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Música

Inspiração é um risco: Uma entrevista com as garotas do Savages

Falamos com o quarteto londrino sobre o diabo, o novo álbum do grupo ‘Adore Life’ e por que é tão difícil se deixar ser amado.

Crédito de todas as fotos: Cara Robbins

A Jehnny Beth tem pensado muito sobre o diabo.

“Ele está lá no momento em que você sente aquela vontade de escrever uma música nova”, fala a vocalista principal do Savages sobre as influências por trás do novo disco da banda.

Ela faz referência ao conto A Hora do Diabo, do escritor português Fernando Pessoa, no qual o mal tenta encarnar na heroína do poeta não por meio das indulgências terrestres, e sim por meio do perigo na busca pela inspiração.

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“O que se deseja e não se pode obter, o que se sonha porque não pode existir ― nisso está meu reino nulo”, escreve Pessoa. “Não é verdade que somos livres no sonho?”.

“Gosto muito da ideia de que inspiração é um risco”, diz Beth. Seu segundo disco com o Savages, Adore Life, já está disponível pela label Matador. “É como se fosse proibido”, diz, “porque está trazendo à tona o seu lado sombrio, seu lado mau”.

Para Fernando Pessoa, o diabo é a compulsão pela escrita, a compulsão de estar com alguém. Ele está aflito e existencialmente derrotado, alheio à certeza da mortalidade. Se o Savages incorpora o perigo do rock ‘n’ roll old school, seus ideais são ainda mais brutos: assim como o poeta Fernando Pessoa, a galera do Savages não nutre simpatia pelo diabo ― elas o desprezam.

“Acho que inspiração, amor e todos esses sentimentos, essas aspirações, estão lhe mostrando que tipo de pessoa você deveria se tornar”, diz Beth. “Isso por si só já é revolucionário. Estou certa de que não é o que você deveria fazer”.

Adore Life é um disco que encontra resolução na esperança; é um lembrete de que você precisa ser corajoso para conseguir aceitar ser amado.

Me encontrei com as garotas do Savages em uma terça-feira chuvosa na sede da empresa que cuida da Matador, o Grupo Beggar, uma elegante casa de artesãos que serve de alojamento e escritório para quando os artistas vêm à cidade.

A Beth surge, imaculadamente bem vestida em sua jaqueta de couro, skinny preta e cabelo penteado, de trás de uma mesa repleta de embalagens de delivery e recortes de jornais. Anéis prateados monstruosos — os mesmos que adornam seu punho na capa do Adore Life — intensificam seu aperto de mão.

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Atrás dela, na sala de estar, suas colegas de banda — a guitarrista Gemma Thompson, o baixista Ayşe Hassan e a baterista Fay Milton — estão jogados no sofá, todoas em seus uniformes pretos. Do lado de fora, um pé d’água faz jus ao lar da banda: Londres.

Beth se aconchega e se abraça, se arrepiando e demonstrando por apenas um momento um lado que contraria sua costumeira presença intimidadora.

A banda estava na cidade para tocar “Adore Life” e “The Answer” no Jimmy Kimmel Live!, entre outros ensaios para a turnê e aquele famoso b2b com a imprensa. Elas estão cansadas porém são totalmente educadas, parecem até um pouco tontas quando posam feito verdadeiras experts para o nosso fotógrafo, dando gargalhadas e citando Zoolander.

Mas toda essa eficiência também é um lembrete de que, para o Savages, as obrigações do ciclo publicitário não passam disso. De volta a seus smartphones, falam sobre escritores como Fernando Pessoa, o punk dinamarquês cult e a natureza da parceria; você sente como se elas preferissem estar num outro lugar transformando essas conversas na música cativante que as trouxe até aqui.

Levando em conta a politização turbulenta que o grupo britânico proporcionou no seu disco de estreia, o impiedoso e vencedor do Prêmio Mercury Silence Yourself, e a catarse brutalmente retalhada de seus sets ao vivo repletos de feedback, há algo um pouco desconcertante sobre o mais novo disco da Savages, Adore Life, que é do início ao fim composto por… canções de amor?

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“Acho que, de certa forma, estar apaixonado neste mundo hoje em dia é algo revolucionário”, diz Beth, se inclinando na mesa da sala de reuniões onde ela, Emma e eu nos reunimos para nossa entrevista. “Acho que a maior parte do disco fala sobre se sentir inspirado… E de alguma forma não é isso que a sociedade espera de você, pois te afasta das coisas que as pessoas estão predestinadas a fazer neste mundo, como arrumar um trabalho, ganhar dinheiro, criar uma família e todas essas coisas”.

De fato, o Adore Life não soa como um disco sobre amor. É sombrio e seus 39 minutos compreendem um pós-punk e noise em homenagem ao Swans, Siouxsie and the Banshees e Bauhaus, com paredes de feedback e dissonância concebidos pelas linhas de guitarra sinistras da Emma e o gemido da Beth. Seu ritmo é afetado e quase chega a ser frustrante. É agressivo, conflituoso. É tudo que o amor não é — pelo menos não segundo as narrativas pop que o definem.

O que é profundo no Adore Life não é sua exploração dessa busca — o desejo de amar e ser amado — e sim o fato de ser radicalmente mais sincero do que a dicotomia segura e habitual que nós, e especialmente as mulheres, somos expostas na música: o lado bom sendo os crushes, romances e a epifania do afeto mútuo versus o lado ruim da rejeição, desespero e coração partido.

Savages reivindica as áreas cinzentas do amor — a obsessão, comodismo, o apetite sexual — diretamente das tangentes de vergonha e isolamento às quais são frequentemente relegados. A banda traz graça à sinceridade do amor e da vida, e seu som reflete essa ferocidade inabalável.

