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Música

Seria 'Late Registration' o Melhor Disco do Kanye West?

Dez anos após o lançamento, lembramos a importância do disco que levou Kanye ao estrelato e consolidou seu trabalho.

Late Registration, de Kanye West, comemora este mês seu décimo aniversário. Craig Jenkins, do Noisey, examina a relevância cultural do segundo disco do rapper.

Ninguém queria que Kanye West fizesse rap, e quando ficou claro que ele seguiria em frente de qualquer maneira, entrou na parada com uma tentativa principesca, embora não sem obstáculos. O lugar do disco de estreia de West, The College Dropout, no panteão dos clássicos do hip-hop, está assegurado: ele renovou uma ponte terrestre entre a periferia consciente do rap e o centro mainstream do gênero, como raras vezes se tentara desde The Score, de Fugee (sem contar Jay Z convocando o The Roots para o Unplugged de 2001), com uma fornada de músicas que eram ao mesmo tempo de um teor político profundo e, sempre que possível, de um humor toscão. Foi uma excelente estreia, mas havia muito espaço para evolução.

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Kanye Mach 1 estava mais seguro de sua capacidade como letrista do que sua língua estava ao cantar os versos, e sua técnica de produção era única e envolvente, mas, vista com os olhos de hoje, asfixiante em alguns pontos; as batidas inspiradas em “Xxplosive”, de Dr. Dre, e os samples de soul acelerados e escolhidas com perícia criaram uma estética ao mesmo tempo cheia de referências feitas de maneira inteligente e, às vezes, um pouquinho formulaica. Em 2004, alguns anos já haviam se passado desde os primeiros trabalhos de sucesso de West como produtor, junto de Just Blaze, em The Dynasty: Roc La Familia, do Jay Z, e The Blueprint, fizeram dele um dos produtores mais procurados da época. Ele poderia seguir trabalhando duro como fizera antes, mas a evolução é o caminho para a grandeza que resiste ao poder do tempo. Kanye tinha de seguir em frente.

Eles Rezam Para Que a Dinastia Acabe Tipo “Amém”

Coloque Kanye West dentro de uma caixa, e ele a explodirá em milhões de pedacinhos. Depois de ver o lânguido, triste e apaixonado Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, West ficou encantado com a trilha sonora ricamente orquestrada (como aconteceria também, anos depois, com o enigmático rapper Jay Electronica) e foi atrás do cara responsável. O multi-instrumentista Jon Brion não tinha histórico no hip-hop – trabalhava como músico independente e produtor para cantores/compositores talentosos e esquisitos como Rufus Wainwright, Aimee Mann, Elliott Smith e Fiona Apple, e ficara famoso especialmente por ajudar Apple a intensificar o estilo cabaré deprimido do disco de estreia, Tidal, e transformá-lo na pompa em tecnicolor de When the Pawn…, de 1999 – mas ainda assim, concordou em trabalhar com West.

O que parecia uma bizarra parceria não demorou a render frutos: o single principal “Diamonds from Sierra Leone” transformou de maneira inteligente o tema do filme de James Bond Os Diamantes São Eternos, cantado pela lendária vocalista britânica Shirley Bassey, em uma mensagem de solidariedade para com sua equipe do Roc-A-Fella Records. (Em 2005, a parceria de negócios entre Jay Z e Damon Dash, que forneceu a base para a primeira dinastia da Roc, caíra por terra, com Dash indo embora, levando consigo quem quisesse acompanhá-lo, e deixando Jay e Kanye como as principais atrações do selo.) As letras estavam mais firmes, mas ainda com a presença do senso de humor e da autodepreciação. A produção fez West embrenhar por uma imprevista nova direção, um ritmo intensificado e uma linha de baixo vigorosa e pulsante colidindo com uma instrumentação ao vivo de bom gosto (inclusive com Gondry na bateria!), para apresentar uma visão do som de Kanye ao mesmo tempo mais densa e mais flexível do que o material de Dropout. O clipe acrescentaria uma terceira dimensão: o sangrento negócio na África que proporciona aos rappers suas joias.

