneos certamente é algo que chama a atenção. É uma espécie de caça-clique musical – certamente isso rendeu mais atenção a Kendrick do que se ele simplesmente se concentrasse em apenas fazer música de qualidade para que fãs e críticos o colocassem no mesmo patamar que Jay Z, Eminem e Nas. Porém, tem vezes que compensa ao herdeiro correr com tudo pra cima do trono – Lamar é um MC habilidoso e intenso demais para ser ignorado quando mostra as presas e mira na jugular assim.

Com aquele verso, o mundo ungiu Kendrick Lamar com o título de Melhor Rapper Vivo, o único rival possível de Drake para o posto de rei do rap contemporâneo. E reis do rap não mantêm suas coroas ao ficarem quietinhos em seus reinos; eles vão atrás de territórios inexplorados e criam algo que todo mundo possa curtir. E a punhalada proverbial de Lamar em terras inimigas é, por bem ou por mal, “i”.

Superficialmente, “i” soa uma música feliz e ensolarada, com o mesmo tipo de refrão foda e ganchos contagiantes à la “Happy” de Pharrell, “Hey Ya” do OutKast e “Blurred Lines” do Robin Thicke, três músicas com as quais “i” tem sido comparada frequentemente. Ela pode ser interpretada como Lamar dando as costas aos seus fãs, se vendendo, ou simplesmente como uma canção ruim. E se você acha “i” ruim, provavelmente não há nada que eu possa dizer para te convencer do contrário.

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Mas ainda assim, há algo de obscuro, talvez desesperado e perigoso em “i”. Talvez seja a forma como Lamar dá início a música, com uma voz mansa e bem baixinho, e acaba quase gritando pra caralho no final. Talvez seja o clipe, que mostra miséria, ação policial, e suicídio. Kendrick se dependura pela janela de um carro, parecendo muito com o Coringa em O Cavaleiro das Trevas, e lidera uma passeata em um bairro, passando por policiais que prendem um negro. São imagens incisivas, e ao ser confrontado com elas, não consigo deixar de pensar em Ferguson, Missouri, e as verdades implícitas que aquilo revelou sobre a sociedade norte-americana. “i” existe em um mundo em que negros são penalizados, escrutinizados, e vitimizados por simplesmente existirem. O hip-hop, para muitos que vivem no lado dominante dos EUA, no lado Fox News da coisa, ainda é visto como algo inerentemente perverso e do qual se deve desconfiar.

“i” é um produto criado por alguém que entende naturalmente esta realidade extremamente sombria. Quando, como Lamar diz, “é uma guerra lá fora e uma bomba na rua / e uma arma no gueto e um bando de policiais / e uma pedra no canto e uma fila cheia de inimigos” [it's a war outside and a bomb in the street / And a gun in the hood and a mob of police / And a rock on the corner and a line full of fiends] – em outras palavras, quando o mundo quer te pegar por conta de quem você é e onde você mora, a coisa mais forte e corajosa que você pode fazer é agir em prol de si mesmo. Desta forma, “i” conta com a positividade radical de “Jesus Walks”, cruzado com a sensibilidade pop de “Touch the Sky”. Lamar não está pendurado na janela do carro no clipe porque ele achou que isso ficaria legal; é um lembrete de que você não deveria ser silenciado simplesmente porque alguém, automaticamente, te vê como uma ameaça. Assim como Lamar fez a canção anti-álcool "Swimming Pools" passar por uma música de festa, ele está distorcendo, politizando e dando um golpe no pop bonitinho com “i”.

Em entrevista ao site da FADER, Lamar comentou a reação tépida à faixa. “Isso é ótimo. Odiaria ficar estagnado. Odiaria que dissessem que não houve nenhum crescimento. Você tem que inovar e desafiar não só a si mesmo, mas também seus ouvintes… Quando se é um artista, ninguém deveria ditar o que você faz, apenas faça”. E ele tem um bom argumento aí. “i” não é Kendrick virando pop, não mesmo. Há um zilhão de coisas que ele poderia ter feito para dar um passo cínico em direção ao pop. Ele poderia pegar uma batida do DJ Mustard do Mike Will, pedir a Max Martin que lhe compusesse um trecho, ou mesmo se juntado com Taylor Swift e fazer algo que deixaria sua participação no remix de “Radioactive” do Imagine Dragons soar como um lado b do Company Flow. Mas ele não o fez. Kendrick Lamar tem todo o crédito underground e não-underground que poderia querer, e ainda assim conseguiu fazer a última coisa que esperariam dele. Ele compôs uma canção sobre amor próprio que sampleava uma das bandas negras mais amadas de todos os tempos, e a cobriu de açúcar a ponto das pessoas a odiarem, quase provando seu próprio argumento. De certa forma, “i” é a coisa mais punk que Kendrick poderia ter feito. Ele poderia ter agido como os fãs de rap queriam e conquistar a cena toda com raivosas, mas isso teria sido previsível. E quem quer ser previsível? Nem Kendrick, muito menos “i”.

Drew Millard é o editor da seção Reportagens do Noisey gringo. Siga-o no Twitter.

Tradução: Thiago “Índio” Silva