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"When I take a man at my command, my love will stand the test of time", Beth canta na faixa “Mechanics”. Há uma corrente de força em Adore Life, e a música a veste como uma luva.

Na faixa central de seis minutos “Adore”, a banda proporciona a ruminação na inspiração que se atira no peso das linhas de baixo do Ayşe e na bateria da Fay.

“Is it human to ask for more? / Is it human to adore life?” Beth questiona, antes da música culminar em uma das raras flutuações do álbum de progressões de acordes menor para maior.

“Maybe I will die maybe tomorrow, so I need to say / I adore life”, ela declara, depois de quase cinco segundos em silêncio. É um momento de vitória e clareza, uma despedida estilosamente edificante do resto do álbum, que também incorpora a mensagem em torno da anarquia emocional que o Adore Life se embasa: o amor não é fraqueza.

Amor é mais confuso do que isso. Ele é inconstante, complexo e contraditório. É a mentira que você conta para sua família sobre os traços da sua personalidade que você não é capaz de mudar. É a forma como você nota uma mudança no ambiente mais do que as mãos dele te tocando. É a turbulência psicológica de dormir com alguém que você não conhece direito. É o questionamento de se você fez isso porque o ama ou porque estava entediada simplesmente. É o desejo de que ele enfie os dedos na sua garganta, e é tomar a decisão de fazer um disco sobre isso.

Um disco sobre amor era a última coisa que o Savages pensava em fazer ao voltar para o estúdio depois da turnê de Silence Yourself. Sua intenção inicial, Beth explica, era fazer “as músicas mais porradonas possíveis”. Mas depois de dois meses de gravação em que as garotas passaram confinadas em um estúdio no norte de Londres e sem resultados, o quarteto deixou de lado a maior parte do que já havia feito e se mudou para Nova York em janeiro, onde ficaram três semanas começando tudo do zero.

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“Estávamos empacotando o equipamento durante a nevasca”, Gemma se recorda. O grupo gravou seus nove shows, e quando não estava no palco, passou maior parte do tempo ensaiando e destrinchando suas performances.

“Acharíamos impossível ir a um estúdio com essas músicas e gravá-las do jeito que estavam”, Gemma diz. “Porque apenas ao vivo você corre os riscos que jamais correria sem a presença da adrenalina. É um momento no qual nada mais importa, então você meio que se joga, eu acho. E conseguir acreditar uns nos outros durante aquela experiência é importante… o resto do grupo depende de você para ficar completo no palco”.

Seja entre colegas de banda, entre o público ou com um amor, confiança é isso: superar o medo de se mostrar para o mundo. É a ideia de fazer algo que você não tem certeza se dará certo ou não, ceder uma parte de si mesmo à outra pessoa, na esperança de que se tornará algo maior. Fazer isso inspiraria a Savages a colaborar com vários artistas, desde o coreógrafo Nicholas Huchard em uma performance em Paris até um cover do Sort Sol com o Julian Casablancas e, eventualmente, evocar esses temas em suas composições.

Mas precisaria de um pouquinho mais para convencer a Beth, que ensaiou do teatro e da ópera na França antes de se mudar para Londres com o seu parceiro, produtor do Savages há vários anos, Nicolas Congé. Ela diz que achou suas próprias composições sobre amor frívolas demais para qualquer projeto e até agora se dedicou a temas mais cabeça como justiça e política. É o risco que a banda precisava correr.

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“Falei para as garotas, como vamos fazer isso? Tipo, vou precisar reescrever várias coisas ou vamos conseguir fazer com que tenham um toque Savages?” diz, rindo.

E no meio disso tudo há a tentação, o diabinho do Fernando Pessoa no seu ombro. O medo de abandonar o que você é predestinado a fazer, e o perigo de se entregar ao que te satisfaz.

“Foi um questionamento interessante. Mas parecia mais vulnerável. Eu estava acreditando em algo que não pensei que acreditaria, estava acontecendo naturalmente”, Beth diz. “Ninguém é capaz de decidir tudo e isso é assustador”.

Se Silence Yourself foi inspirado na raiva e luta por autonomia — decorrentes das brigas com a gestão inicial da banda — o Adore Life foca na revitalização da química que rola na banda. Juntos, extraíram a pegada pós-punk de faixas como “Surrender” e “Evil” e introduziram reviravoltas inesperadas. Preencheram músicas como “Mechanics” e “T.I.W.Y.G” com a ilusão de que está tudo sob controle, quando na verdade foi justamente a falta dele que lhes deu poder. Eles canalizam a intimidade do aprendizado e confiança em “Adore”.

Por fim, entretanto, o que o Adore Life proporciona é mais intangível, uma satisfação visceral que habita o espaço entre a perspicácia de suas composições e a porrada de suas progressões. O disco se mostrou implacavelmente tremendo, no senso mais pesado da palavra. O que a Savages conquistou e revela em uma conexão muito mais íntima enquanto membros da banda exige que você, enquanto ouvinte, também se conecte em um nível mais profundo. O resultado é o Adore Life, uma experiência totalmente intuitiva: não apenas é desafiador para articular, mas também parece algo inadequado a se fazer. Você pode dizer o mesmo do amor, e talvez seja justamente esse o ponto.

“Quando você traz à tona sentimentos como o amor, ele abre as portas para outras ideias, como o fracasso”, diz Gemma. “De repente não se tratava mais de um amor açucarado, e sim de perder coisas, passou a ser um risco. É perder tudo e ser livre para ir em busca de algo que é maior do que tudo. E quando percebemos estávamos nessa também”.

Andrea Domanick é editora do Noisey. Siga ela no Twitter.

Tradução: Stefania Cannone

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