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Ele Tem Ambição, Baby

West lançou Late Registration ao final de agosto, surfando no enorme sucesso de “Gold Digger”, o single seguinte, que convocou o cantor de “Slow Jamz”, Jamie Foxx (recém-premiado com um Oscar pela participação na cinebiografia de Ray Charles, Ray), para essencialmente repetir o papel no gancho da música. O novo disco ultrapassou facilmente os limites do estilo de produção de West conhecido como chipmunk soul, acrescentando às suas faixas músicos independentes que davam sustança aos ganchos e mergulhavam em trechos sinuosos, orquestrais, com um quê de progressivo, proporcionando espaço para que as batidas respirassem e se alongassem de maneiras que geralmente não estão nos planos dos discos de rap. A canção de abertura “Heard 'Em Say” se apoia num cintilante trecho de piano roubado da deprê “Someone That I Used to Love” (de Natalie Cole) antes que três outros teclados entrem com tudo e a elevem até as estrelas. Depois, “Drive Slow” faz uma curva forte para a esquerda, numa seção picada e retorcida depois dos versos cantados por West, pelo rapper texano Paul Wall e por GLC, colega da primeira geração da G.O.O.D Music.

A revolução trazida por Late Registration não foi só em termos de composição. Quatro anos como um procurado produtor de rap e R&B renderam a Kanye um formidável catálogo de colaboradores, e o disco fez uso de um amplo leque deles: Brandy, que trabalhou com West na provocativa “Talk About Our Love”, de 2004, canta com sensualidade em “Bring Me Down”, um canto que se espalha homogeneamente por cima dos sons de uma orquestra com mais de 30 instrumentos. Common, cuja excelente estreia pela G.O.O.D. Music, Be, foi quase toda produzida por Kanye, tem um interlúdio só seu na sombria e comovente “My Way Home”. Há também convidados inesperados: Kanye sagazmente coloca Nas, na sequência de faixas, uma música depois do remix de “We Major”, “Diamonds”, com participação de Jay Z, colocando próximos os dois pesos-pesados de Nova York numa época em que a relação deles estava mais fria do que nunca. Nas canta um verso de parar o show sobre não saber o que escrever, espelhando o atemporal falso começo de “NY State of Mind”, de Illmatic. Kanye se junta com o empresário sulista Mile Dean para alguns trabalhos de mixagem, e dá início a uma parceria de trabalho que continua forte até hoje. Em Dropout, vemos Kanye encurtando o espaço entre o mainstream e o underground da Costa Leste, mas a inclusão de Paul Wall, Charlie Wilson, Mike Dean, The Game e outros em Late Reg deu o passo inicial na direção do som que tudo inclui, não mais limitado a regiões, de Kanye West nos anos 2010.

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Meu Deus, Como Você Pôde Deixar Isso Acontecer?

Late Registration é a base para obras posteriores maximalistas de Kanye como Cruel Summer e My Beautiful Dark Twisted Fantasy, com seu som de pia de cozinha, mas também em tom. O disco mergulha sem medo na escuridão da experiência dos negros americanos, indo desde comunidades assoladas pelo crime, que arregimenta jovens irrequietos e com poucas oportunidades (“Heard Em Say”) até a falta de acesso ao atendimento médico adequado por causa da faixa de renda (“Roses”). Até mesmo a ferinamente engraçada “Gold Digger” esconde o sofrimento de um casal em que os dois destroem frivolamente a vida um do outro para conseguir alguma vantagem na vida. (Kanye revisita o tema com frequência: “Gold Digger”, “All of the Lights” e “Blood on the Leaves” funcionam meio como uma trilogia informal). O coração pulsante do disco, no que diz respeito a isso, é a transição de “My Way Home”, uma homenagem ao pesaroso lamento pelas cidades do interior, “Home Is Where the Hatred Is”, do poeta e cantor Gil Scott-Heron, para a retumbante e marcial “Crack Music”.

“Crack Music” é a mais pura colisão, em Late Registration, da radical consciência negra de Kanye com o talento orquestral de Jon Brion. Por cima de uma produção que cria o efeito de uma banda marcial universitária se arrumando durante o intervalo, Kanye passeia metodicamente pela desintegração do movimento dos direitos civis, o recrudescimento da epidemia do crack, e o papel do hip-hop como mecanismo de defesa e modo de vida lucrativo em meio a tudo, fazendo ousadas acusações a presidentes dos Estados Unidos enquanto isso, nas quais mais pessoas acreditam do que se costuma supor. (No dia 2 de setembro, poucos dias depois do lançamento disco, ele diria, num Teleton beneficente para as vítimas do furacão Katrina, que o presidente em exercício “não se importa com os negros”. As ansiosas fotos de Bush com a juventude negra de Nova Orleans num evento para lembrar o décimo aniversário da catástrofe sugere que ele ainda sente a queimadura.) Nas mãos de qualquer outra pessoa, essa asfixiante demonstração da totalidade da opressão aos negros pós-MLK talvez parecesse derrotista, mas a música de Kanye West é sobre agarrar a alegria e a esperança em meio às mais tétricas circunstâncias. É possível ouvir mais do mesmo anos depois, em “New Slaves”, de Yeezus, uma explosão de amargor antirracista, desfeito em mil pedaços por um desfecho que promete continuar lutando, ainda que só por despeito.

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Estou À Frente do Meu Tempo, Às Vezes Anos À Frente

Em meio às animosidades e conflitos de Late Registration, há O Ego. Por toda a narrativa paralela de Kanye sobre sua história de origem e sobre a tentativa da América negra como um todo de manter-se relevante em termos culturais, há vezes em que o exagerado conceito que o artista faz de si mesmo é seu único colete salva-vidas. O ímpeto aspiracional de “Touch the Sky” começa nas roupas, porque manter a aparência de ser foda é algo de que todos nós somos capazes. “Bring Me Down” passa um pito em todo mundo que taxou de impossível a aposta de Ye (“Made a mil myself, and I’m still myself / And I’ma look in the mirror if I need some help” – “Consegui um milhão eu mesmo, e ainda sou eu mesmo / E se precisar de ajuda dou uma olhada no espelho”), enquanto que o brinde de champanhe de quase oito minutos “We Major” para pra pensar sobre todo mundo do gueto que ainda está na luta, e não conseguiu sair de lá. Late Registration é a gênese do desconforto torturante perante o status de celebridade, que foi a força motriz da exegese da máquina da fama realizada em Fantasy e Watch the Throne.

Em muitos sentidos, Kanye West é um avatar da classe criativa negra americana: extremamente inteligente, talentoso, cheio de ideias, mas sempre medindo o que ele deveria dizer e fazer com aquilo que ele se sente ideologicamente impulsionado a dizer e fazer. Late Registration é um momento precário em sua ascensão, em que ele toma consciência de suas limitações, mas ainda não é consumido por elas. O equilíbrio de Late Registration entre a esperança descomunal e a generalizada guerra contra as máquinas que trabalham contra o crescimento de Kanye é algo sem par em sua discografia. Dropout é o projeto, Graduation é infinitamente mais untuoso, 808s & Heartbreak, cínico e despeitado, Fantasy e Yeezus, reacionariamente rancorosos. Pode-se discutir qual desses é o melhor, mas Late Registration é um screenshot (com o qual podemos nos identificar profundamente) da luta de um sonhador talentoso para desafiar a força da gravidade. Não espanta que, quando a demonstração pública do pedido de demissão de uma trabalhadora da indústria da tecnologia que já estava de saco cheio viralizou, a trilha sonora era a faixa “Gone”, de Late Reg. O quarto verso do animado sampleamento de Marvin Gaye, perfeito para fechar o disco, é o etos de Kanye West destilado em poucas palavras: “I’m ahead of my time, sometimes years out / So the powers that be won’t let me get my ideas out.” (“Estou à frente do meu tempo, às vezes anos à frente/ Então os poderosos não me deixam botar minhas ideias no trombone.”).

Craig Jenkins está nos teclados nesse momento. Siga-o no Twitter.

Tradução: Marcio Stockler